Mais Vitor Pereira. Porquê tão bom. E porquê as dificuldades que não lhe permitiram perputuar-se no FC Porto.

Uma entrevista fascinante, muito pela qualidade dos dois intervenientes. Falar-se do jogo e de futebol.

É lixado para um treinador ter gente que não percebe nada de treino e futebol a opinar?

Custa-me muito. Ainda ontem estava aí no hotel a passar pelos canais e até estava a ver o “Masterchef” – porque aquilo é demais, estão sempre com pressão, adoro – mas depois acabou e fui mudando de canal e encontrei dois ou três iluminados pumba, pumba, a bater no Jesus. Mas a falar de pormenores e de treino e a dizer que tinha de fazer assim e assado. E eu penso: mas quem é que eles treinaram? Nunca treinaram ninguém na vida. Nunca lideraram ninguém. Mesmo os ex-jogadores. Quem é que eles treinaram? Foram jogadores e alguns deles nem foram exemplo para ninguém. Quando é que eles tiveram de tomar decisões sobre pressão? Onde é que eles foram avaliados e criticados ao mesmo tempo por tanta gente? Não foram. Mas chegam ali e o Jesus isto e isto e isto. Mas o Jesus ao pé deles dá-lhes dez a zero. Ou vinte a zero. E isso custa-me. Quer dizer, agora já não me custa tanto. Agora dá-me vontade de rir. E depois são gajos da política, escritores… Toda a gente fala de futebol e sabe de futebol.

Mas tu agora estás diferente. No FC Porto não eras assim.

Claro. Tu repara numa coisa: sempre fui um treinador que pode fazer a diferença em termos de treino e de análise do jogo. Sei que faço a diferença, porque eu estudo. Se tu vieres falar de futebol comigo, tens de vir bem preparada. Porque se não vieres bem preparada, então tu não vais saber do que é que eu estou a falar. Gostava que um dia me confrontassem com estes críticos e que eles me dizessem a mim que é assim e assim, que eu dobrava-os. Punha-os a fazer o pino e caiam-lhes as moedas todas dos bolsos, estás a perceber? Porque não têm hipótese. Passo o dia todo a pensar futebol, a refletir futebol. Tal como eu não tenho hipótese nenhuma de estar aqui a falar de política, porque eu não estudo política e não sei o suficiente. Por exemplo, gosto muito de música, mas é só de ouvir, gosto disto ou daquilo. Não começo a discutir a música como se soubesse alguma coisa daquilo, porque não sei. Tudo bem, as pessoas podem discutir futebol e dar a sua opinião, mas não podem fazê-lo sem respeito. Têm de respeitar o Jesus, independentemente da personalidade dele. É um treinador que tenho de reconhecer que tem ideias e que sabe operacionalizar as ideias que tem e pôr as suas equipas a jogar futebol, não há dúvida nenhuma. Já vi as equipas dele a jogar grande futebol. O Jesus não desaprendeu. Agora, nos momentos maus, quem está de fora, nunca treinou ninguém… Estava a dizer-te antes, quando assumi o FC Porto, eu era fortíssimo do ponto de vista… E não sou eu que digo, se formos discutir com meia dúzia de treinadores seja onde for e no final vamos ver. Não tenho dúvidas nenhumas que as pessoas reconhecem que do ponto de vista tático, do ponto de vista estratégico, do ponto de vista do treino, eu estou num nível que acho muito bom. Só que não estava preparado para lidar com a crítica e com esta gente que critica e eu não posso controlar. E eles nem sabem do que estão a falar, mas aquilo tinha impacto.

…depois em termos de campo obviamente acho que era uma ajuda muito grande para ele e conseguimos estabelecer um equilíbrio que nos permitiu conseguir o que conseguimos. Mas eu não tenho nada a ver com o André. Ele em termos de imagem… eu não sei vender a minha imagem. Aquilo no primeiro ano, eles habituados ao André, eh pá… Andei ali um bocado a nadar. Fundamentalmente em termos de comunicação.

As muitas dificuldades porque passou no FC Porto. Sempre relacionadas com o discurso. Sempre relacionadas com a comunicação. Uma imagem que não soube vender que lhe traçou o destino, mesmo com vitórias em cima de vitórias. Dificuldades que também por cá foram sendo referenciadas ao longo da sua passagem pelo FC Porto.

Lá dentro tinha meia equipa a querer ir embora, com promessas de ir embora. Imagina o que é ganhares a Liga Europa e depois tens o clube A e B a telefonar-te a dizer que te dão milhões. Até janeiro aquilo foi só sobreviver. Foi como se eu estivesse com a cabeça debaixo de água e só de vez em quando é que vinha cá fora inspirar um bocadinho de ar, a tentar não morrer. “Então demorei tantos anos a chegar aqui e agora vou-me afogar já?” Tive de ser um bocadinho flexível para chegar a janeiro e [suspira] tirar a cabeça fora de água. Em janeiro reequilibrámos um bocadinho a equipa e resolvemos alguns assuntos mal resolvidos de gente que não estava ali e queria ir para outras paragens.

