Roberto Baggio responde à Pelé – Edson Arantes do Nascimento – Um dos poucos que viu o Lateral Esquerdo nascer

O CAN terminou recentemente e não havia praticamente nenhum jogador abaixo de 1,80 metros. Isto significa alguma coisa? Há algumas conclusões que possamos tirar? À partida parece-me um pouco estranho, confesso.

Em primeiro lugar diz-me que os jogadores africanos, morfologicamente, são brutais. São muito dotados. Têm uma base e um histórico genético e morfológico que é fora do comum. Isso é potencial. Eu não critico. Se a minha equipa tiver jogadores muito fortes fisicamente, e se defrontarmos equipas do mesmo nível técnico e táctico, é uma vantagem clara. O futebol africano poderia aproveitar estas coisas. Mas não o faz. O que se faz é pegar nessa base física e tentar aproveitá-la por si só. No CAN não havia jogadores mais baixos, mas também não havia praticamente equipas a jogar um jogo evoluído. E é por isso que as selecções africanas têm e vão ter, se não evoluírem, muitas dificuldades em chegar perto das outras.
De que forma se deve combater esse problema?
Sabendo que os jogadores vão crescer fisicamente, o que é preciso é que também se possam criar condições para que os atletas cresçam em termos de conhecimento do jogo. Se jogarem com inteligência, não tenho dúvidas que as equipas africanas vão ser muito fortes. Por exemplo, temos um grande exemplo no Manchester City – o Yaya Toure. Mas vamos ver a formação que ele fez: em África, foi quase nenhuma. O Yaya Toure foi formado na Europa.
Primeiro no Mónaco (França) e depois na “universidade” que é o Barcelona (Espanha).
E não tenhamos dúvidas que esse trajecto na Europa é o grande responsável pela forma inteligente como ele se movimenta. É um jogador brutal e se conseguissemos replicar esse tipo de jogador, que joga de forma inteligente, com aquela capacidade física, o futebol africano dava 10-0 a muitas outras regiões do mundo.

Mas não havendo trabalho de qualidade na formação, não acha que os treinadores se defendem seleccionando o mais forte, o mais alto, o mais agressivo, porque pensam que é a única forma de tentar vencer? Por exemplo, o ASEC Mimosas, da Cote d’Ivoire, tem sempre uma série de jogadores baixos, ágeis e rápidos, mas normalmente acabam por desaparecer.

Tem tudo a ver com a ideia de jogo. Se digo que vou jogar de uma determinada forma, tenho de levar jogadores com essas características. Se não estarei a ser incongruente até com a minha ideia de jogo. Como a maior parte dos jogadores tem essa morfologia, acaba por ser uma desculpa para basear o jogo nos aspectos físicos (força, velocidade, agressividade). Não há melhor forma de contornar a imponência física do que com a inteligência. Se eles correm muito, então vamos fazê-los correr para onde queremos, para depois atacá-los onde estão mais frágeis. Veja-se a selecção espanhola: mesmo com jogadores pequenos e não tão rápidos, duvido que não goleassem a maioria das equipas africanas. Exactamente porque fazem correr o adversário e são muito inteligentes.

Em África fica sempre a sensação que há muita falta de competência ao nível dos treinadores.

Até pode ser, mas a realidade é que é muito difícil mudar ideias feitas. Para criar uma mudança não chega apenas um treinador ou apenas um clube. É preciso uma abrangência maior. Tem de ser uma decisão colectiva de todo um país, de mudar o rumo, para que as alterações possam ser profundas. Se não vamos estar aqui a bater no muro e cada um a remar na sua direcção.

É isso que falta: uma visão comum? 

Não é só no futebol africano. É basicamente em todo o mundo. Mesmo em Portugal sinto muitas dificuldades em partilhar ideias. O melhor exemplo que temos actualmente é a Alemanha. Tomaram uma decisão, ao nível da federação e do próprio governo e identificaram as dificuldades. Tinham sempre jogadores fortíssimos fisicamente mas depois começaram a ter insucesso nas provas internacionais. Tinham pouco talento individual. E a relação com a bola da maioria dos seus jogadores não era a melhor – ou seja, perceberam que não jogavam bem, dentro da evolução natural do futebol. Isto foi há dez anos. Tomaram uma decisão colectiva e mudaram uma série de coisas. Mas foi todo um país que o fez. Não foi apenas um clube. E os resultados estão à vista. Repara que a actual selecção alemã raramente dá um chutão, todas as jogadas começam a partir de trás. A ideia deles é conseguir jogar sempre dentro do seu estilo. E agora com jogadores baixos.

