O essencial no treino de jovens

“Quão castrador é ter pais que depositando os seus miúdos nas academias esperam treinos “XPTO” com filas, rigor, gritos, exigência, mas no fundo pouco sumo. Que pai colocaria (pagando) o seu filho numa academia para que este jogasse uma hora completa 2×2, 3×3, 4×4, 1×2, 1×3? sabendo que ao lado outro treinador organizaria exercícios super complexos com total rigor nas filinhas de espera e com muitos remates depois do passe ao mister?”
Maldini & Lateral Esquerdo, aquiaqui, aqui, e aqui.

Não é de hoje a nossa preocupação com o treino na formação, por sabermos olhar para o que se passa à nossa volta e perceber que algo de muito errado vai na cabeça de quem operacionaliza o treino. O futebol de rua foi-se, e ficámos agarrados a isso como desculpa para o fraco desenvolvimento dos nossos miúdos, dizendo que lhes faltam horas de prática, que já não há a magia da rua. Sem nos apercebermos que, tendo as condições mudado, dificilmente se conseguirá voltar a atingir a excelência sem alterar o método, sem uma adaptação a um novo contexto. Hoje, trago o exemplo de um exercício de treino que tinha tudo para resultar, menos o essencial.
O exercício, repare, tem tudo para funcionar. A sua simplicidade (2×1+GR) não demonstra o quão rico é, e ainda mais o seria acrescentado uma ou duas regras. Mas assim como está, já tem o fundamental para que qualquer jogador jovem possa evoluir dentro de vários parâmetros. Tem oposição, tem cooperação, tem finalização, o jogo está orientado. Porém, por trás no número 11 encontra-se uma fila de 8 jogadores. E com isso, mata-se completamente o exercício, dentro daquilo que é importante para o treino dos miúdos, e aquilo que o futebol de rua levou – Empenhamento motor em situação de jogo. Cada um destes miúdos, que estiveram 15 minutos nesta tarefa teve cinco segundos de empenhamento motor, dentro da situação que interessava evoluir, para um minuto e quarenta e dois segundos parado. Leu bem?! 5s – 102s. Ao final dos 15 minutos, cada jogador fez dez remates, e esteve dez minutos parado. Perdeu dois terços do exercício a assobiar para o ar. Do outro lado, o restante grupo fazia 1×0+GR depois de ultrapassar uma pista de obstáculos, novamente com uma fila enorme associada. Sendo que desta vez, a situação ditava cinco segundos de empenhamento motor para trinta e cinco segundos de espera. Não se pretende criticar os exercícios, ou as intenções que o levaram a ser operacionalizado, desta forma, durante 30 minutos de um treino de jovens. Pretende-se sim fazer perceber que é grave, gravíssimo, um miúdo passar mais de metade do tempo em que devia estar a treinar parado. Sobretudo quando não existe uma situação social adequada para que os miúdos tenham horas de pratica sem fim, como tiveram no passado.

Sobre estes dois exercícios, e com 3 GRs e 2 treinadores disponíveis, dois terços do campo para ocupar, eu teria dividido a equipa em dois grupos, e dentro desses grupos dividir por três equipas. Jogava-se numa situação de 3×3+3 em espaço reduzido, por exemplo, sendo que quem sofria golo passava a ser Joker. Contabilizava os golos de cada equipa e quem marcasse mais ganharia o jogo. Nesta situação, em superioridade gritante, é impossível que não  apareçam os 2×1, com possibilidade de transformar em 1×0+Gr e finalizar. O que acontecerá, também, dentro deste tipo de exercícios, é que as condições para finalizar serão quase sempre diferentes, obrigando quem finaliza a adaptar-se a cada situação, com o maior ou menor grau de exigência de cada uma. Também a quem faz o passe. Poder-se-à dizer que o exercício não garante um número de remates adequado, em termos de volume, para que os jogadores registem evolução. Mas qual é o número de remates adequado para o jogador evoluir? Pois. O que cria evolução, seja qual for o parâmetro, é a dificuldade para superar cada situação. É o encontrar de problemas diferentes, em contextos semelhantes. Aparecer a finalizar de diferentes ângulos, mais perto ou mais longe da baliza, com maior ou menor pressão, com o GR mais perto ou mais longe (da bola, da baliza) – com mais ou menos tempo -, com colegas melhor ou pior colocados, com bolas a virem de sítios diferentes e de formas diferentes, com o obrigar a ocupar diferentes espaços para finalização, etc… Isto é o futebol de rua: Adaptação à vários contextos em situação de jogo, sempre em jogo.


Alguma coisa deve estar a ser muito bem feita, em Portugal, para que num futebol treinado sem bola se consigam fazer alguns jogadores de grande qualidade!
Frase adaptada de José Boto
Sobre Paolo Maldini 3828 artigos
Pedro Bouças - Licenciado em Educação Física e Desporto, Criador do "Lateral Esquerdo", tendo sido como Treinador Principal, Campeão Nacional Português (2x), vencedor da Taça de Portugal (2x), e da Supertaça de Futebol Feminino, bem como participado em 2 edições da Liga dos Campeões em três anos de futebol feminino. Treinador vencedor do Galardão de Mérito José Maria Pedroto - Treinador do ano para a ANTF (Associação Nacional de Treinadores de Futebol), e nomeado para as Quinas de Ouro (Prémio da Federação Portuguesa de Futebol), como melhor Treinador português no Futebol Feminino. Experiência como Professor de Futebol no Estádio Universitário de Lisboa, palestrante em diversas Universidades de Desporto, Cursos de Treinador e entidades creditadas pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ). Autor do livro "Construir uma Equipa Campeã", e Co-autor do livro "O Efeito Lage", ambos da Editora PrimeBooks Analista de futebol no Canal 11 e no Jornal Record.

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