Novo Normal

Bem vindos ao presente. Ao chamado novo normal que uma facção vê como apocalipse e outra como teoria da conspiração. Vale tudo para tentar validar e encontrar correspondência no mundo físico para as ideias que temos na cabeça. E no que ao futebol diz respeito, esse tal novo normal vem sido construído durante toda a década. Que hoje por hoje o Paços de Ferreira visite o Dragão e que o resultado seja uma incerteza, nasce em boa parte da evolução que muitos teimam em não ver por parte das pequenas e médias equipas da nossa praça. E essa evolução torna a diferença em campo muito menor que a pré-histórica expectativa de equipas desse calibre terem, quase que obrigatoriamente ou porque sim, de levarem cinco ou seis no terreno dos grandes. Estéticas à parte, hoje os treinadores (porque vivem de resultados e não de bitaites) tentam tirar do jogo as valências dos adversários. E são cada vez mais competentes a fazê-lo. Se isso estraga de alguma maneira o espectáculo visual – que será bom ou mau ao gosto de cada um – é absolutamente secundário e compreensível.



Vivemos pois num Mundo altamente polarizado, onde, habitualmente, duas facções tentam tornar hegemónica a sua ideia. Algo tão antigo como a humanidade mas que nunca encontrou sucesso absoluto, pelo tão simples facto de que algo hegemónico atrai sempre uma força oposta. E para o tão propalado jogo de posse a evolução (sem conotações boas ou más) tratou-se de refinar as estratégias defensivas com o propósito de virar o feitiço contra o feiticeiro. Ao reduzir os espaços entre-linhas, ao bascular de forma inteligente entre dois corredores (deixando o mais distante descoberto), ao deslizar entre subir e descer para controlar profundidade, a atenção e aglomeração em relação ao centro do jogo, tornou a posse de bola em algo perigoso. Não a posse dos livros, a que sai sempre bem, mas aquela que no relvado (onde interessa) precisa agora de um grau de eficácia muito mais elevado do que há uns anos. E por causa destas (e de muitas outras coisas) é que hoje o Paços de Ferreira visita o Dragão e o FC Porto passa 45 minutos com a atenção virada para não conceder transições.

FC Porto tentou evitar jogar pela zona central, procurando com maior verticalidade o último terço (ou os corredores laterais) para ficar de frente para a bola no momento defensivo



Sim, a história é conhecida. O Porto visitou a Mata Real já nesta época e lá, segundo Sérgio Conceição, os portistas fizeram o seu pior jogo desde que o técnico bicampeão nacional e detentor da Taça de Portugal está ao comando da equipa. Um jogo onde os pacences souberam atrair o jogo dos dragões para uma zona extremamente coberta e de impossível penetração, para depois, vertiginosamente, aproveitarem a transição e o lado que o FC Porto deixava descoberto. Resultado: uma lição de futebol daquelas, a um FC Porto que sentiu na pele que o domínio com bola (ou a tentativa dele) pode ter os seus dissabores.

O Paços é uma equipa extremamente competente a aproveitar desposicionamento. Qualquer falha (natural mesmo que com cautelas) e os de Pepa apareciam no jogo. FC Porto contrabalançou deixando sempre um número de elementos que garantiam segurança



Obviamente, em teoria, nenhuma opção é pior que outra. E, realmente, o tempo que perdemos todos em tentar elevar umas em relação a outras poderia ser mais bem gasto a tentar criar algo novo. Um pouco como visitar cinco espaços de diversão noturna e ouvirmos em todos eles música dos anos 60, 70, 80 ou 90. Tudo muito bonito, tudo muito bom som mas… estamos em 2020. E o futebol, ao contrário da música, joga-se no som do agora. E o que é preciso, ou possível agora, pouco tem a ver com a altura em que formámos a nossa ideia sobre o que deve ser o jogo – ideia essa que no campo, normalmente, leva chapadas da realidade. A questão é: é o que nós queremos, ou o que o jogo quer?