Isto não acontece por acaso porque há uma mudança total nas ideias de jogo e no perfil do jogador alemão. Há um novo padrão.

Claro. Em África, enquanto não houver uma decisão colectiva, e enquanto não se perceber que, mesmo tendo menos condições que os outros, pode-se fazer um trabalho muito melhor, não vamos longe.

A parte mais triste é que o potencial é brutal: falamos de sociedades muito jovens (ou seja, com um largo campo de recrutamento) e com muitas horas de prática de futebol de rua – algo essencial na criação da tal relação com a bola.

As horas de prática são uma questão muito importante, porque desenvolvem as qualidades técnicas, a criatividade e outras questões importantes para jogar bem. Mas a condição essencialíssima para que se possa inverter o trajecto é o gosto que a população tem pelo jogo (não falo apenas dos miúdos).

Os africanos, em termos gerais, adoram desporto e especialmente futebol.

É um continente com um grande potencial para o desporto. A base genética permite encontrar jogadores fisicamente muito evoluídos, que já sabemos à partida que vão ser rápidos, fortes, e que ainda encontram a possibilidade de ter muitas horas de contacto com a bola. Se houvesse uma mudança de mentalidade, o futebol africano poderia evoluir muito, muito, muito. Mas lá está, neste momento duvido que um treinador que vá para África com ideias diferentes tenha sucesso. Porque está sozinho a remar contra os outros todos (adeptos, imprensa, dirigentes). E isso influencia o projecto e o espírito e o compromisso dos jogadores. Tem de haver uma mudança colectiva.

Quando vem a Luanda, pelo menos uma vez por ano, costuma assistir a alguns treinos dos clubes angolanos. Mesmo olhando de fora e sem aprofundar muito a perspectiva, qual é a sua opinião sobre a formação em Angola? Ainda hoje temos clubes no Girabola sem equipas de formação. Que caminho se deveria fazer?

Não acho estranho haver clubes sem formação. O que eu acho é que a formação tem de melhorar. Mais do que pegar nos jogadores e dizer que temos de mudar isto, isto e a quilo, é preciso pegar nos treinadores e dar-lhes formação. Formar os formadores. Ou pegar em formadores competentes e trazê-los para Angola – só que isso é mais caro.

O que falta ao jogador angolano?

Inteligência a jogar futebol. Falta conhecer o jogo. Vês um jogador angolano no relvado e aquilo é tudo instinto. Correria para aqui e para ali, chuto sem nexo, decisões desconexas. Olhas para as acções deles e não vez intencionalidade nenhuma. Zero. Ele fez aquilo e nem sabe bem porquê. Não consegue explicar e ninguém lhe vai dizer nada. Precisamos de começar a dotar os jogadores de inteligência.

Como?

É preciso um treino que lhes exija isso. E depois é preciso educar os jogadores com conversas. Faço isto muitas vezes com os meus juvenis: discuto com eles jogos de outras equipas. Sento-me com eles a ver jogos, faço-lhes perguntas, pergunto-lhes qual é o seu jogador preferido. E a partir dali trocamos ideias. É uma forma de se interessarem por perceber e entender mais sobre o jogo. Pensar a sério sobre o jogo. Valorizo muito as aprendizagens dentro de campo, mas se calhar o mais importante é o que se passa e o que se aprende fora de campo.

Aqui tocamos na questão das lideranças, mas em Angola a relação com os líderes normalmente é muito fechada. Não há comunicação nem proximidade.

Eu acho que as relações de liderança são tão melhores quanto mais afectivas forem. Se conheceres o jogador e perceberes que está triste e conseguires uma forma para ele ser emocionalmente estável, isso é excelente. Não concordo muito com a distância que os líderes, em Angola, cultivam em relação às outras pessoas. Discuto muito com os meus jogadores, falamos muito e eles discordam muitas vezes de mim. Deixo isso acontecer à vontade. Tento mostra-lhes uma outra solução, mas tudo numa base de discussão aberta. E dou-lhes muita responsabilidade com horários e essas coisas, sempre com muita liberdade.

