As Consequências da Adaptação

À medida que os resultados negativos do Manchester City se iam acumulando, o discurso da adaptação de Guardiola ao futebol inglês foi ganhando adeptos. Para quase todos, e parece que para o próprio Guardiola, o modelo de jogo do treinador catalão está votado ao fracasso em Inglaterra, e requer por isso alguns ajustes. Para quase todos, e parece que para o próprio Guardiola, não é possível triunfar na Premier League sem uma adaptação à especificidade do futebol inglês. Devo dizer que não entendo esta ideia. Não só não acredito que a especificidade britânica inviabilize de algum modo a implementação das principais ideias de Guardiola como me parece que a melhor forma de contrariar tal especificidade passa por tentar implementar o melhor possível tais ideias. Todo e qualquer ajuste a tais ideias é, por isso, profundamente contraproducente. E o que é surpreendente, para mim, é que o Manchester City foi tendo sucesso enquanto Guardiola foi tentando implementar as suas ideias sem restrições, e só começou a fracassar quando o treinador catalão sentiu necessidade de adaptar a identidade do seu jogo à realidade britânica.

Sim, pressionar alto, em Inglaterra, não é tão eficaz como noutros campeonatos porque boa parte das equipas inglesas não se importa de não construir desde trás e se sente confortável a despejar bolas para a frente; sim, a luta pelas segundas bolas, em Inglaterra, é muito mais intensa e decisiva do que noutros campeonatos; sim, as bolas paradas, em Inglaterra, têm uma preponderância superior àquela que têm noutros campeonatos; sim, os árbitros, em Inglaterra, nem sempre punem os contactos faltosos e tornam mais difícil que uma equipa se imponha pela posse. O que fazer, então, perante as características específicas do futebol inglês? Abdicar da pressão alta, de modo a precaver o melhor possível a profundidade nas costas da linha defensiva? Abdicar do povoamento de jogadores entre linhas, de modo a povoar melhor o meio-campo defensivo e a preparar o mais possível a equipa para a fatalidade das segundas bolas? Abdicar de alguma criatividade e privilegiar os atributos físicos e atléticos dos jogadores, de modo a proteger a equipa nas bolas paradas? Abdicar de projectar os laterais em profundidade, de modo a não expor a equipa às transições adversárias? Abdicar de sair a jogar sempre que o adversário pressiona a primeira fase de construção, de modo a proteger a equipa do critério alargado dos árbitros? Do meu ponto de vista, não. Mas parece ter sido essa a opção de Guardiola. A partir do segundo jogo com o Barcelona para a Liga dos Campeões, e depois de uma série de maus resultados, o treinador catalão parece ter dado o braço a torcer e passou a apresentar um futebol muito mais conservador. Não terá abdicado de todas as suas ideias, é certo, mas abdicou de alguns detalhes que, a meu ver, fazem toda a diferença. Salvo algumas excepções, como contra o Chelsea, o Manchester City passou a apresentar-se em 4231, com dois médios de perfil, os laterais deixaram de dar profundidade pela linha ou de fazer movimentos interiores para servirem de cobertura ofensiva por dentro, os extremos passaram a fixar-se na linha, o espaço entre linhas deixou praticamente de ser procurado, e a saída a três, com os centrais a abrirem e o médio-defensivo a baixar, só se realiza quando o adversário não pressiona.

É possível jogar como Guardiola pretende abdicando deste género de coisas? O treinador catalão parece convencido de que é. Eu desconfio que não seja. E a verdade é que o futebol do City é hoje uma versão pobre daquilo que a mesma equipa, com muito menos tempo de trabalho, conseguiu apresentar logo no início da época. Não é por Guardiola estar a demorar a adaptar-se ao futebol inglês que os resultados do City não têm correspondido às expectativas; pelo contrário, é precisamente por Guardiola se estar a tentar adaptar ao futebol inglês, quando não o devia estar a fazer. De modo a precaver-se de certas coisas que em Inglaterra tendem a acontecer com mais frequência, e de modo a proteger a sua equipa de certas eventualidades tipicamente britânicas, Guardiola fez com que a sua equipa retrocedesse. Os riscos a que a equipa se expunha no início da época poderiam levar a que, ocasionalmente, a equipa fosse surpreendida, ou que, num dia muito mau, pudesse ser humilhada. São coisas que acontecem, e Guardiola deveria estar preparado para aceitar que um processo de aprendizagem tão exigente não se faz sem alguns percalços. Mas nem sequer foi isso que aconteceu. Depois de um excelente arranque, com bons resultados e algumas exibições impressionantes, o City teve alguns maus resultados seguidos e Guardiola acabou por reconhecer que talvez fosse prematuro continuar a exigir que os seus jogadores se predispusessem a jogar de uma maneira para a qual ainda não estavam inteiramente preparados.