A batalha entre os treinadores para encontrar pontos de vantagem não pode ser travada por razões estéticas. O FC Porto sabia da insegurança pacense no jogo aéreo e, com dois lançamentos longos, criou uma bola ao poste e um golo (Pepe e Leite escondiam-se para ganhar o primeiro poste, Martinez e Sarr ganhavam as sobras). Qual seria o resultado do jogo se o FC Porto renunciasse ao lançamento longo?

E Sérgio Conceição, depois das três lambadas que levou na Mata, resolveu tirar aos de Pepa o seu maior ponto de vantagem. Jogando directo, acabando jogadas, acautelando perdas com muitos de frente para a bola, o técnico portista roubou o espaço para o Paços surpreender. O problema é que para o conseguir, Sérgio viu a equipa perder grande parte da sua qualidade com bola, o seu jogo posicional e organização ofensiva. Não surpreende pois que, à parte de duas situações (com as quais Sérgio contava pela qualidade de Luis Diaz e Corona – Felipe Anderson mais uma vez não correspondeu) o FC Porto pouco tenha feito para conseguir aquilo que todos os seus adeptos têm em mente. Será tempo também dos mesmos compreenderem que à procura de retirar pontos de vantagem aos adversários, algo das nossas equipas tem de ser deixado para trás. Mas para isso terão que aceitar ou compreender que as diferenças de hoje já não são tão abissais como há duas, três, dez ou quinze épocas. Do outro lado a competência encurtou o fosso e hoje, onze atrás da linha da bola, não é um amontoado de jogadores a ocupar espaços. O critério existe e está lá, o que torna um bico d’obra não só desfazer organizações como não conceder transições que possam matar toda a normal assumpção de que um grande tem sempre de desfazer um pequeno.

Um pequeno pormenor pode fazer diferença entre golos sofridos e clean sheets: Diaz tenta decidir por Adriano e concede-lhe o espaço central que o covilhanense aproveitou para reduzir. Conter e fechar teriam, muito provavelmente, ter sido mais eficazes



E a somar a tudo isto juntamos duas coisas que também pesaram neste jogo: A recorrência de golos sofridos dos dragões nas competições internas (onde tem de assumir mais o risco, ao contrário da Champions) e o sempre intrigante balanço entre criatividade ofensiva e intensidade na ocupação de espaços e no duelo. Não foi portanto, já na 2.ª metade, com Felipe Anderson (um criativo de gema) que os portistas partiram para o exigido acesso à final-four. Foi com Otávio, que emula na perfeição esse balanço entre atacar e defender tão imperativo no futebol moderno, que o assalto começou finalmente a acontecer. Daí, e do recurso sem pejo nem vergonhas a recursos considerados inestéticos – como lançamentos longos (de onde surgiu o primeiro golo) e jogo mais vertical – o FC Porto foi materializando com golos (dois) mas sem o brilho e a fluidez que o respeito necessário pelo Paços lhes roubou. Algo que o golo de Adriano comprova, visto que uma pequena desatenção (Luis Diaz deveria ter contido e tapado ao invés de tentar adivinhar queimando-se) pode custar caro. Noutras eras talvez não tanto, mas este é o novo normal, lambramos.

Muito interessantes as reposições com o pé e rasteiras de Jordi que foram uma constante no jogo (a bola sai mais rápida e precisa e dá muito menos tempo para o adversário repor). Com um só passe o guardião do Paços tirou duas linhas do Porto do lance e, instantaneamente, criou um lance de real perigo com 0-0 ainda no marcador. Todo o pormenor é hoje tido em conta e por isso também a diferença entre grandes e pequenos vai sendo esbatida.
Dificuldades para o FC Porto controlar a jogada. Pepe deixa fugir João Pedro e Diogo Leite é atraído pelo ponta-de-lança, abrindo espaço para Amaral. Incrível reação de Pepe, a mostrar toda a sua incrível forma física, vai impedir males maiores e corrigir um erro de decisão e posicionamento (a conferir no vídeo abaixo)

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