Por outro lado, chegamos a ver campos (nos campeonatos provinciais para os escalões jovens, por exemplo) que não são relvados, nem pelados, muitas vezes são autênticos “ervados”. As infra-estruturas são importantes?

Sim. Mas, na minha opinião, e já passei por campos que também não lembravam a ninguém, é dentro destas dificuldades que surgem os melhores jogadores. Um jogador que está constantemente a ser desafiado tecnicamente, neste tipo de campos (relvados lentos, e outros mais rápidos, com a bola sempre a saltar, depois com buracos, onde se fizer um passe pelo ar a bola muda de direcção e se fizer um passe rasteiro nunca se sabe onde vai parar) é possível desenvolver uma série de capacidades técnicas ímpares. Que facilitam a evolução do atleta e que é mais uma das características do futebol africano. Neste momento, na Europa, já não existe um certo tipo de fantasistas, daqueles que apresentam inúmeras soluções para diferentes contextos.

Porquê?

Porque os melhores jogadores vão ser sempre aqueles que têm milhares de horas na rua e que têm experiência em todos os tipos de contexto. Acho que é um desafio muito bom para os jogadores. Claro que é difícil jogar nestas condições, mas se insistirmos em jogar bem, em cumprir os princípios do jogo, é possível fazer coisas muito interessantes para o futuro e para o crescimento dos atletas. O mais importante é conseguir enquadrar todas as dificuldades. Isto é que faz a diferença. Se eu mandasse numa academia de formação ia querer ter campos de todos os tipos.
Temos estado a falar de jogar bem, de jogar com inteligência, de conhecer os princípios do jogo. O senso comum diz-nos que jogar bem é marcar cinco golos (até podem ter sido todos de penalty) e arrasar o adversário com uma vitória expressiva. O que é, para si, jogar bem?
É uma questão muito complexa e podíamos estar aqui a ter horas e horas de conversa sobre o assunto. Então é melhor ir desconstruindo e separando a informação para que possa ser melhor entendida. Jogar bem, para mim, em futebol, significa falar de uma equipa que cumpre com os princípios gerais de jogo. Todos os jogos têm regras, não as leis do jogo, mas regras que permitem aproximar a tua tarefa do sucesso. No futebol existem três princípios gerais e uma data de princípios específicos, para a defesa e para o ataque, que permitem chegar ao objectivo: no futebol, o objectivo é marcar golo. Meter a bola dentro da baliza. Não podemos fugir a isso.

Quais são os princípios gerais?

Os princípios gerais passam por criar superioridade, evitar igualdade numérica e recusar inferioridades numéricas. Porquê? Os princípios de jogo têm uma lógica: facilitar a tarefa dos jogadores e da equipa. Se tens superioridade numérica, e se consegues executar bem, há mais probabilidades de chegar ao sucesso do que se estiveres em igualdade perante o adversário. Se estiveres em inferioridade tens menos probabilidades de sucesso. Ofensivamente parece ser um conceito fácil de executar. Metes superioridade na zona da bola, estão dois ou três adversários e tu metes quatro ou cinco e parece ser um conceito fácil. Defensivamente já não é tão lógico porque metendo superioridade na zona da bola vão ficar muitos espaços livres no campo. Por isso também podemos separar, e devemos separar, os conceitos defensivos dos ofensivos (apesar de estarem todos ligados).

Porquê?

É importante separar porque precisamos de desconstruir. Para simplificar, ofensivamente podemos reparar em duas coisas: a bola, que é o centro de jogo, e os espaços à volta, os espaços que sobram. Para além da superioridade numérica no sítio onde está a bola, é fundamental dar muitas soluções de passe ao portador da bola. O campo deve ficar bem preenchido para facilitar a circulação por todo o campo e dificultar a tarefa de recuperação do adversário. Quanto mais metros o adversário tiver de percorrer para te tirar a bola, mais difícil será para ele.

Quanto mais próximos os jogadores estiverem uns dos outros mais difícil será sofrer golos. É esta a lógica?

As acções são mais difíceis porque há menos espaço para pensar e para executar. O futebol, hoje em dia, é muito isto: ganha quem tiver mais qualidade para jogar nos espaços mais bem preenchidos pelo adversário, e não quem procura sempre as zonas mais abertas. Defensivamente as equipas já se conseguem adaptar a essa situação. Mas eu prefiro separar a análise pelas zonas do campo onde a bola está.

Em que sentido?

