O jogo, infinito de possibilidades

O futebol não é uma sucessão de jogadas, mas uma sucessão de situações complexas. Messi leva a bola e está em determinadas condições porque aconteceu algo, anteriormente; e enquanto ele tem a bola, está a acontecer outro algo que o possibilita.

Paco Seirul-lo

Aprendemos a olhar o jogo focados na bola, mas o jogo não acontece nela, nem no jogador que a toca. A singularidade de controlar uma das ferramentas do jogo com o pé leva a um permanente descontrolo sobre a consequência, abrindo espaço para o infinito de possibilidades que nascem, mais do que de cada situação, de cada toque.

A dinâmica de evolução do jogo sempre foi exercida na tensão entre esta abertura de pensamento contra o encerramento da sua verdade num território predefinido. Por isso mesmo, apesar de se entender as vantagens do trabalho da tomada de decisão, a execução da teoria se mantém problemática, exercendo-se na coação mais do que na libertação.

Se quem joga o jogo são os jogadores é uma frase tantas vezes repetida, atendamos ao plural utilizado. Estamos, no fundo, a apontar para o coletivo, porque cada situação nasce sempre de uma seleção espacial onde nenhum jogador está sozinho. A decisão de um é sempre consequência da ação de outros (seja companheiro ou adversário).

Por isso mesmo se discute se a essência deste jogo acontece na sua totalidade (o 11v11) ou se devemos olhar a sucessão de movimentações e ações como elementos isolados de vantagens e desvantagens. Sou levado a entender o jogo como o cruzamento dessas duas ideias. Se existe uma situação de vantagem num determinado espaço do campo, essa situação depende sempre do que aconteceu antes e está a impactar no que acontecerá depois.

Ou seja, mais do 11×11 possibilidades, cada uma das unidades e seus possíveis agrupamentos adicionam hipóteses que nos empurram para o infinito. Paco Seirul-lo pensa-o numa perspetiva quântica, como um “espaço de fase”. Define-o assim:

  • Onde está a bola
  • Em que situação está
  • Onde estão os adversários
  • As distâncias que existem entre a bola e os adversários e os nossos próprios jogadores
  • As trajetórias de cada jogador, da nossa equipa e da adversária, e da bola
  • A orientação do jogo
  • A organização do jogo

Tudo isto num décimo de segundo. Mutável no momento seguinte. A obrigar-nos a montar novos quadros mentais para analisarmos o que acontece no jogo.

A forma como aprendemos o jogo está hoje muito distante da forma como o jogo nos obriga a pensar, logo, se somos responsáveis para com as ideias que defendemos, a forma como ensinamos o jogo deverá também sofrer as devidas alterações. Executar a teoria transforma-se, então, num problema filosófico.

Estaremos preparados?

Nota: As afirmações e definições de Paco Seirul-lo foram retiradas do livro de Martí Perarnau – Pep Guardiola, La Metamorfosis (tradução do autor).

Sobre Luís Cristóvão 103 artigos
Analista de Futebol. Autor do Podcast Linha Lateral. Comentador no Eurosport Portugal.

15 Comentários

  1. Brilhante.

    Nao vejo outro caminho. Com mais ou menos jogadores, tendo em conta a idade e o nivel de entendimento, mas o caminho eh o da complexidade, eh o da identificacao daquilo que nos mostra o jogo e nos ajuda a decidir em conformidade.

    So a viver e a ser despertados para isso conseguiremos ajudar os jogadores (e nos proprios) a chegar e um nivel de entendimento superior.

    • “Executar a teoria transforma-se, então, num problema filosófico.”

      Caro Dennis Bergkamp

      Brilhante o pirilau.

      Passar da teoria à prática tem sempre de ser algo simples, fácil e acessível, caso contrário, não se passaria à prática.

      Insisto, primeiro definem-se os objectivos a serem alcançados, traça-se uma estratégia para alcançar esses objectivos e depois implementa-se essa estratégia.

      Caso não se atinjam os objectivos, analisa-se e verifica-se as causas do que correu mal e corrige-se, voltando novamente à implementação.

      Insistir na complexidade é paralisar a acção.

      • A questão é que se passar da teoria à prática é sempre simplificar o processo, como explicas que os melhores jogadores tenham, hoje, um entendimento muito mais profundo do jogo que é inegavelmente complexo?
        Creio que confundes duas coisas. Uma delas é esquecer a ação e focar apenas num dificultar do processo – isso, sim, leva a uma paralisia. Outra é entender que estamos perante um problema (o jogo) que é complexo, cuja resposta está num aprofundar de uma filosofia da prática(pensando, analisando, alimentando possibilidades, optando por respostas).
        Sendo óbvio que não se ignoram as fórmulas de gestão empresarial que apresentas, o pensamento de Paco Seirul-lo (como o de Lillo, o de Cruyff, o de Guardiola, o de Vítor Frade, etc, etc…) está exatamente nos seus antípodas, porque impõe uma preocupação cultural como base da análise. E, se leres o livro do Ferran Soriano, “A Bola não entra por acaso”, percebes como esse pensamento cultural levou a uma mudança nas atitudes de gestão.
        É a tecnologia do humano, Superleão. E é isso que está acontecer para lá da folha de Excel.

