Futebol, continuidade e rutura. Uma réplica da vida.

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Na cultura de hoje somos constantemente empurrados para entender o mundo a partir dos movimentos de rutura, como se a história se pudesse fragmentar e recriar sempre a partir de vazios. No entanto, a ideia de continuidade está sempre presente, como um fio (por muito fino que seja) a ligar cada um dos elementos.

O futebol, como é óbvio, não escapa a nada disto. A quantidade de “revolucionários” e “inventores” de futebol moderno com que vamos sendo brindados, faz-nos ignorar tantas vezes a ideia de unidade em transformação de um fenómeno sócio-cultural como o futebol. Para além do mais, os movimentos de rutura teórica no futebol têm sido quase sempre coniventes (ou, mesmo, dependentes?) da manutenção de outras ideias dentro do jogo, sendo a sua dinâmica desenvolvida a partir do choque de culturas e ideias.

Para uma historiografia do jogo, o livro de Jonathan Wilson, Inverting the Pyramid, é um bom auxiliar para que possamos entender que não nos devemos prender à ideia de existência de um futebol antigo e um futebol moderno.

A evolução do jogo produziu-se, desde sempre, a partir das dúvidas existenciais criadas pela forma de chegar ao golo, pela posse de bola, pela gestão do espaço do campo e pela velocidade das ações nele materializadas. Podemos então reduzir a estes quatro tópicos os grandes avanços do jogo. Desde o “Kick and Rush” de Charles Reep, que encontrava num número mínimo de toques a melhor forma para chegar ao golo, até ao “Catennacio” de Helenio Herrera que fechava todos os caminhos para a área. Desde a organização espacial das ideias de Rinus Michels e Valery Lobanovsky, ao incremento da velocidade de pensamento imposta em Barcelona e aperfeiçoada por Pep Guardiola.

A continuidade sempre foi uma das raízes da evolução tática. E, no fundo, também no jogo não podemos ignorar a influência desta noção, mesmo quando somos empurrados, uma vez mais, para a fragmentação do todo.

Porque a bola pincha ou a deslocação contínua

Era uma das perguntas que o treinador António Medeiros gostava de fazer, quer fosse aos seus jogadores, quer fosse aos curiosos do jogo que se aproximavam dele. “Porque é que a bola pincha?”. Esse encantamento produzido por uma bola que salta e rebola por um campo escapa-nos muitas vezes na forma como tendemos a resumir tudo.

Para muitos, o jogo passou a ser apenas resumo. A escolha de uns quantos minutos que servem para explicar o que aconteceu numa partida, ignorando-se, tal como quando se estudava Os Lusíadas a partir das sebentas da Europa-América, que o essencial não está nos factos depurados, mas na experiência da leitura (e da vida).

O futebol é, para além do mais, um jogo de deslocação contínua, onde os nossos olhos seguem a bola, oferecendo-lhe toda a atenção que nos resta, mas que vive essencialmente dos espaços onde a bola (ainda) não está. Por isso mesmo, quando falamos de mudança de flanco, a atenção não deve estar na bola, mas no processo de deslocamentos que aí se realiza e que obriga toda a equipa adversária a reposicionar-se perante nova situação de jogo. Por isso mesmo, quando falamos de vantagens, não podemos ignorar que estas são dinâmicas na sua essência, resultando da constante movimentação dos jogadores no terreno de jogo.

No trabalho realizado por Luís Vilar e Duarte Araújo, entre outros autores, e resumido no artigo “Science of Winning Soccer: Emergent pattern-forming dynamics in association football” percebe-se que o jogo, na sua análise científica, se organiza numa complexa e contínua deslocação de elementos onde, entre jogadores, espaço e bola, a dinâmica das vantagens é sempre efémera e passível de ser transformada taticamente.

Portanto, para discutir o jogo, não nos podemos reter apenas naquilo que acontece na seleção da imagem, mas temos sempre que entender que, na ocupação plena dos espaços, as decisões sucedem-se interligadas e interdependentes entre si. Pode parecer complicado mas é, afinal, apenas uma simples réplica daquilo que acontece na vida de todos os dias.

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Sobre Luís Cristóvão 103 artigos
Analista de Futebol. Autor do Podcast Linha Lateral. Comentador no Eurosport Portugal.

