A favela está aqui. Fábricas de talentos.

“The favela is here” empunhava Tite depois de vencer o Mundial de Clubes.

Talvez apenas quisesse homenagear o seu povo, mas a verdade é que muito do sucesso do futebol do Brasil tem origem no seu estrato social. Não é somente por serem milhões e milhões, e terem um campo de recrutamento infinitamente superior ao de qualquer país europeu, a parte social e económica de um país que ainda não empurra as suas crianças para os videojogos e para uma vida mais sedentária, mas antes os obriga a passar horas a fio na rua, jogando o jogo, serviu e serve como catalizador de tanto talento.

Horas intermináveis de prática construindo uma habilidade motora e capacidade técnica como poucos outros. A selecção feita de forma natural, sem a presença do adulto, que obriga ao esforço redobrado de cada criança ou jovem se quer de facto participar. Se quer triunfar.

Mas nas incubadoras de talentos que visitei a prática era o grande evento, o centro do mundo, o foco da vida diária. Essa perspectiva leva ao sucesso porque depois de algum tempo a prática adquire um caráter transformador se for executada corretamente, de forma intensiva. Para alcançar esse nível de prática é preciso se esforçar, ou seja, ir um pouco além da sua capacidade atual, passando um tempo na zona de dificuldade que chamamos de “ponto ideal”. Para isso é necessário criar um espaço de prática que lhe permita continuar comprometido com o seu objetivo, testar suas habilidades ao longo do tempo, superar-se e praticar repetições, para que suas ações se tornem rápidas e automáticas

Daniel Coyle

Poucos países a uma escala mundial terão as condições sociais e até climatéricas tão perfeitas para ver crescer o talento no futebol quanto o Brasil. A liberdade de que as crianças beneficiam na sua prática e o tempo de prática que se exponencia em idades tão relevantes para o crescimento assim o ditam.

O muito sucesso numa era em que somente o talento bastava para se triunfar trouxe a arrogância de um país que efectivamente tem capacidade para produzir mais e melhor que qualquer outro.

Terá a humilhação histórica na sua própria casa, aos pés da selecção europeia da Alemanha servido para repensar a postura perante o jogo, aumentando a predisposição para a aprendizagem? É que nos dias de hoje, a tomada de decisão naquilo que é a individualidade e a forma como a equipa se move do ponto de vista colectivo é fundamental para se poder triunfar de forma sistemática.

Ter a humildade para reconhecer a evolução de um jogo que já não dominam, aprendendo sobre ele para posteriormente maximizar as capacidades de tanto talento que se pode produzir poderá devolver ao Brasil o domínio do futebol mundial. Para já, os sinais de retoma são bons.

Por cá, a necessidade é praticamente a oposta. No conhecimento e em como o trabalhar a um nível mais elevado, poucos terão a qualidade dos portugueses. Porém, de ano para ano se tornam mais complicadas as possibilidades de fazer emergir o talento. Porque nem sempre se usa o conhecimento da forma correcta, acabando por se coarctar a individualidade. Porque se quer tudo demasiado cedo. Porque os tempos de prática diminuem para níveis cada vez mais baixos.

Muito recentemente enquanto passávamos pelos bairros no Concelho da Amadora, dizia-me o pai de um dos bons talentos, internacional do futebol português:

Muitas vezes jogaram nesta rua o meu miúdo, o Rúben, o Gélson, o Renato… o Ré (futsal), o Canina (Pedro Costa, futsal)…  o Rui Costa parava mais naquele ali… são tantos que nem me lembro de todos…

Não será por certo um microclima próprio do bairro que transporta miúdos à condição de internacionais portugueses em desportos onde a bola viaja colada no pé. Mas antes o crescer com as condições que potenciam a repetição de um jogo para o qual ninguém nasce. Mas cresce.

Não terá sido portanto um espanto quando participando num projecto recente com, entre outros amigos, o Ricardo Ferreira e o Luís Cristóvão aqui do blog, que visava a construção de raiz de uma Academia de Futebol, se tenha priorizado de comum acordo a todos, também a construção de campos de futebol de 5 com tabelas, de mini futebol (3×3) com 4 balizas em sintéticos, de um campo de cimento e até um outro de futebol de praia. Tudo com o intuito de aumentar liberdade, variedade e tempos de prática.