Esse reconhecimento aconteceu, a meu ver, a meio da primeira parte do jogo em casa com o Barcelona, numa altura em que a equipa inglesa perdia por 1-0 e estava a ser completamente manietada pelos espanhóis. Guardiola mudou a forma como a equipa estava a jogar, aceitando a superioridade do adversário, e preparou-a sobretudo para o momento de pressionar a construção adversária e para o contra-ataque. Quis a sorte do jogo que, na mesma jogada em que os jogadores estão a adoptar os novos posicionamentos, Mascherano decidisse ser o que sempre foi, oferecendo de bandeja o empate, e que, na segunda parte, a mesma simplicidade de processos terminasse em vitória. O resultado positivo, e o pragmatismo que de certo modo se associou a ele, legitimaram as críticas ao treinador catalão. De repente, todos pareciam acreditar que o City ganhara ao Barcelona porque abdicara de jogar à Barcelona e, pior do que isso, que tal feito justificava a crença de que jogar à Barcelona, em Inglaterra, era demasiado ambicioso. Isto porque, apesar de seis vitórias seguidas, nos primeiros seis jogos da Liga Inglesa, o City acumulara nas últimas quatro jornadas uma derrota com o Tottenham, num jogo em que os londrinos foram de facto superiores, e dois empates (com o Everton e com o Southampton, em jogos que o City podia perfeitamente ter ganho). Além destes três maus resultados em quatro jogos, o City perdera ainda com o Barcelona em Camp Nou, o que não devia servir para justificar o que quer que seja, e fora eliminado da Taça da Liga pelo Manchester United, num jogo em que Guardiola não fez alinhar quase nenhuma das suas opções titulares. Destes cinco maus resultados, só um é que poderia de algum modo pôr em causa o modelo de Guardiola (a derrota com o Tottenham), mas ninguém quis saber disso. Eram cinco maus resultados em seis jogos, e isso só podia ser porque o modelo de jogo não era adequado ao futebol inglês. Os ingleses estavam todos à espera que esta série de maus resultados ocorresse, e nem o facto de ela não ter ocorrido quando era mais lógico que pudesse ocorrer, no princípio da liga, os demoveu da ideia de que, em Inglaterra, é heresia pôr a bola no chão. E aproveitaram esses cinco resultados negativos, ainda que só num deles tivessem razão para o fazer, para pressionar o catalão.