7 Comentários

  1. “A continuidade sempre foi uma das raízes da evolução tática. ”

    Caro Luís Cristóvão

    O mesmo se passa ao nível da gestão.Já há muito que esta tendência se instalou definitivamente.

  2. Atenção que esse livro do Wilson tem graves problemas conceptuais: são essas falhas que o fazem relativizar as diferenças entre o futebol de hoje, e aquele que se praticava em 1900, 1960 ou 2000. Que são brutais.

    O Wilson acredita que um sistema tactico equivale a um modelo de jogo, e não percebe que este se pode dividir em quatro momentos, que podem ser trabalhados de diferentes formas. Por isso ele chega a conclusoes ridiculas, como a de que o 3-5-2 esta ultrapassado; ou de que o Bayern do Heynckes é o futuro do futebol, por aliar o ‘tiki-taka’ ao poder fisico (sim, ele escreve isto na segunda edicao do livro).

    Na practica, o pressuposto do livro – de que a modernidade no futebol equivale a inverter o 2-3-5 para um 4-5-1 é completamente falso – tal como provou o Guardiola no Bayern. O que é realmente importante (e é ignorado pelo Wilson, como por todos os ingleses), é estudar a forma como o jogo foi sendo conceptualizado ao longo das décadas; e sobretudo, como o treino foi sendo pensado e aplicado. So assim é que podemos perceber a evolucao do futebol; em vez de andarmos a perder tempo com quem inventou o 4-4-2.

    Mais um exemplo, é facil de dizer que o jogo de posse do Barcelona tem as suas origens no estilo de passe das equipas escocesas do século XIX, como o Wilson pressupoe. Mas isso é apenas uma correlaçao, porque no século XIX ninguém sabia o que era o jogo posicional, nem o que era uma defesa zonal. E acima de tudo, ninguém viu essas equipas a jogar: nem nos, nem o Laureano Ruiz, o Cruyff, ou o Guardiola. Existe um antecedente historico, certo, mas que na practica é apenas uma curiosidade historica sem aplicação presente.

    • Boa noite, Guilherme, e obrigado pelo comentário.
      Foi pelo que referes que tenho a atenção de referir o livro do Jonathan Wilson para uma consulta da história e não como um manual. Pessoalmente, não relativizo diferenças, sublinho que existe uma continuidade e uma coexistência entre estilos, o que aumenta o grau de complexidade do futebol.

  3. So para terminar, um exemplo practico consiste em ver o Liverpool do Shankly (anos 60, ha jogos no youtube), que sempre foi considerada uma equipa de posse de bola, que priveligiava o passe. E na practica, eles apenas abusavam um bocadinho menos do passe longo do que os outros.

  4. Acho algo injustas as críticas feitas ao livro do Jonathan Wilson. O título refere-se ao facto de que, durante grande parte da história do futebol, se passou de uma tendência de ser puramente um futebol ofensivo para mais defensivo, com o jogo a evoluir no sentido da posse.

    Fascinante, para mim, é a forma como ele se refere ao futebol Inglês, que até nem é assim tão central no livro como seria de esperar. Ele enfatiza quão influente do jogo inglês tem sido, enquanto, ao mesmo tempo, está entre os estilos mais retrógrados. Acho até que isso se confirma com o nível que a Premier League atinge hoje, como o campeonato mais visto no mundo inteiro, ao mesmo tempo que a seleção inglesa vale o que vale.

    Aconselho a leitura.

    • Não li o tal livro mas tenho a certeza que a EPL é o campeonato mais visto por razões extra-futebol-jogado: primeiro, são o campeonato mais antigo (há inúmeros clubes de topo com 130, 140, 150 anos de existência e competição) o que lhes vale um conhecimento e uma experiência enorme (que se reflecte a nível organizativo e comercial) e uma forte cultura associativista ligada ao futebol; segundo, a universalidade da língua inglesa e o facto de serem uma antiga (bom, ou recente, ou recente, porque estas coisas não mudam em 50 ou 60 anos) potência colonial, que lhes garante uma grande proximidade a uma série de países pelo mundo fora. Com bom ou mau futebol esta gente estará sempre no estádio ou em frente à televisão.

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