Carlos Queiroz. Um dos maiores influenciadores do jogo.

Pois, a idade.
O Fernando Santos é um treinador consagrado e eu fui treinador dele, vê lá tu. O que não abona a favor da minha idade [gargalhada]. Tenho impressão que há por aí treinadores já reformados que chegaram a ser meus jogadores. Eu antes era o miúdo que estava contra os dinossauros, a ver quando é que eles iam para a reforma; agora, eu sou o dinossauro e há alguns ex-futebolistas que andam por aí a pensar: “Quando é que este velho arruma as botas.” Curiosamente, tenho uma história sobre o Mourinho.

Conte.
Eu tenho a tese de fim de curso dele comigo. Ele e o Peseiro foram meus alunos e foram os meus melhores alunos. Qualquer dia digo-lhe: “Eh pá, ó Zé, temos de chegar a um acordo para eu não publicar a tese, para as pessoas não verem as asneiras que escreveste aqui” [risos]. Vou oferecer-lhe a tese, como prémio pela conquista da Liga Europa com o Manchester United.

Falou há pouco em Figo e é inevitável falarmos na Geração de Ouro.
Posso começar pelo João Vieira Pinto? É que ele é o mais carismático de todos, o que atravessa Riade e Lisboa. Comecei a trabalhar com o João tinha ele 14 anos. Estava a ver um treino na bancada e a ver aquele cabelo — ele tinha mais cabelo do que ossos e músculo — loirinho e o Gaspar Ramos, que era dirigente do Benfica, perguntou-me: “O que é que acha deste miúdo?” E eu: “É de levar já.” “Mas ele é tão magrinho.” O que acabou por ficar grosso foi o preço para o Boavista quando o vendeu ao Atlético de Madrid. O João Vieira Pinto era tão bom que a minha mulher, um dia, enquanto lia um jornal na bancada, levantou os olhos e disse: “Eh pá, aquele ali é mesmo bom, não é?” Não são precisos génios para descobrir jogadores assim.

Tinha uma relação paternal com todos eles?
O treinador é que fazia tudo: ia buscá-los à escola e levava-os ao treino; ia fazer matrículas à escola. Não tenho orgulho nisto, até tenho vergonha, aliás: não levei os meus filhos à escola mais vezes do que o número de dedos que tenho na mão esquerda; mas não tenho dedos num exército de pessoas para contabilizar o número de vezes que levei jogadores à escola deles.

Mas o João Vieira Pinto tem um contexto diferente.
Tem, sim. No Europeu de sub-16, em Bilbau, o João é um rapaz casado; aliás, teve de casar-se e ainda bem, porque teve um filho espetacular, o Tiago [Pinto, também ele jogador de futebol]. Eu tinha um jogador casado, prestes a ser pai, no meio dos outros que tinham visto maminhas pela primeira vez na vida; miúdos que foram ao peep show pôr uma moedinha para ver raparigas. E a quem é que eles contavam isto? A mim, ao treinador. Era como um pai. Hoje, os jogadores vão falar com o agente.

Voltando ao João…
Aconteceu-lhe algo que não devia ter acontecido: ir para Espanha, para o Atlético de Madrid. Ele foi o primeiro a ir para fora e perdeu a proteção do Boavista e do major Valentim Loureiro. Quando foi para Madrid, foi para a guerra da sobrevivência, que é quando os jogadores saem dos juniores para os seniores. O sénior olha para o júnior e diz: “Quero lá saber de ti, porque se tu jogares, não jogo eu.” E ele perdeu-se. Depois, o acidente de automóvel, o ter carro e não ter carta, enfim, uma série de circunstâncias que podiam ter sido complicadas para ele, porque estávamos a meses do Mundial de Lisboa. E foi então que fui buscá-lo à Corunha e o trouxe para minha casa, em Lisboa. Ele viveu comigo uns tempos. Disse-lhe: “Tens três semanas para te preparares e treinares a sério. De outra forma, estás fora do Mundial.” Fez um estágio fantástico. Não foi tão decisivo como em Riade, mas foi o termómetro de tudo e de todos: conseguiu pôr toda a gente a jogar melhor futebol. Não é para qualquer um. E, depois, o Paulo…

O Paulo Sousa?
Sim, o Paulo Sousa, atrevido e malandro.