Quanto mais longe a bola estiver da baliza, menos agressiva poderá ser a tua abordagem defensiva ao lance. Mas, por outro lado, quanto mais longe a bola está da tua baliza, mais perto está da baliza adversária. Se conseguires recuperar a bola nessa zona, perfeito, ficas muito próximo do golo. Já no processo defensivo, podes até nem ter superioridade numérica na zona da bola. É mais importante ter os jogadores bem posicionados no resto do campo. Só isso já dificulta a missão do adversário. Quanto mais perto a bola chega da tua baliza, mais agressivo tem de ser o comportamento colectivo: sair rápido na bola, estar sempre entre a bola e a baliza (essencial), garantir as coberturas, diminuir o espaço e o tempo do adversário para dificultar a sua tarefa. Quanto mais perto estás da tua baliza mais próximo estás de sofrer golo.

Costuma fazer questão de dizer que pensa sempre na equipa de forma global, e por isso, a defender é muito mais importante a organização e a forma como se reage colectivamente (marcação à zona) do que olhar para as movimentações individuais do adversário. Mas a maior parte das pessoas e dos jornalistas analisam sempre os jogos na perspectiva individual: se fulano marcou um golo é logo o herói da partida, não interessa sequer como aconteceu o golo. Às vezes os dois passes anteriores é que foram verdadeiramente decisivos. Porque é que pensar de forma global é sempre muito importante?

Isso está relacionado com os princípios gerais de jogo, que falei anteriormente. São facilitadores porquê? Porque se um jogador falha, existe logo outro colega para resolver o problema. Ou seja, o erro de um atleta pode ser corrigido pela equipa. Se organizas uma marcação individualizada, e é por isso que eu não gosto dessa ideia, um erro representa basicamente um golo sofrido. Vamos imaginar dez jogadores em campo a marcarem outros dez jogadores. Se um jogador é eliminado, está o desequilíbrio criado. Por mais que estejas longe da baliza, quando um jogador teu é ultrapassado, isso vai permitir que o adversário crie superioridade numérica de forma constante. Mais grave ainda é que o homem-a-homem leva-te para onde o adversário quiser. Ou seja, se o adversário quiser encostar nove jogadores teus num canto do campo, tu vais ter nove jogadores apenas numa zona.

Algo – a concentração de jogadores em zonas não-vitais do campo – que tenta evitar ao máximo nas suas equipas.

É algo que simplesmente não acontece. Mas o que queria reforçar não são os aspectos negativos da marcação individual mas os aspectos positivos da marcação à zona: é uma ideia que junta muita gente na zona onde está a bola (o que dificulta logo a tarefa do adversário) e resguarda os espaços mais importantes. No futebol não precisas de defender o campo todo.

Até porque é uma missão quase impossível. Um campo de futebol tem cerca de um hectare e tem uma regra que mexe com a dimensão real do campo: o fora-de-jogo.

E se defendes o campo todo vais abrir muitos espaços para serem explorados. A equipa deve funcionar como um bloco. Um muro. Tens um jogador a sair na bola e atrás tens um muro que permite reagir rapidamente a qualquer eventualidade. E proteger o espaço essencial: a baliza. As referências da defesa à zona são a bola, em primeiro lugar, e depois a tua baliza. Toda a movimentação colectiva deve ser feita em função destes dois elementos.

Na defesa à zona há dois princípios essenciais: a contenção e a cobertura. O que significam estes termos?

Há duas coisas simples que é preciso perceber. Falo muito sobre isso e treino em espaços reduzidos para que os jogadores percebam melhor a ideia. Tem sempre de sair alguém na bola, alguém que se coloque entre a bola e a baliza (para proteger o caminho mais fácil para o golo). Isto chama-se fazer contenção. Se estiveres próximo o suficiente, mas não entre a bola e a baliza, é uma contenção mal feita. Depois, tens de garantir a distância certa, porque podes estar entre a bola e a baliza mas a dez metros do portador. Também não é uma boa contenção. É preciso estar a uma distância que não permita a progressão do portador ou da bola. Fazer a cobertura significa defender as costas de quem está na contenção. Sai um jogador na bola e os outros precisam de ajudar nas costas do colega. Os colegas que estão a ver atrás precisam sempre de adaptar a sua posição de forma a defender os espaços que ele não vê (porque está de costas para a equipa).
E em relação ao ataque organizado? Jogar com qualidade em organização é difícil, exige muito trabalho do treinador e uma proximidade muito grande entre os jogadores. Concorda?
É difícil porque exige muita repetição, muito treino, muita intervenção(feedback) do treinador, e exige ideias bem definidas. Hoje em dia, estávamos a falar da defesa à zona, e basicamente as equipas todas estão a evoluir nesse sentido. Defendendo à zona fica mais fácil contrariar certo tipo de ataques. Antigamente via-se muitos ataques pelos corredores laterais: jogadas simples, triangulações em direcção à linha lateral, e muitos cruzamentos para a área; no corredor central surgiam apenas remates de longa e média distância e, raramente, um ou outro passe de ruptura.

