O treinador em formação contínua; sobre certezas e dúvidas

A dúvida é o princípio da sabedoria

Aristóteles

As tendências da educação para o sucesso e da construção de líderes mediáticos no contexto social contaminaram, nos últimos anos, a formação profissional e, por inerência, a formação de técnicos no desporto. Esses princípios e certezas sobre o que é ser-se “alguém” no mundo de hoje, são muito semelhantes caso passemos por um Curso de Formação de Formadores no Instituto do Emprego, ou se completarmos uma Ação de Formação para a obtenção de um nível de treinador.

Trabalhar com certezas pode ser, no entanto, comparado com um mito de pés de barro. O absolutismo da certeza, numa era em que passou a ser assumido que a verdade é, também, apenas um estado passageiro, conduzirá os seus atores, no longo prazo, para mais insucesso do que sucesso. O cruzamento desta informação com a realidade, no entanto, faz-nos deparar com cada vez mais projetos apenas indicados para o curto do que para esse longo prazo.

Não concordamos que, no futebol, aquilo que é verdade hoje será mentira amanhã. Inclinamo-nos muito mais para a ideia de que todas as verdades de hoje são fruto das dúvidas de ontem e semearão as condições ideias para embaterem com as reflexões de amanhã. Estamos, por isso, num contínuo evolutivo no que toca ao trabalho do pensamento do jogo. Esse contínuo, ainda assim, é constituído por diferentes intervenientes que se devem apropriar para cada uma das suas funções ao longo da carreira.

É essencialmente diferente ser-se um jogador, um treinador-adjunto, um treinador principal, um analista ou um dirigente. No entanto, continuamos a viver num enquadramento de organização em que os indivíduos passam de um, para outro lado, sem qualquer alteração de quadro mental e comportamental. Impomos enorme crença nas experiências pessoais e perdemos pouquíssimo tempo a estudá-las no confronto com a literatura que retrata experiências de outrem. Criamos verdades naturalmente incompletas. E, se a dúvida não tiver uma presença metódica no nosso trabalho, condenamo-nos a falhar.

Of more importance, however, is the need to regularly reexamine and re-evaluate the philosophy, as our experiences constantly shape and evolve our thoughts.

Tania Cassidy, Robyn Jones e Paul Potrac, no livro Understanding Sports Coaching

No outro lado da linha, no entanto, espreita outra das grandes armadilhas colocadas no caminho dos  treinadores. Numa era de excesso de informação, somos brindados, após uma simples pesquisa pela rede ou pelas prateleiras de uma livraria, com uma enorme quantidade de receitas sobre como organizar o jogo. Conhecemos um larguíssimo número de exercícios dos maiores treinadores do mundo, bebemos as suas palavras nas conferências de imprensa e os seus comportamentos no banco de suplentes, acreditamos que é aquilo que acontece no exterior do técnico que lhe vale o sucesso. A liderança mediática é encarada como mais importante do que a liderança real.

Por isso mesmo caímos na ratoeira de entender a qualidade por amostras muito pequenas de talento, tantas vezes mais baseadas no contexto em que surgem do que na realidade da reflexão realizada. Continuamos a não perceber que o discurso é também uma qualidade que se pode treinar e preparar e que, da mesma maneira que uma equipa organiza uma linha de pressão para condicionar um determinado movimento ofensivo do adversário, também o treinador pode (e deve!) preparar o seu discurso e postura para abordar a comunicação social. Confundimos, recorrentemente, o dispensável com o essencial. Corremos para acreditar que a “next big thing” está aqui, na nossa frente, seguimos cegamente a sua sombra, sedentos de uma sabedoria que se exerça por genialidade.

Ainda assim, é dos percursos que nascem os melhores e mais conseguidos projetos do futebol. Por isso mesmo, de José Mourinho, o mais importante a reter não serão as suas vitórias, mas a sua educação para o treino, que vem desde os tempos de criança em que vivia nos balneários das equipas orientadas pelo seu pai, que lhe foi cedendo responsabilidades desde cedo, que lhe permitiu observar tudo aquilo que acontecia em seu redor, expondo depois toda essa experiência acumulada ao trabalho académico. Por isso mesmo, de Pep Guardiola, o mais importante será entender aquilo que o move em termos de evolução do seu pensamento, como um dos símbolos maiores da fuga à estagnação de um trabalho de orientação. Quando achamos que o técnico se agarra excessivamente às suas ideias e nos vemos, no jogo seguinte, confrontados com a evolução das mesmas.

Na realidade, o verdadeiro valor do treinador não consiste tanto em ter convicções, mas em como as propõe e implanta, sobretudo quando o contexto não é o ideal; também em que se baseia ao analisar essas convicções, ao revê-las, corrigi-las, aperfeiçoá-las e adaptá-las a esse dito contexto.

Martí Perarnau

Fundamental, para o treinador, o valor do tempo e a maneira como se envolve para o aproveitar. Essencial, para o treinador, a constante dúvida que lhe alimenta o progresso, a sede de conhecimento e a capacidade de o rever e adaptar para o contexto em que se insere. A melhor verdade será sempre aquela de que nos aproximamos, pela melhoria da nossa análise, sem que nunca a cheguemos a agarrar.

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Sobre Luís Cristóvão 103 artigos
Analista de Futebol. Autor do Podcast Linha Lateral. Comentador no Eurosport Portugal.

6 Comentários

  1. li hoje um artigo na EspnFC que colocava a premissa de que o “Mister” (no artigo “Manager”) tem os dias contados.

    A evolução tecnológica – a análise estatística, seja na análise do jogo, na previsão da performance de uma potencial contratação ou mesmo na construção dos modelos tácticos da equipa; o avanço cientifico nas metodologias de treino e recuperação – seja na recuperação do esforço, das lesões, no aprimoramento da condição física e técnica; entre tantas outras vertentes de intervenção e análise tornaram as exigências tão grandes que hoje o “treinador” é mais um gestor de equipa (internamente) e um relações públicas (externamente).

    Gostava de saber a vossa opinião sobre esta evolução no papel do treinador.

    • Essa evolução já aconteceu e apenas quem acredita que o treinador é, ainda, um líder genial e isolado não terá percebido isso.
      Toda a literatura defende que, mais do que um treinador, o desporto de alto rendimento tem hoje equipas multidisciplinares que gerem e organizam o trabalho.
      Nesse sentido, talvez o “Manager” faça hoje mais sentido do que nunca, como gestor dessa mesma equipa. O cruzamento dessas responsabilidades com a administração de todos os contactos com o mercado (quase uma gestão prático-financeira que é histórica no futebol inglês) é que poderá estar à beira do fim. Não só pelo crescimento da exigência do lado desportivo, mas também porque, com o novo tipo de donos de clubes e investidores em Inglaterra, essa responsabilidade dificilmente foge à intervenção da administração.

  2. Games are sometimes categorised by the elements required to play them (e.g.
    miniatures , a ball , cards , a board and pieces , or a pc ).
    In locations the place using leather is effectively established,
    the ball has been a preferred game piece throughout recorded history, resulting in a worldwide popularity of
    ball video games corresponding to rugby , basketball , football , cricket ,
    tennis , and volleyball Other instruments are extra
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