Acho surpreendente, por exemplo, que o mesmo tipo de pressão não se aplique ao Chelsea de Antonio Conte. Ao contrário de Guardiola, o italiano não quis implementar as suas ideias assim que chegou a Inglaterra, e o resultado foi catastrófico. O Chelsea foi o primeiro candidato ao título a ser dado como incapaz de se manter na corrida. Talvez por isso, Conte sentiu que não tinha nada a perder em tentar impor o seu estilo. E foi precisamente a partir do momento em que o treinador italiano mudou o sistema da equipa, e forçou os jogadores a jogarem um jogo diferente daquele a que estavam acostumados, que as coisas começaram a correr bem. Por que razão, ao contrário do que sucede com Guardiola, ninguém critica o treinador do Chelsea por não jogar tipicamente à inglesa? Ao contrário de Conte, que está a ter sucesso justamente por ter renunciado a adaptar-se a um futebol caduco, Guardiola não está a tê-lo porque concedeu que talvez não fizesse mal adaptar-se um pouco. Depois dessa vitória frente ao Barcelona, não me lembro de um único jogo, por exemplo, em que David Silva e Kevin de Bruyne fossem os médios interiores, como o tinham sido no início da época, com Fernandinho atrás. E muito do que o City conseguiu nesse princípio de época se deveu à criatividade que esse meio-campo emprestava. O futebol da equipa empobreceu muito nos últimos dois meses, por essa razão e não só (já não arrisca a sair de trás tantas vezes, os laterais já não se integram na manobra ofensiva da equipa, o espaço entre linhas já quase não é explorado), e só mesmo contra o Chelsea, num 343 muito generoso, em termos de criatividade, é que a equipa de Guardiola conseguiu apresentar, de modo consistente, a qualidade que tinha apresentado antes. Infelizmente, Otamendi cometeu dois erros graves que originaram os dois primeiros golos do Chelsea, Aguero falhou 3 golos que não costuma falhar e Kevin de Bruyne acertou na barra a meio metro da linha de golo. O bom futebol apresentado nesse jogo voltou a ser posto em causa pelo mau resultado, e a pressão sobre Guardiola intensificou-se. Depois desse jogo, o treinador catalão cedeu definitivamente, e o Manchester City é, desde então, uma equipa banalíssima. A minha esperança, e a esperança de todos os que têm esperança que Guardiola possa de algum modo redimir os ingleses daquilo a que gostam de chamar futebol, é que a recente derrota com o Liverpool, e a paupérrima exibição, não só abra os olhos ao catalão como de algum modo lhe legitime as ideias aos olhos dos outros. Afinal, Guardiola adaptou-se, como lhe era exigido, e essa adaptação só lhe trouxe dissabores. Afinal, o City perde tanto ou mais jogando à inglesa. Mas, pior do que isso, perde sem que seja capaz de fazer alguma coisa para evitar perder. A dolorosa banalidade do futebol do City, nos últimos jogos, é a demonstração irrefutável de que o futebol inglês, e a mentalidade britânica que subjaz a esse futebol, precisa mais de Guardiola do que Guardiola precisa do futebol inglês.

13 Comentários

  1. Numa das histórias que se contam em paralelo ao livro “Metamorfose” do M. Perarnau, sobre o Guardiola, a propósito da seleção espanhola de basquetebol, comenta-se precisamente o que tu abordas aqui: talvez, para se ganhar (e ganhar muito), seja preciso tombar primeiro. À grande. Como que de forma humilhante, até, aos olhos de todos.

    Que tudo o que está a acontecer esteja a acontecer por bem, isto é, como bem dizes, para legitimar as ideias de Guardiola e para lhes dar o que for necessário para serem implementadas mais à vontade. Também espero que sim!

    Um abraço! Bom texto mas, acima de tudo, bom timing para o texto!

  2. Por acaso achei que no último jogo, quando ficou reduzido a 10, o Guardiola voltou às suas ideias na segunda parte, colocando os extremos mais por dentro (De Bruynne e Sterling) e próximos do David Silva por forma a ter superioridade no corredor central, dando largura pelos laterais (especialmente pelo Sagna), com Yaya atrás do Silva e a emprestar qualidade na saída de bola. Pode ser que o bom resultado o leve a voltar a acreditar nas suas ideias, caso contrário estará como todos os outros muito dependente da sorte do jogo e pouco das suas ideias.

  3. Cá estou eu de novo a ser do contra… mas isto não foi 1 bocado bater no ceguinho? Vale a pena falar da Liga Inglesa hoje como se estivéssemos a falar dela nos anos 90? Não me parece, já está bem longe de ser só pontapé para a frente e hoje em dia se formos a contar quantos treinadores ingleses tem, se calhar fazendo as contas com uma mão apenas, sobram dedos, pois é quase tudo bons treinadores estrangeiros.

  4. Também tenho pensado que um regresso ao tiki taka do 2 ano de Barcelona seria mais eficiente, mas não acho que ele tenha todos os interpretes necessários. Não tem um Xavi, nem Iniesta e tao pouco Messi. Felizmente Guardiola está num clube em que a ambição dos adeptos é não descerem de divisão e, enquanto o rival da cidade estiver pior, a imprensa vai sempre far mais foco a Mourinho. Pode ser que com duas entradas ele consiga implementar as suas ideias. Ou então não, e surpreende nos novamente.