E esses passes eram normalmente assumidos pelos jogadores mais evoluídos.

Mesmo assim os passes de ruptura eram direccionados para o corredor lateral, em que o médio ou extremo acabava por fazer um cruzamento, ou transportar a bola para a grande área. Fazia sentido. Porquê? Porque abrias a equipa adversária, que jogava com referências individuais, e estavas a abrir espaços para ti. Com bola e espaço tudo é mais fácil de resolver. Hoje em dia, a maioria das equipas reagem não ao jogador adversário mas à bola, e mesmo que não defendam zona, defendem com referências mistas. O que se pede hoje em dia? Que se desorganize não só um jogador, mas que se desorganize o bloco defensivo contrário para aproveitar os espaços. É difícil, exige muito treino e muito trabalho. Não há fórmulas certas. Há, no entanto, estratégias que se usam para esse fim.
Quais?
Vamos pensar numa situação de dois jogadores contra um. É uma forma muito simples de jogar futebol. Para mim, a regra é simples. O portador da bola deve atrair o adversário, chamá-lo a si, e nesse caso o colega fica livre. Então ele deve soltar a bola no colega que, com espaço, pode fazer o que quiser. Esse comportamento pode ser passado depois para o colectivo, procurando atrair todo o bloco do adversário para um lado, para o meio e para outro lado, aproveitando os espaços que decorrem desta movimentação. Acontece que os adversários também já começam a perceber estas estratégias. E mantêm-se mais ou menos estáticos no corredor central. Aqui entram as estratégias avançadas. O Barcelona do Guardiola era inacreditável a fazer isto.

Porquê?

Porque provocava o adversário, já nem era a questão de o atrair, era ir até ao adversário, fazer com que o adversário tivesse que reagir (a bola estava aparentemente próxima), o adversário saía, e os jogadores do Barcelona tinham a capacidade de perceber os espaços que ficavam livres.

Esse Barcelona, na minha opinião, tinha uma virtude que me parece ser difícil de construir: aproveitava muito bem o corredor central, sempre com muitos apoios ofensivos para fazer a bola entrar em zonas perigosas e próximas da baliza. Os corredores laterais serviam apenas como uma espécie de muleta, para que a bola pudesse rodar mas sempre com o objectivo de voltar ao corredor central – e não o contrário. É uma análise correcta?

No futebol actual há sempre muitos jogadores a ocupar o corredor central. É preciso mesmo muito treino para ultrapassar isso com qualidade, porque os teus jogadores precisam de estar habituados a atacar com essa pressão toda. Por exemplo, se meteres jogadores entre as linhas do Atlético de Madrid se calhar tens um, dois segundos, para pensar e executar. É jogar a um toque ou mesmo a meio-toque. Por outro lado, é dessa forma, provocando no corredor central, que depois melhor consegues aproveitar as outras zonas do campo.

O Guardiola, nos tempos do Barcelona, até pela televisão se notava que ele ficava claramente irritado quando a equipa se orientava demasiado para os corredores laterais e quando recorria a demasiados cruzamentos.

É isso que exige muito trabalho. Os jogadores têm a tendência natural para fugir ao mais difícil e para escolher a via que tem menos risco. Este tipo de acções no corredor central exige muito mais risco. Lá está: com um, dois segundos, para pensar é muito mais fácil perder a bola. Então aqueles que não estão habituados e se o treinador não insistir e não lhes explicar toda a lógica dos princípios de jogo (não obrigando ou forçando nada junto do jogador, é um processo de aprendizagem), torna-se muito complicado ter sucesso.

