O jogo como ciência, e as crianças como cientistas

Se atendermos à definição de ciência no “sentido restrito”, a qual “refere-se ao sistema de adquirir conhecimento baseado no método científico bem como ao corpo organizado de conhecimento conseguido através de tais pesquisas”, expresso na (Wikipédia, 2017), então a frase que intitula o artigo deve ler-se no sentido figurado. Isto claro, se também entendermos o método científico pela visão clássica de Descartes e Newton. Obviamente que o futebol tem uma margem reduzida de pesquisa em laboratório e de comprovação teórica através destes pressupostos. Esse foi um dos erros que o pensamento analítico e mecanicista introduziu no jogo, no seu treino e na sua liderança, concretizado por exemplo em ideias de jogo que privilegiam a resolução individual, na Periodização Física, na excessiva importância dada à estatística, em lideranças que separavam a equipa em partes, dando mais importância a determinados elementos entendidos como mais valiosos, em detrimento de outros.

No entanto, segundo a mesma fonte, a ciência (do latim scientia, traduzido por “conhecimento”) refere-se a qualquer conhecimento ou prática sistemáticos“. Assim, nesta interpretação mais lata, pode surgir o futebol, pelo conhecimento que emerge da prática sistemática dos seus intervenientes. Neste enquadramento, e na perspectiva técnica, o treinador português (Jesus, 2015), explica que criou e desenvolveu uma metodologia com a sua equipa técnica ao longo dos anos que treinou. Jorge Jesus ressalva que não sendo uma ciência exacta”, criaram “uma ideia, uma ideia de treino, uma ideia de jogo, trouxemos muitas coisas novas para o Futebol”, e remata “o Futebol tem ciência, e ela começa no treino”.

“As pessoas riram-se muito quando Jesus disse que tinha inventado uma ciência, fartaram-se de rir disso, e é uma estupidez porque uma ciência é um corpo organizado de conhecimentos, e portanto o que o Jorge Jesus fez foi isso de facto. Ele tem, provavelmente até tomou apontamentos e armazenou, um conjunto sistematizado de conhecimentos sobre uma determinada matéria e que põe em prática com óptimos resultados, coisa que boa parte dos cientistas não se pode gabar.”

Ricardo Araújo Pereira

Na mesma linha de pensamento, Jorge Maciel, acrescenta que treinar tem muito de Ciência, mas não menos de Arte, e é a articulação bem conseguida entre estes dois planos que permite o sucesso”. O mesmo autor refere ainda que é uma ciência que se encontra “na esteira do pensamento sistémico e como tal coloca a ênfase nas relações, na qualidade e nos padrões, sem refutar na sua evolução a intuição, mostrando assim que tal como treino, também a Ciência de qualidade requer Arte“. Manuel Sérgio defende ainda que “o futebol “é uma ciência, tem de ser estudado e praticado como uma ciência humana, porque são homens e cada ciência humana estuda o homem à sua maneira“.

“Passado meio-século, a nossa visão da natureza mudou radicalmente. Onde a ciência clássica falava de equilíbrio e de estabilidade, vemos agora flutuações, instabilidades, processos evolutivos. E isto a todos os níveis, desde a cosmologia à biologia, passando pela química.”

Prefácio do livro de Prigogine e Dilip Kondepudi, editado pelo Instituto Piaget, Termodinâmica – dos motores térmicos às Estruturas Dissipativas, citado por (Sérgio, 2016)

Se mudarmos ligeiramente a perspectiva, podemos ir mais longe e interrogarmo-nos se o jogador não poderá assumir o papel do tradicional investigador e o jogo, o seu laboratório. Porque no fundo é, em primeiro lugar, ele que experimenta, ele que erra, ele que aprende, ele que evolui, ele que constrói um corpo de conhecimento, mesmo que este surja predominantemente no domínio do saber fazer. E desta forma também nos interrogamos se, assim, o jogo também não se torna numa ciência que se desenvolve nos pés, ou melhor, na cabeça de quem o joga.

Este pensamento conduz-nos a outro problema no contexto do Futebol de Formação. O papel do adulto enquanto condicionador das experiências que a criança obtém através do jogo. Isto, claro, partindo do pressuposto que o treino para o adulto é jogo. Cada vez vai ganhando mais força a ideia da importância do Futebol de Rua, das suas características singulares, e da prática sistemática que este promove. Da forma como esse contexto, desprovido de adultos, liberto da pressão que o erro significa para os mesmos, leva a criança a ser o “cientista”, experimentando, aprendendo o jogo com este como o professor, proporcionando-lhe evolução, fazendo emergir o talento e até conhecimento. Em conversa com um amigo e treinador de futebol de formação, ele relatava que “engraçado foi os miúdos dizerem que o melhor jogador do jogo de sub-14 era o… mais pequeno da equipa deles!!! Até eles sabem que o tamanho conta pouco quando a qualidade é muita!” Portanto, é constantemente o adulto, baseando-se em lugares comuns, em experiências castradoras, no pensamento analítico que o domina fruto do paradigma educativo e social vigente em que cresceu, que acaba por deseducar futebolisticamente a criança, castrando-lhe pelo caminho, a criatividade e o pensamento divergenteComo esse treinador referia… “o problema das crianças é… tornarem-se adultos”.

“Antigamente, sobravam tempo, espaço e oportunidades para as crianças jogarem longe das regras dos adultos. Nesses espaços não havia limite de toques ou caminhos proibidos. Muito menos caminhos obrigatórios.”

Paulo Sousa citado por (Amieiro, 2009)

Bibliografia

Sobre Ricardo Ferreira 47 artigos
Apaixonado pelo jogo desde a infância, foi o professor Francisco Silveira Ramos que lhe transmitiu o mesmo sentimento pelo treino. Como praticante marcaram-no as experiências no futebol de rua. No jogo formal, as passagens pelo Torreense no Futebol, e no Futsal pelo Ereira e Benfica e Paulenses. Teve experiências como treinador e coordenador na Academia de Futsal de Torres Vedras e Paulenses (Futsal), em simultâneo, durante três anos. No Torreense durante seis anos, depois uma época no CDA, duas no Sacavenense e outras duas na Academia Sporting de Torres Vedras. Foi também, durante seis anos, coordenador de zona no recrutamento do Futebol de Formação e Profissional do Sporting Clube de Portugal. Posteriormente trabalhou dois anos como Coordenador Técnico no Futebol de Formação do Sport Lisboa e Benfica. No seu último trabalho, de regresso ao Sport Clube União Torreense, acumulou a liderança dos Sub19 e funções técnicas na equipa senior, equipas nas quais se sagrou Campeão Nacional na primeira edição da Liga 3, acumulando, no mesmo ano, mais duas subidas de divisão, à Segunda Liga e à Primeira Divisão Nacional de Sub19, totalizando sete promoções ao longo de toda a carreira. Foi co-autor do livro "O Efeito Lage" e é fundador do projecto www.sabersobreosabertreinar.pt.

2 Comentários

  1. Sublime… Nunca me canso de vos ler! Ah, e apreciei bastante as citações ao longo do texto, bastante pertinentes para o tema em questão. Keep going!

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