Os problemas na liderança, quando ainda inexperiente liderava uma equipa de recursos imensos. Nunca a qualidade do seu trabalho a relacionar-se com a ausência de uma “aclamação” geral. Sempre os factores relacionados com liderança e comunicação.

E tenho dificuldades em lidar com meninos ricos, que não sabem sofrer, nunca sofreram na vida. Ou então que vieram de meios pobres mas de repente ficaram ricos e não sabem como é que devem gerir aquilo. Não sei lidar com gente que precisa de ser apaparicada a toda a hora. Porque nunca fui e gosto de exigência.

O reconhecimento dos factores que o condicionaram e quem sabe condenaram a uma vida de FC Porto, quando a qualidade de campo e do jogar da sua equipa foi sempre extraordinária.

 

Há bocado perguntavas-me se guardávamos a bola quando a recuperávamos. Eu se tiver jogadores rápidos na frente e que decidam bem, também posso aproveitar a transição. No FC Porto não dava, pelas razões que já te disse e também porque as equipas raramente saíam lá de trás, não davam essa hipótese. O futebol é mesmo isto. O modelo de jogo não é uma coisa… “Olha, o meu modelo de jogo é este”. Não, nós vamos construindo o nosso modelo. É claro que temos aquelas grandes ideias. Repara que não estou a dizer que um treinador que joga com as linhas muito baixas, à espera do erro, não tenha sucesso. Ele pode ter todo o sucesso, mas não é o jogo que eu gosto. Faz-me mal ver a minha equipa sem bola. Quero que a minha equipa tenha iniciativa e domine. Quero que seja pressionante e não fique à espera. Isto são caraterísticas gerais do teu modelo e da tua personalidade. Não tenho muita paciência. E como não tenho, tenho de ser eu a controlar as coisas. Creio que passamos algo da nossa personalidade, competitividade e agressividade para o nosso modelo, para os jogadores.

 

Mas também apanhas outros que explicas dez vezes a mesma coisa, abanam-te a cabeça a dizer que sim dez vezes e dez vezes fazem a mesma coisa. Depois começas a perceber que esses não podem ir para outro nível, não têm hipótese, porque aí é preciso mais alguma coisa.

Sobre a tomada de decisão. E como condiciona e determina quem chegará ou não a “outro nível”.

 

A inteligência é o fator fundamental?

A inteligência específica. Sabes que há gente que na escola não funciona mas a jogar futebol, cuidado. Entendem tudo. Nós temos muitas inteligências. Há gente que cá fora não diz duas palavras mas lá dentro são inteligentíssimos. O que te entusiasma tu também aprendes melhor. Por isso é que eu estou aqui horas a falar de futebol.

Sobre Paolo Maldini 3828 artigos
Pedro Bouças - Licenciado em Educação Física e Desporto, Criador do "Lateral Esquerdo", tendo sido como Treinador Principal, Campeão Nacional Português (2x), vencedor da Taça de Portugal (2x), e da Supertaça de Futebol Feminino, bem como participado em 2 edições da Liga dos Campeões em três anos de futebol feminino. Treinador vencedor do Galardão de Mérito José Maria Pedroto - Treinador do ano para a ANTF (Associação Nacional de Treinadores de Futebol), e nomeado para as Quinas de Ouro (Prémio da Federação Portuguesa de Futebol), como melhor Treinador português no Futebol Feminino. Experiência como Professor de Futebol no Estádio Universitário de Lisboa, palestrante em diversas Universidades de Desporto, Cursos de Treinador e entidades creditadas pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ). Autor do livro "Construir uma Equipa Campeã", e Co-autor do livro "O Efeito Lage", ambos da Editora PrimeBooks Analista de futebol no Canal 11 e no Jornal Record.

23 Comentários

  1. Fossem todos os treinadores como o Vítor Pereira no que diz respeito à fidelidade às suas próprias ideias e teríamos um futebol mais criativo e imaginativo.
    Acho que faz também uma crítica forte à falta de coragem porque há por aí muito treinador de copy+paste. a mim também me faz confusão esta moda de que jogar bem é só jogar como o Barcelona/Guardiola jogam.

  2. Incrivel ouvir este “gajo” a falar…
    É tudo aquilo que eu o imagino.
    E mais, sempre achei que tinham sido estes os motivos da não continuidade no Porto. Já me dá alguma paz de espírito, saber q foi mesmo assim e que, com meia equipa contra ele (e adeptos), conseguiu na mesma o sucesso.

    Que volte um dia ao Porto!

  3. Fatastico. Acho que, depois do fcp, não geriu a carreira da melhor forma, e acho q não fez por ser tão apaixonado pelo jogo e pelo treino que não consegue estar muito tempo parado… Espero que volte, o mais rápido possivel, aos grandes palcos.

