A ordem e o caos. “The game belongs to the players”

São muitas as críticas que surgem quando se sugere que o futebol é um desporto mais parecido com o Xadrez, pelo que exige do ponto de vista cognitivo, do que com outros desportos mais “desportivos” (passe o meu sempre mau português). E tais críticas surgem, quase sempre, por parte daqueles que têm a responsabilidade de liderar o processo de treino e estratégia das equipas: os treinadores. A crítica surge como um mecanismo de auto-defesa, porque dizer que o futebol é mais parecido com o xadrez implica a perda de notoriedade de quem se habituou a pensar ser o principal responsável por tudo o que os jogadores produzem no campo. Ou seja, dizer que o futebol é um jogo parecido com o xadrez implica dizer que o xadrezista não é o treinador! Se o futebol é como o xadrez, então ele é jogado por onze xadrezistas contra outros onze xadrezistas. E é aí que reside a maior diferença entre estes jogos, apesar da sua enorme semelhança. No xadrez, quem joga determina os movimentos de todas as peças que cooperam no terreno de jogo, sendo apenas impossível prever os movimentos das peças que se opõem. A relação entre as peças é sempre harmoniosa e previsível. O futebol, por ser jogado com onze imprevisíveis, não tem ordem que prevaleça.

O futebol não é um jogo de ordem e caos, como muitos. Tem uma natureza aleatória que faz com que seja predominantemente caótico, e são muito  poucos os momentos em que verdadeiramente existe ordem. Isto é, momentos em que a estabilidade é tal que permite a quem joga antecipar, prever, desenhar, com alguma precisão. Momentos de bola parada, algumas situações de transição ofensiva e defensiva, etc…, são alguns exemplos que constituem a excepção e não a regra do jogo. E mesmo aí, quantas vezes o capricho do caos aparece a dar uma sapatada no determinismo e a tornar tudo indeterminável? Por isso, o futebol não deve ser um jogo que se ensine de forma tradicional; que se ensine da forma como o ensino foi pensado pela maioria, porque a maioria dos programas de treino são demasiado normativos e deterministas. Se o jogo é caos, e é essa a norma que impera, a solução está em desafiar quem joga a brincar com a aleatoriedade. No fundo, treinar os jogadores para a procura de soluções circunstanciais como o jogo sempre exige. Ter como padrão de excelência a busca por soluções novas. Porque se são as circunstancias que ditam quais os princípios de acção a utilizar, se as circunstancias se estão sempre a alterar e nunca são iguais, pré-conceber soluções é agir contra a natureza do jogo. É desligar a intuição, castrar, e robotizar. E todos sabemos que um robô não seria capaz de jogar este jogo, por não ser capaz de inovar.

Fomentar o pensamento divergente, a criatividade, deveria ser a pedra basilar da formação no futebol. E só o fará quem em cargos de responsabilidade tiver a humildade suficiente para entregar o protagonismo a quem o tem por direito. Aos jogadores. É no seu pensamento disruptivo que se encontram biliões de soluções para os problemas que aparecem de forma frequente, sobre os quais o treinador não tem raio de acção.

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15 Comentários

  1. “Fomentar o pensamento divergente”

    “É no seu pensamento disruptivo que se encontram biliões de soluções para os problemas que aparecem de forma frequente, sobre os quais o treinador não tem raio de acção.”

    Caro Blessing

    Ainda agora os treinadores ficaram sem muitos dos seus jogadores por vários dias que foram brincar para as respectivas selecções em vez de estarem a treinar nos seus clubes.

    Muitos deles virão com lesões, mazelas, cansaço, etc, tudo isto são situações que poderiam ser evitadas se os dirigentes tomarem as medidas necessárias para que os jogadores renunciem às selecções e se concentrem nos seus clubes.

    Haveria claramente uma tendência para a obtenção de melhores resultados desportivos e financeiros.

  2. Blessing, isto parece vir um bocado na ordem do texto do Nuno no Entre Dez ahah
    Fora de brincadeiras, um grande texto. Pena que ainda seja difícil explicar a aleatoriedade do jogo a muita gente. O resultado final ainda conta muito para toda a gente.
    Continuem com o excelente trabalho. Mal possa serei patrono deste grande projecto e dos maiores “abre-olhos” do futebol e do desporto em geral. Abraço a todos e votos de sucesso.

  3. Blessing, grande texto! Vejo o treinador como o professor que tens na faculdade. Há os que te debitam informação e há os que te ensinam a pensar, que usam a matéria como ferramenta para trabalhar o teu raciocínio. Nesta metáfora do xadrez, é quase como quem explicou ao peão o que é que um peão pode ou não fazer é que não pode ser bispo. Acho que acima de tudo, o treinador é um gestor que cria o melhor contexto possível para que os seus funcionários brilhem.

  4. Eu acho que este texto não é sobre futebol, é sobre a vida. Mesmo o sistema escolar, de maneira geral, em quase todos os países, é uma merda exactamente porque não há grande espaço para ser livre de pensamento. Parece que é tudo formatado para pensarmos todos da mesma maneira.

    É por isso que aprecio bastante aquelas escolas/poucos países em que se estilhaçou o formato das disciplinas fechadas (matemática, português, ciências – que são importantes, sem dúvida!, mas podem ser abordadas de mil maneiras) e em que se colocou os alunos no centro das atenções, fomentando o debate, o estímulo, a participação.

    Eu nunca joguei xadrez, mas costumo dizer a algumas pessoas que têm um olhar preconceituoso sobre o jogo de futebol, que o futebol é um xadrez humano.

  5. Grande texto…de ressalvar este ‘parágrafo’: “Se o jogo é caos, e é essa a norma que impera, a solução está em desafiar quem joga a brincar com a aleatoriedade. No fundo, treinar os jogadores para a busca de soluções circunstanciais como o jogo sempre exige. Ter como padrão de excelência a busca por soluções novas.”
    Abraço!

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