Sobre Paolo Maldini 3828 artigos
Pedro Bouças - Licenciado em Educação Física e Desporto, Criador do "Lateral Esquerdo", tendo sido como Treinador Principal, Campeão Nacional Português (2x), vencedor da Taça de Portugal (2x), e da Supertaça de Futebol Feminino, bem como participado em 2 edições da Liga dos Campeões em três anos de futebol feminino. Treinador vencedor do Galardão de Mérito José Maria Pedroto - Treinador do ano para a ANTF (Associação Nacional de Treinadores de Futebol), e nomeado para as Quinas de Ouro (Prémio da Federação Portuguesa de Futebol), como melhor Treinador português no Futebol Feminino. Experiência como Professor de Futebol no Estádio Universitário de Lisboa, palestrante em diversas Universidades de Desporto, Cursos de Treinador e entidades creditadas pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ). Autor do livro "Construir uma Equipa Campeã", e Co-autor do livro "O Efeito Lage", ambos da Editora PrimeBooks Analista de futebol no Canal 11 e no Jornal Record.

7 Comentários

  1. Infelizmente tambem ha outra razao para as condicoes socio-economicas “ajudarem” ao desenvolvimento do talento: a falta de alternativas tanto em termos do que fazer nos tempos livres como em termos de futuro professional.
    Nao sei se havera estudos que olhem para esses dados, parece-me haver, por varias razoes, uma grande correlacao entre atletas profissionais de elite e o estrato socio-economico de origem. O empenho nas actividades escolares de grande parte desses miudos esmorece quando se apercebem que terao alguma hipotese de serem atletas profissionais e muitas vezes os pais nao querem ou nao teem condicoes para criarem os incentivos que levem os miudos a nao desleixar os estudos.
    Mas tanto ha pais que limitam o desenvolvimento desportivo dos filhos pela pressao que poem em cima deles, como ha pais que limitam esse desenvolvimento por quererem que os filhos se desenvolvam de uma forma que lhes de opcoes diferentes no futuro, limitando o tempo que dedicam a pratica de desporto, e uma maior dedicacao a pratica do desporto em detrimento do seu desenvolvimento escolar.

  2. Li superficialmente um artigo de um sociólogo brasileiro que entre outras coisas, lançou a teoria de que a diminuição da qualidade do jogador brasileiro hoje, se deve à melhoria das condições sócio-económicas do país. Se antes o menino pobre da favela só via o futebol como única alternativa pra sair da pobreza, hoje já há um pouco mais de oportunidades estudar e se formar numa área profissional qualquer.

    Nem sei se o autor deste artigo foi o Maldini ou outro qualquer. Todos são bons e gosto muito deste blog. 😀

    • Caro Nairo

      A qualidade do jogador brasileiro não diminuiu, houve sim uma forte melhoria da qualidade dos jogadores noutros países e essa melhoria deve-se essencialmente ao investimento no FUTEBOL PROFISSIONAL que tem crescido exponencialmente.

      A própria formação/formatação no Brasil melhorou significativamente com investimento não só em infra-estruturas como também nos recursos humanos.

      Já ninguém procura jovens jogadores nas várzeas, na praia ou nos pelados, procura-os em competição; quem quiser ser jogador no Brasil, ou passa pelas academias ou CTs dos clubes e são aos milhares.

      Segue-se a peneira em várias fases, formar/formatar e potenciar os jogadores.

  3. O que é engraçado, e concordo em absoluto com o post, é que, para se cfiarem talentos, as academias apenas precisavam de pelados, pedras para as balizas (caso eles não levassem mochilas), e pouca ou nenhuma organização na escolha das equipas. Era deixá-los entrar em campo e jogarem até caírem para o lado… 🙂

    Depois, pouco a pouco, ver este ou aquele miúdo e, antes de ele entrar em campo, dizer-lhe: “se quiseres, faz antes assim, ou experimenta movimentar-te daquela maneira”… sem impor, só a sugerir. E se aparecesse um com mania, era pôr outro mais velho em campo para lhe dar umas cuecas e baixar a bolinha… era tudo, de facto, tao mais simples se as academais existissem apeans para eles terem os espaços que nós tínhamos na rua, como nós tínhamos na rua… 🙂

    Parabéns, um post excelent, como sempre 🙂

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