Ainda o contexto e a tomada de decisão: contra a cristalização

Enquanto os autores do Lateral Esquerdo vão abrindo o jogo para uma miríade de possibilidades que nascem dentro do próprio jogo, a resistência a essa ideia mantém-se, como se uma parte daqueles que nos lêem e olham o jogo com a mesma paixão, preferissem meter um travão à complexidade que sempre foi parte da essência do futebol.

Há uns dias atrás, escrevia eu que “as tomadas de decisão ‘em segurança’ vão ser sempre prioritárias” enquanto não existir uma consolidação dos conhecimentos do jogador. O professor Bruno Travassos, a quem agradeço o feedback sobre esse artigo, relembra-me que “decisão é ação”, sublinhando que “o processo de treino da tomada de decisão não é mental, exige ação”. Citando o seu livro*, a “capacidade de detetar a informação relevante para o cumprimento do objetivo” (afinação) e a “capacidade de ajustar funcionalmente a ação à informação do contexto” (calibração) são partes de um mesmo processo que pode e deve ser elaborado ao longo da carreira.

Se, no que toca ao treino de formação, a complexidade da tarefa pode ser manipulada pelo treinador de forma a que o jogador construa o seu processo de tomada de decisão, do mais simples ao mais complexo, ao chegar ao alto rendimento será de esperar que o atleta tenha já construída uma noção de decisão que lhe permita a adaptação a diferentes contextos. A forma como o Bruno Fidalgo termina o seu artigo, com a lapidar frase “o constante incentivo ao ‘joga fácil’, não promove uma boa tomada de decisão” revela-nos o tipo de exigência que apresentamos perante aquilo que vemos nas melhores equipas.

No entanto, cito o Miguel Quintana, ao concordar que “ainda não nasceu o futebolista incapaz de aprender”. Se nos focamos num exemplo de um jogo, mesmo que seja um elemento repetido muitas vezes por essa equipa, não nos devemos esquecer que estamos a trabalhar um momento selecionado com o intuito de refletir sobre as possibilidades criadas nesse contexto. Quando nos focamos num exemplo de um jogador, considerando as suas forças ou fragilidades dentro da dinâmica coletiva, não nos devemos esquecer que, mesmo no alto rendimento, cada jogador é um processo em evolução, ou seja, as suas capacidades continuam a ser trabalhadas e ajustadas à realidade que encontra.

Não se apressem, assim, nos juízos definitivos sobre processos coletivos e individuais, porque o nosso caminho é exatamente o contrário. Estar presentes na análise, de maneira a encontrar melhores perguntas e melhores respostas, e não ser juízes, numa causa que é o oposto da cristalização.

*Bruno Travassos, A Tomada de Decisão no Futsal, PrimeBooks, 2011.

Sobre Luís Cristóvão 103 artigos
Analista de Futebol. Autor do Podcast Linha Lateral. Comentador no Eurosport Portugal.

5 Comentários

  1. Nao geram a “paixão” dos textos do Benfica, Sporting ou FC Porto … mas são estes que tornam o LE uma referência não só p o grande público mas para os melhores profissionais de Desporto, sejam profs nas univs, treinadores profissionais ou simplesmente outros q ainda sem estatuto lá chegarão pela qualidade de entendimento que têm deste desporto.

    Grande grande texto. Tinha de o vir referir…

    E obg aos q ai estão!

  2. A fuga ao aceitar da complexidade do jogo vê-se no feedback a este tipo de artigos, absolutamente vitais para quem quer de facto entender o jogo/treino. Artigo excelente!, até porque vem (mais uma vez ) desmistificar a ideia que a tomada de decisão é algo inato, um dom que nasce com o jogador, afastando completamente a ideia de treino.

    Seria de esperar que no alto rendimento o jogador já dominasse conceitos básicos (para o nível em que está) ,no entanto, como será isso exigível se no trajeto até lá isso não foi salvaguardado?
    O atleta é um processo em evolução sim, mas a constante má formação impede o atingir de todo o potencial e o resultado é ter-se jogadores no alto rendimento com entendimento zero do jogo.

    Mais uma vez, grande artigo! Abraço.

    • É exatamente por aí, Leandro. O trajeto do jogador acabar por ser absolutamente central na definição que podemos fazer desse mesmo jogador, sendo que nas suas lacunas poderemos encontrar os dados necessários para se reformular os processos de formação de novos jogadores. Penso que é uma análise de imenso valor que deveria ser feita ao nível dos clubes, de maneira a encontrar formas de evoluir na qualidade do trabalho realizado.

      Quanto à chegada (e à forma como se chega) ao alto rendimento, acaba-se por privilegiar determinadas características do jogador, sempre à espera que, quando este chegar ao topo, se possam trabalhar as lacunas. Há pouco investimento no “jogador completo”, outro conceito caro a esta casa e que o Bruno Pereira explicou num dos podcasts recentes. Só a aposta formativa nesse tipo de jogador poderá levar à diminuição do número de casos registados.

      Um abraço e obrigado pelo teu comentário.

  3. Concordo com o Luís Cristovão, o jogador é muitas vezes formatado pelo(s) treinador(es) (vai à linha final e tem que cruzar, o estar de costas para a baliza do adversário e ter que jogar na cobertura, etc.) no seu percurso de formação, já para não falar na importância dada ao colectivo, às tácticas, às estratégias de jogo (que são importantes como é óbvio) esquecendo-se muitas vezes do estímulo individual, do conhecimento que o jogador tem que ter do jogo e da correcta abordagem e compreensão do mesmo. Isso não invalidará que ele possa cometer erros mas pelo menos irá prepará-lo para os identificar e minimizá-los. Na recente intervenção do Maldini sobre o besiktas-benfica ele mencionou dois lances, um protagonizado pelo Samaris e o outro pelo nelson, em que se torna evidente essa falta de informação nas tomadas de decisão de ambos. No cômputo geral eles têm mais virtudes que defeitos na sua forma de jogar mas em jogos desta natureza qualquer erro poderá ser fatal, daí eu subscrever por inteiro os dois últimos parágrafos do Leandro.

    Excelente artigo

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