      • “como explicas que os melhores jogadores tenham, hoje, um entendimento muito mais profundo do jogo”

        Caro Luís Cristóvão

        Porque os jogadores actuais treinam sob uma base de conhecimentos acumulada de mais de 150 anos, tanto ao nível de futebol propriamente dito como a outros níveis como medicina (evoluiu muito), profissional e financeiro (dantes era jogado por amadores, hoje em dia são profissionais), tecnológico (imagens, estatísticas, análise de jogo, hoje sabe-se como é que as melhores equipas treinam e copia-se ou adapta-se); os treinadores actuais estão muito melhor preparados e transmitem o conhecimento às gerações seguintes.

        Além disso, hoje em dia, o número de praticantes cresceu exponencialmente o que permite captar mais praticantes.

        ” …impõe uma preocupação cultural como base da análise”

        Não importa a definição de cultura, há uma característica comum, a cultura é persistente.

        Lutar contra a cultura é desperdiçar esforços, actuar dentro do espírito cultural existente é mais simples e o modo de actuar é simples: definem-se objectivos, traça-se uma estratégia e implementa-se essa estratégia.

        Analisar a complexidade é ficar paralisado, definir objectivos e implementar estratégias é mais simples.

        • Portanto, Superleão, e para ver se entendo bem este segundo comentário, a definição de objectivos e a implementação de estratégias depende de um adquirido de mais de 150 anos em que ninguém parou para pensar a complexidade do jogo? Ou seja, o futebol de hoje é o mesmo de há 150 anos, salvo inflexões resultantes da implementação de estratégias para atingir determinados objectivos que dispensam qualquer análise sobre o jogo? É engraçado que o modo como articulas os dois argumentos sugere mais a paralisia do que qualquer tentativa de pensar o jogo, por mais complexa que seja. A medicina evoluiu porque recusou pensar fenómenos complexos e depois passá-los à prática? E a tecnologia, também? Algures aí no meio um gajo perde-se. É espantoso o modo como por vezes a utilização como axioma da noção de sobrevivência dos que melhor se adaptam às condições presentes recusa a história e a filosofia e, no entanto, evoca-as a cada momento.

          • O que o Superleão no fundo quis transmitir, é que isto sem seleções evoluía ainda outros 150 anos.

          • Não, não depende. A não ser que te estejas a referir a objectivos fechados ao longo da época, de desenvolvimento específico desta ou daquela vertente da equipa, o que seja. No resto, e só assim de repente, os objectivos dependem primeiro da organização do futebol em determinada zona, a seguir do que o clube pode e pretende e, só depois, do modo como o treinador coordena tudo isso. No máximo, diria, apenas a estratégia depende do treinador – mas, mesmo essa, está sujeita às condições que determinado treinador encontra no local onde trabalha.
            Em suma, vale de pouco tentar isolar factores.

            E se o líder não for o treinador, mas sim a quipa directiva de um determinado clube, os problemas mantêm-se. Só definem objectivos dentro de uma certa organização institucional. E essa também faz parte do adquirido do futebol de há 150 anos para cá, imagino.

  2. A formação de jovens futebolistas terá forçosamente de incluir educação, formação intelectual, competências individuais e colectivas fora do jogo, valores, ética, liderança, gestão de equipas, cultura, interesses fora do futebol. Isto porque apenas os jogadores cultos e mentalmente capazes vão ser capazes de perceber e interpretar o que se passa à sua volta. As escolas de futebol tenderão a ser escolas humanas, complexas, integrando miúdos e miúdas, idades diferentes, culturas distintas. O futebol não é mais que uma réplica da vida e todos nós sabemos quão complexa pode ser, mas, em simultâneo, quão simples se pode tornar, com as ferramentas certas. O futuro que já é presente é deveras aliciante.

      • Talvez seja da minha visão/leitura mais “ingénua” (de praticante, e nada de treinador/formador), que liga o futebol de rua – onde eu próprio comecei a dar os meus primeiros pontapés – muito mais ao lado selvagem/estado bruto de onde a magia e irreverência saem com uma espontaneidade que se torna, ou parece, demasiado simples e natural.
        Liguei instintivamente a complexidade referida no texto a uma mecanização/robotização de um conjunto de tarefas a desempenhar (e que as há, evidentemente) treinadas e repetidas à exaustão que acabariam por abafar a tal magia e irreverência do futebol de rua. Erro meu, por momentos achar que uma coisa poderia invalidar a outra sem que pudesse haver interligação, coexistência e interação entre as duas.
        Má interpretação minha, claramente.

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