  4. É um grande treinador. Defende Jesus, mesmo sabendo que lhe deu autênticas lições de futebol, em praticamente todos os jogos em que se defrontaram. Benfica com dois foras de série, como Matic e Enzo, incapaz de aguentar as descidas do Jackson, as diagonais do James, e a subida do polvo Fernando. Muito sofri, com aqueles bailes táticos.
    Não me importava de o ver um dia no Benfica. Só espero é que não se banalize tanto na CS, porque passando algum tempo, já soa a arrogância. E de filósofos está o futebol cheio. Neste momento, que comprove a tarimba na Alemanha.

    • A arrogância quando sustentada em resultados… Seria bom tê-lo a ser arrogante onde Mourinho e Jesus já o foram, não era? =P

      O problema da tarimba na Alemanha é que se corre bem deve ser difícil tirá-lo de lá.

  5. Não concordo, em parte, com as referências de Vítor Pereira aos “críticos”. Generalizar é sempre um perigo. Nenhum jornalista tem legitimidade para analisar o jogo, mesmo que nunca tenha treinado ninguém? Ele fala em criticar com respeito, e aí estamos totalmente de acordo, mas é esta ideia de que a análise está vedada que eu contesto. Se a crítica for sustentada, se for defendida (concorde-se ou não), não será válida. Cumprimentos para o Pedro.

    • Nuno, creio que ele se refere muito mais ao “ruído” que é quase só o que emana dos programas que me parece que ele referiu ter visto que propriamente as críticas bem sustentadas.

      Um abraço

    • É fácil olhar para as situações do jogo e dizer “a equipa devia-se ter comportado assim e assado” o que me parece que ele se insurge é contra os comentadores que para lá disso elevam a discussão ao “no treino devia-se fazer isto e assado”, sendo que os treinos por regra são à porta fechada.

      E não deixa de ter razão no que à parca qualidade dos comentadores diz respeito! É possível ao Domingo à noite verem-se quatro horas seguidas de comentário futebolístico sem que por vezes se fale uma vez que seja de como as equipas se comportaram em campo. É pobre! O mais picareta dos seguidores do LE está mais habilitado a comentar futebol na televisão do que qualquer um dos que lá está de facto. Ex-jogadores incluídos. Apenas posso imaginar o que o VP sente ao assistir a isso. Aliás, eu sei bem o que ele sente, é como eu a tentar desmistificar mitos sobre “químicos” no facebook…

        • Sou do tempo em que se faziam noitadas no Domingo Desportivo para se ver os resumos dos jogos “não grandes”, da Segunda Liga (Divisão de Honra, não era?) e lá para o fim os jogos internacionais. Aí ainda o futebol era rei, não era?

          • Acho que os próprios programas da RTP 2 nos fins-de-semana há tarde se chamavam também eles domingo desportivo… em que anunciavam os golos na hora com aqueles sinais sonoros engraçados. bons tempos.

            Do que me lembro acho que era isso, 1º divisão, dps 2º e no fim internacional

          • Mas também convém ressalvar que o acompanhamento era maior porque os jogos era quase tudo domingo há tarde, lá para as 4, uns variavam mas não muito dessa hora

  6. Ya já vi o link no outro post. É tão bom ler gente do futebol, mesmo quando não concordamos totalmente. É que para mim, é bem melhor ganhar 5-4 que 3-0. O futebol é mais que chegar a maio e ganhar o campeonato. É por isso que a EPL vale o que vale, que o championship tem melhores médias que muitas ligas europeias, etc.

    Claro que deve haver organização e trabalho do treinador, mas a ideia de controlar o jogo todo, com a bola, parece me “egoísta” no sentido em que estou deliberadamente a tirar emoção ao jogo para segurar um resultado.

    Talvez as regras do jogo tenham de mudar um pouco, ou simplesmente dividir melhor os orçamentos, mas não há NADA como jogos e jogos taco-taco no vai-vem, ocasiões para os dois lado s e se der para o 5-4 ser para mim, melhor ainda!

    • Mas esse argumento presume que o jogo só é emocionante se estiver partido, o que pode não ser verdade para toda a gente. Ver o Barcelona golear o Real sem nunca os deixar tocar na bola pode ser muito mais emocionante. Depende do que se gosta de ver no jogo. Até um 0-0 pode ser mais emocionante que um 5-5.

      • Pois, é a minha opinião. Repara que não disse “bem jogado”. Isso pode ser outra coisa.
        Para mim ver um 5-0 é chato. A não ser que seja do Benfica, não me deixa feliz, não se fala muito disso depois, não causa suspense.
        NA MINHA OPINIÃO, A incerteza no resultado é um dos factores que mais me cativa.

        Mais um exemplo, noutro desporto; por norma o tour de france tem melhores ciclistas, equipas melhores preparadas e por vezes etapas mais interessantes, mas espetáculo é na vuelta porque os ciclistas chegam lá rebentados de 8 meses de prova e não há equipa que aguente.

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