  5. Fantástico como sempre Nuno!

    É incrível como quando os treinadores “abandonam” as suas ideias muito raramente conseguem ter sucesso. Foi assim com Mourinho, quando decidiu abdicar de jogar futebol, e será com Guardiola se perceber que a solução não é ser mais 1 em 20.

    Depois há sempre o perigo de “perderes” os teus jogadores, pois se nem tu próprio acreditas naquilo que começaste a tentar implementar, dificilmente vais conseguir convence-los que o que lhes apresentas é a melhor solução.

    Muito curioso para ver o desenvolvimento deste City.

  6. Caro Nuno Amado

    A realidade é outra, não é só Guardiola que está a adaptar-se à Premier League, os outros também adaptaram-se ao modelo e às dinâmicas do modelo de Guardiola.

    • Ora aqui está um belo comentário do amigo Superleão. Só faltou dizer que a maior parte das outras equipas não é tão boa como a de Guardiola. O que significa isso? Menos jogadores a ir à selecção, logo mais sucesso e mais próximas de conquistarem a Champions.

    • Não é nada disso, Superleão. O Guardiola é que anda a brincar às selecções, ao contrário dos outros! Aqui tens mais um exemplo que atesta a validade da tua teoria.

  7. Artigo fantástico. Há uns tempos num post sobre o Guardiola referi que não acreditava que o facto de todos jogarem “mal” fosse uma desvantagem para quem quer jogar “bem”, o que eu achava ser o problema foi precisamente Guardiola estar a abdicar gradualmente das suas ideias, estando agora a chegar ao patamar do irreconhecível. Meteu-me impressão ver no jogo com o Burnley, principalmente na primeira parte, a quantidade de bolas despachadas na frente pelo City, contra uma equipa que teoricamente teria toda a vantagem nos duelos físicos e que se sente muito mais confortável quando a bola está no ar, assim como o querer acelerar a todos os momentos, e as dificuldade em jogar dentro do bloco. A própria escolha dos jogadores torna difícil de acreditar que estamos perante uma equipa de Guardiola. O facto de o City parecer depender neste momento mais de Sterling do que de Silva é sintomático, assim como o tempo de jogo que Iheanacho tem esta época, entre outras escolhas que revelam claramente que aquilo que Guardiola pensa neste momento nada tem a ver com o que pensava há uns meses atrás. Contudo não deixa de dar que pensar que génios como Mourinho foi em tempos e como Guardiola sempre foi até agora, treinadores que já demonstraram no passado perceber melhor o jogo que 99% dos habitantes do planeta, tenham sentido necessidade de jogar um futebol mais pobre. Tenho ouvido diversas vezes, inclusivamente por parte de alguns treinadores, que no futuro próximo o futebol vai ser um jogo de transições e que a organização ofensiva vai ser um momento cada vez menos trabalhado, e agora até Guardiola está a dar razão a essa tendência. Conte e Klopp, por exemplo, apesar de terem modelos muito bem marcados e de estarem com eles a ter sucesso, são muito mais virados para os momentos de transição ofensiva do que era Guardiola. Espero sinceramente que esta época não se revele o canto do cisne do bom futebol, mas é muito mais provável Guardiola saber o que está a fazer do que nós termos razão. E isso é o que mais me preocupa.

  8. Artigo muito bom, Guardiola foi de facto vitima desses maus resultados, incrivel como um jogo, às vezes muda tudo, e para mim se o City tem ganho aquele jogo contra o Chelsea, o Man City hoje, era outro (e o campeonato tambem) que catapultou a equipa para uma falta de identidade tremenda.

  9. Excelente! Grande contratação foi o Nuno! O vosso nível está soberbo! Prontos para seguir para a TV ou no mínimo para os jornais…

  10. De facto!

    O jogo contra o Liverpool, por exemplo, está no top de mais horríveis que já vi em equipas do Guardiola.

    Charutos sem fim e o Sterling contra o mundo. Chato. Enfim, vamos ver se o homem consegue acertar a agulha.

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