Fala também bastante da capacidade de decisão. Para si, um bom jogador não é necessariamente o mais forte, o mais rápido, nem o que faz mais fintas, mas o que tem o jogo todo na cabeça. Que escolhe bem as suas decisões, com e sem bola. Qual é a razão?

Por todos os motivos que já falamos atrás. E porque as equipas são cada vez melhores a defender. Com equipas melhores a defender eles não defendem com um jogador apenas, defendem com vários. Para desmontar vários jogadores tens de ter na cabeça ideias que te permitam chegar ao sucesso. Antigamente era tudo um-contra-um, eliminavas um jogador, no máximo dois, e estava feito o golo (ou próximo disso). Era tudo muito mais fácil. Agora isso já não acontece, ou então é preciso ultrapassar quatro, cinco, seis e às vezes dez adversários. Para ultrapassá-los com qualidade é preciso ter um certo conhecimento do jogo, que facilite a tarefa e que permita atacar com mais sucesso.

Mas, neste caso, onde entra o conceito de capacidade de decisão? O que significa concretamente?

Como dizia, o futebol tem regras: falei dos princípios gerais, que se aplicam ao colectivo, mas depois há os princípios individuais. Há determinadas acções que facilitam o sucesso. Por exemplo, quando tens espaço qual é a melhor acção a tomar? É percorrer esse espaço com bola. Porquê? Porque qualquer outra acção acarreta um risco maior de perderes a bola. Se, com espaço para percorrer, em dois-contra-um (situação mais simples outra vez), passas logo a bola ao colega vais permitir que o defesa recupere rapidamente a sua posição. O risco é grande também porque o passe ainda pode ser interceptado. Isto é a tomada de decisão: se o adversário me pressiona, eu solto no colega, se ele vai na direcção contrária, eu avanço em direcção à baliza. Há aqui uma capacidade de entender o jogo que é essencial, na minha opinião.

E como se treina a capacidade de decisão? Parece ser algo inato. Com exercícios que proporcionem os estímulos correctos?

Com repetição. É uma parte muito complexa do treino. Esta nova vaga de treinadores gosta muito de falar na tomada de decisão, do treino, e então o melhor (acham eles) é pegar nos miúdos, colocá-los dentro do campo e apenas observar sem dizer nada. E os miúdos jogam e aprendem tudo sozinhos. Não é assim. A nossa missão é perceber por onde devemos ajudar o jogador a descobrir a solução. A nossa missão não é dar a resposta a todos os problemas.

Mas com exercícios seus, da sua cabeça, que alimentem a necessidade de colocar situações complexas aos atletas?

Pode ser. Mas o segredo está na forma como vais ajudar os jogadores. O exercício, por si só, não faz nada. O treinador calado não faz nada. O essencial é o feedback do treinador, a comunicação entre treinador e jogadores. Mostrando exemplos e conversando. Basicamente é direccionar o jogador a fazer as coisas com intencionalidade. E não jogar-por-jogar. Jogando e repetindo o máximo possível, em conjunto com a intervenção do treinador, criam-se raízes no cérebro. Desenvolve-se a capacidade cognitiva. Isto é essencial. Então ao nível da formação, mais do que correr, considero fundamental estimular a compreensão do jogo. É o mais importante.
No entanto, a formação (mesmo a nível internacional e mesmo ao nível do futebol profissional) está impregnada de decisões baseadas no físico dos atletas e não tanto nas suas capacidades cognitivas.
Eu percebo, porque facilita a tarefa dos treinadores. Não podemos fugir disto. As questões morfológicas, principalmente nas camadas jovens, facilitam muito o sucesso dos jogadores. O problema é que à medida que os outros vão maturando morfologicamente, mesmo que não crescam nem sejam tão rápidos, vão acabar por encontrar uma estratégia para derrubá-los. Actualmente tenho um jogador que quase não consegue correr. Mas ele consegue ser muito forte no um-contra-um, está sempre atento ao adversário e troca-lhe facilmente os apoios (a forma como estão orientados os pés). Depois não consegue galgar metros com bola, certo, mas como ele é inteligente rapidamente solta no colega melhor posicionado. E consegue ultrapassar um, dois, três adversários apenas com um passe. Porquê? Porque suprime as debilidades físicas com o cérebro. Com um grande entendimento dos princípios gerais do jogo.

O futebol de formação também vive muito a lógica do resultado. Só é bom quem ganha, sem se analisar o processo. No final de um jogo, qual é a pergunta mais lógica: é “ganhou?” ou é “então, jogou bem?”

