A cultura do medo

Ao contrário do que nos querem fazer crer aqueles que demonizam as redes sociais e o mundo atual onde a comunicação se transformou num produto instantâneo, a imposição da cultura do medo não é um fenómeno recente. Bem pelo contrário, existirá desde os tempos mais antigos da raça humana e vai encontrando novas formas de expressar. No âmbito da Psicologia do Desporto, este é um tema por demais estudado, sendo que no desporto de alto rendimento o medo é um emoção bem presente no quotidiano das equipas.

Medo e comportamentos motores

Se nos escalões de formação, e sobretudo quando estamos a falar de atletas em início de prática desportiva, a questão do medo surge, muitas vezes, associada a um pânico perante a tarefa, por haver uma aprendizagem motora a fazer, quando falamos de atletas de alta competição, o problema do medo e dos comportamentos motores expressa-se, sobretudo, ao nível do medo das lesões. Como explicam Marta Zubiaur González e Alfonso Gutiérrez Santiago, dois investigadores espanhóis:

Chega a produzir-se um ciclo vicioso: por um lado surge o medo de se lesionar, enquanto por outro, a tensão produzida por esse medo, torna mais provável a lesão.

Nos atletas em que as lesões se tornam muito frequentes, é este comportamento que se revela, havendo mesmo casos em que os atletas desenvolvem um pavor físico, tornando mais demorado e complexo o processo de recuperação.

Medo e comportamentos psicológicos

No caso das questões mentais, os dois autores listam uma série de medos que tanto podem afetar atletas em formação, como atletas de alta competição, bem como acabam por afetar também os treinadores. Fala-se do medo do fracasso, o medo da avaliação negativa, o medo de ridículo social e o medo da competição. Uma vez mais, quem tenha experiência de campo não achará estranho nenhum destes pontos, visto que fazem, realmente, parte do quotidiano das equipas e vão sendo ultrapassados, com menores ou maiores complicações, pelos próprios atletas, felizmente cada vez mais apoiados ao nível da presença de técnicos preparados para o efeito.

A questão do medo da competição tanto pode ser provocada pela negativa como pela positiva. Ou seja, se o medo de perder parece ser aquele que é mais aceite socialmente, o medo de ganhar também tem impactos fortes em determinados atletas e treinadores, sendo, eventualmente, mais complicado de gerir em termos emocionais perante aqueles que o rodeiam.

Nikefobia significa, literalmente, medo da vitória, fenómeno durante o qual o atleta rende mais no treino do que na competição, mantendo-se afastado dos momentos competitivos ou falhando quando a vitória parece segura

Stefano Tamorri

O medo de ganhar traz complicações perante o crescer das responsabilidades e expetativas sobre a participação desportiva, os incómodos relacionados com o sucesso (reconhecimento, publicidade, estatuto social, obrigações a nível de treino) e a perda do conforto perante essa situação, bem como na relação pessoal com aqueles que o rodeiam, gerando-se um certo sentimento de insegurança sobre os interesses de quem está próximo.

A imposição do medo, um ato social

Para quem se mantém na fronteira do acontecimento desportivo, como espetador ou adepto, a cultura do medo passa muitas vezes despercebida. No entanto, é um ato social poderosíssimo que condiciona a ação daqueles que, em certa medida, julgamos apoiar.

A forma como reagimos às ações dos atletas e dos treinadores que seguimos têm efeitos que não controlamos. E é nessa alfabetização para o desporto que estará uma das chaves da evolução da cultura desportiva. Na forma como condicionamos atletas e treinadores, ora exigindo mais sem reconhecer o trabalho prévio à participação competitiva, ora apontando defeitos e falhas quando atletas e treinadores estão inseridos num processo de evolução com vista ao atingir de objetivos internos, tem um peso enorme sobre a ação daqueles que pretendemos apoiar. Os círculos viciosos são, desta forma, criados a partir dessa cultura de imposição do medo, onde o falhanço acaba por ser, em parte, gerado, pela pressão do medo de falhar.

Campo de futebol

Um campo vazio, o espaço onde, finalmente, ninguém erra. Por ali, nada se vê. Nem a pressão sentida por quem participa na ação (fazendo), nem a ignorância de quem crítica aquilo que não conhece.

Artigos citados

Marta Zubiaur González e Alfonso Gutiérrez Santiago – Factores implicados en el miedo a aprendizajes motores. 

Dante Nieri – El Miedo al Éxito. 

Sobre Luís Cristóvão 103 artigos
Analista de Futebol. Autor do Podcast Linha Lateral. Comentador no Eurosport Portugal.

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