A recusa do cavalete

O jogo sempre se caracterizou por ser um acontecimento estratégico, no entanto, a sua história está contaminada por leituras em que esse acontecimento tende a ser reduzido para um entendimento mais básico e que se não necessita de profundos conhecimentos para o absorver. Ora, essa contaminação é um erro.

A dupla dimensão da táctica

Se queremos compreender uma estratégia de jogo, não podemos limitar-nos aos aspectos tácticos, é preciso compreender as dimensões psicológicas e comportamentais.

Bruna Rossi

Uma das grandes ilusões que o jogo nos oferece é o seu conteúdo básico. A forma como se retrata vinte e dois homens a correr atrás de uma bola ignora profundamente que, no jogo, a bola não é o actor principal, mas apenas um símbolo que nos ajudará a alcançar a vitória. Tudo aquilo que sempre foi o futebol aconteceu para lá da bola. A delimitação do espaço onde ocorre, a existência de duas pequenas metas ou balizas onde a bola deverá passar para se contabilizar jogo, a beleza da organização colectiva para o cumprimento desse objectivo.

Por ser jogado com os pés, o futebol foi muitas vezes visto como um acontecimento menor, quando, na verdade, a capacidade coordenativa de controlar uma bola com os pés, enquanto se corre num determinado espaço, evitando obstáculos vivos como são os organismos/equipas e cumprindo com as próprias regras do jogo, nos deveriam fazer compreender, de imediato, que estamos perante uma intensa actividade de conjugação intelectual e física.

Ora, como bem afirma Bruna Rossi, o conhecimento do jogo não pode ser concentrado num cavalete. A generalidade dos treinadores e jogadores vão confirmar que rabiscar um 4-4-2 num quadro não é nada em comparação com o trabalho que se desenvolve com um grupo de jogadores com vista a estes conseguirem interpretar em campo as dinâmicas necessárias para que o seu onze se possa superiorizar, num determinado dia, ao onze que se opõe.

Esta ideia de futebol como acontecimento complexo não está, como muitos tendem a defender, a desenvolver-se no presente. Não é o futebol que muda. É a sua natureza, a sua própria essência que, nos nossos dias, encontra ferramentas para que possa ser compreendida. Por isso mesmo, todas as noções mais técnicas de análise do jogo podem ser encontradas em jogos gravados nos anos 50, 60 ou 70. O jogo já estava lá. De básico, apenas a leitura que se fazia dele.

O singular plural

Faz algumas semanas, fui assistir a um ensaio do maestro Claudio Abbado com a Filarmónica de Berlim: um verdadeiro ensaio de grande singularidade. Maravilhoso era acompanhar a acumulação de partituras e associações instrumentais em um som sempre perfeito e distinto, o som do que é comum. De tanto em tanto, o maestro se distanciava, descia do palco e fazia ver que a orquestra tocava sozinha. Também vendo o futebol, tenho a impressão de ouvir uma música tocada por si só.

António Negri

A riqueza da função do treinador nasce, portanto, da forma como este elabora um processo de treino e o vai construindo através de leituras, tomadas de consciência, análises, reparos, evoluções. O futebol enquanto fenómeno colectivo é exacerbado nas palavras do filósofo António Negri. Partimos de um plano individual, quase solitário, que é uma ideia de jogo criada a partir da vontade do técnico, ainda que essa mesma ideia é já uma construção histórica, pelas dimensões de observação e conhecimento que traz pegada a si. Por outro lado, essa ideia necessita de um trabalho cooperativo de onze individualidades que, em si, já exigem essoutra cooperação entre cérebro e pés, tornando mais complexos os seus eventuais resultados. No entanto, a ideia de que esta orquestra, ou equipa, actuam sozinhas, é uma vez o convite à ilusão que o futebol nos faz, tornando mágico aquilo que podemos observar dentro das quatro linhas.

O futebol é, portanto, virtuoso porque é um jogo que reúne 22 singularidades que colaboram para um objetivo comum. Isso exalta a cooperação de pés e cérebros. Por mais paradoxal que pareça, podemos aplicar ao futebol os esquemas que derivam da sociologia do trabalho. Até o trabalho pós-moderno, imaterial e virtual, nasce da cooperação de funções intelectuais (de mãos e cabeças), realiza-se através de meios de comunicação e produz por meio de finíssimos nexos. O futebol seria como jogo pós-moderno? Não, certamente não: a modalidade nasceu em uma bela praça da Florença renascentista e foi codificado nas faculdades inglesas. É, logo, um fruto da modernidade. Apenas o futebol, melhor que qualquer outro esporte, adaptou-se à nova época na qual entramos, já que é o esporte das multidões. Das grandes multidões, que criam o espetáculo, mas, acima de tudo, daquelas pequenas multidões, aquelas aglomerações singulares, que constroem uma equipe.

Antonio Negri

O encontro num acontecimento estratégico daquilo que é, na táctica, ora uma construção cognitiva, ora uma construção social, gera um fenómeno que nos apaixona, por se aproximar tanto desse carácter uno que sempre encantou o ser humano. É bom, portanto, que se esqueçam as receitas fáceis que se repetem em cavaletes. O jogo sempre foi – e os nossos conhecimentos de hoje colocam-nos numa posição de vantagem perante quem ficou parado no tempo – muito mais do que isso.

Sobre Luís Cristóvão 103 artigos
Analista de Futebol. Autor do Podcast Linha Lateral. Comentador no Eurosport Portugal.

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