A pergunta lógica é: como correu o jogo?
E a sua resposta como seria?
Respondia dentro dessa perspectiva. Explicava o que tinha acontecido, os problemas que o adversário nos causou, o que fizemos bem – e no final dizia o resultado. Na formação, o mais importante é o processo.

Só que a realidade é que o foco dos treinadores está sempre no valor da vitória. Não lhe parece desfasado do que deveria ser a realidade, mais centrada na aprendizagem e no espaço para cometer erros?

Concordo a 200 por cento. Mas não é só com os treinadores. Toda a gente quer ganhar. Isto está muito enraizado no futebol. Costumo dizer, porque trabalho e vejo muitos jogos da formação, que quando um treinador da formação festeja um golo, para mim está tudo dito sobre o seu trabalho. Para mim não faz sentido um treinador da formação festejar um golo. Claro que pode ficar contente e passar isso aos jogadores, reforçar positivamente esse tipo de acções. Mas vemos treinadores a festejar como se fosse a final da Liga dos Campeões. Não faz sentido. E os jogadores sentem a importância demasiada que se dá à vitória. Claro que a vitória é importante, uma equipa também não pode perder sempre. Porque isso vai criar outros problemas. Mas a vitória nunca pode ser o mais importante.
Outra questão interessante é o treino propriamente dito. Quem circula à volta do jogo continua a achar que treinar é ir lá para dentro fazer meia hora de corrida e séries de fintas e de remates à baliza. É muito crítico destas coisas. Que treino faz sentido preparar? Treinar como se joga?
É treinar o jogo. No jogo as coisas estão todas relacionadas e se tivermos que separar as vertentes temos de treiná-las todas na mesma medida: físico, táctico, mental, técnico, de aprendizagem, separar as áreas todas. Mesmo fisicamente, teríamos de isolar a coordenação, a força, a agilidade. Isto não faz sentido. Não é lógico. Inicialmente, quando estamos a falar de miúdos que nunca tiveram um contacto com a bola, certo, é possível fazer um exercício descontextualizado, usando obstáculos para reforçar a relação com a bola, por exemplo. Mas a partir dos 8-10 anos isso deixa de ser difícil. E quando não é difícil não há evolução. Para haver evolução tem de haver dificuldade. Não há evolução na facilidade. Então têm de treinar como jogam e com a dificuldade que existe no jogo.

Todos os seus exercícios de trabalho incluem oposição, pouco ou nenhum treino físico de forma separada, e muita tomada de decisão?

Sim, isso tudo. Muitas vezes vêm-me dizer: “Tu não treinas finalização”. E eu respondo: “Então não treino… Treino é finalização noutros moldes”. Posso dar um exemplo de um exercício: vamos imaginar um jogo de seis-contra-três (num campo curto). Vou ter aqui, naturalmente, muitas acções de finalização.

Mas sempre com oposição o que obriga sempre a uma tomada de decisão.

Claro, porque é o que existe sempre no jogo. E tem de existir sempre no treino. Com mais espaço, menos espaço, mas todos os exercícios devem obrigar os atletas a tomar uma decisão. E para isso precisamos sempre de um adversário. Tal como no jogo. No jogo não existem momentos sem oposição, no mínimo existem momento de um-contra-zero – mas com perseguição. A perseguição vai sempre pressionar o portador da bola.
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Pedro Bouças - Licenciado em Educação Física e Desporto, Criador do "Lateral Esquerdo", tendo sido como Treinador Principal, Campeão Nacional Português (2x), vencedor da Taça de Portugal (2x), e da Supertaça de Futebol Feminino, bem como participado em 2 edições da Liga dos Campeões em três anos de futebol feminino. Treinador vencedor do Galardão de Mérito José Maria Pedroto - Treinador do ano para a ANTF (Associação Nacional de Treinadores de Futebol), e nomeado para as Quinas de Ouro (Prémio da Federação Portuguesa de Futebol), como melhor Treinador português no Futebol Feminino. Experiência como Professor de Futebol no Estádio Universitário de Lisboa, palestrante em diversas Universidades de Desporto, Cursos de Treinador e entidades creditadas pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ). Autor do livro "Construir uma Equipa Campeã", e Co-autor do livro "O Efeito Lage", ambos da Editora PrimeBooks Analista de futebol no Canal 11 e no Jornal Record.

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