Estamos a falar do mesmo Paulo Sousa?
Sim, sim. Lembro-me de jogarmos um torneio em Espanha e eu pu-lo a ponta de lança. É que vocês esquecem-se, mas o Paulo Sousa era avançado, depois extremo direito, depois médio direito, e só no fim é que passou para o meio-campo. Então, nesse torneio, contra a Nigéria, eu pu-lo à frente com uma missão específica e ele cumpriu-a: jogou muito bem e ainda conseguiu expulsar um dos defesas, depois de lhe ter feito duas ou três coisinhas malandras que fizeram o nigeriano perder a cabeça.

E o Figo?
Oh pá, quando cheguei ao Sporting, o Figo não se aguentava nas pernas com todos aqueles dribles; levava pancada e, pronto, ia para a relva e as pessoas do Sporting só comentavam isso. Só que o Figo levantava-se. É preciso ter um paraquedas, porque não se tem a mesma força nas pernas e no corpo. Há jogadores que não querem ir para a segunda divisão para ganhar experiência, para fazer a ponte para a primeira divisão — o Rui Costa, por exemplo, não queria ter ido para Fafe, mas foi o melhor que lhe aconteceu. Já o Figo… O Figo era ele próprio uma ponte. Não se perturbava com nada, zero ansiedade, numa perdeu a autoestima, nunca perdeu o seu futebol só porque nas bancadas o criticavam. Se queres cantar não vais para bailarino só porque desafinaste na outra noite.

Claro que sim.
Ora, eu sabia que o Skuhravý tinha uma lesão grave, porque o meu querido amigo Sven-Göran Eriksson [antigo treinador do Benfica que treinava a Sampdoria na altura] me avisou numa conversa confidencial. Pois bem, o Santana Lopes enviou o Luís Norton de Matos a Itália para o contratar sem eu saber. Cheguei ao treino e estava lá o Skuhravý. E eu, depois, tive de mostrar aos adeptos que tipo de decisão tinha tomado o presidente, pondo o Skuhravý duas ou três vezes em campo — o rapaz usava as meias quase até aos calções para as pessoas não verem o problema que ele tinha no joelho, coitado.

Zidane, Figo, Ronaldo, só jogadores com Bolas de Ouro no currículo.
Foi uma honra treiná-los. Com gente daquela não precisas de perder tempo para aumentar a autoestima, concentração, equilíbrio emocional. Dos três, o mais inacreditável era o Ronaldo “Fenómeno”. Nunca vi um jogador que impusesse tanto respeito, o chamado fear factor nos adversários. Onde ele estava, estavam três a marcá-lo, o que me deixava mais espaço para explorar. Era um tipo especial, com uma confiança inabalável. Quando treinava com o grupo, estava sempre alegre, divertido, às vezes relaxado demais, por vezes até perturbava; mas quando eu treinava um para um com ele, com cronómetro, o Ronaldo fechava a cara e dava tudo, contava tudo ao segundo. Tenho uma história…

Das boas?
Houve um jogo em que ele não se mexia, estava ali parado, aluado. Ao intervalo, dei-lhe uns berros: “Eh pá, mexe-te, faz golos.” Na segunda parte, mexeu-se, fez dois golos e no final do jogo veio ter comigo: “Quem é que salvou a cabeça do treinador, quem foi?” [gargalhada]. Mas essa equipa… Enfim. Imagine o que é ver o Figo, o Ronaldo, o Zidane e o Roberto Carlos a fazerem um minifutevólei dentro de um balneário minúsculo: [som da bola a ser chutada] pimba, pimba, pimba, pimba. E não eram uns toquezinhos; a bola era chutada com força e nunca caía. Alguns de chuteiras e o Ronaldo de… chinelos [risos].

 

Uma entrevista fantástica que pode ser lida totalmente aqui.

Sobre Rodrigo Castro 219 artigos
Rodrigo Castro, um dos fundadores do Lateral Esquerdo. Licenciado em Ed física e desporto, com especialização em treino de desportos colectivos, pôs graduação em reabilitação cardíaca e em marketing do desporto, em Portugal com percurso ligado ao ensino básico e secundario, treino de futsal, futebol e basquetebol, experiência como director técnico de uma Academia. Desde 2013 em Londres onde desempenhou as funções de personal trainer ligado à reabilitação e rendimento de atletas. Treinador UEFA A.

2 Comentários

  1. Nao falou dos Metrostars ;). Ate ai teve impacto e ganhou grandes admiradores apesar de estar a lidar com semi-profissionais numa liga nova. Tambem elaborou um plano de desenvolvimento para o futebol nos EUA que so nao foi implementado na altura por falta de dinheiro, mas muito do que se esta a ser feito agora tem por base esse plano.

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