Cultura, entender o jogo e as pessoas.

O futebol, jogo aparentemente tão simples, mas ao mesmo tempo tão complexo. Não somente o jogo em si, que por ser jogado com os pés e ter uma regra tão específica como a do fora de jogo, o tornam provavelmente no mais difícil de ser bem jogado, e no mais apaixonante de ser pensado. Mas, sobretudo por envolver tantos elementos, com formação diferente, com culturas diferentes, com ambições e expectativas diferentes.

E tantas vezes é o lado pessoal, as vivências anteriores de cada jogador, o que determina muito do que acontece no campo. Nunca é simples para um treinador impor as suas ideias. Os factores de resistência são mais que muitos, e a capacidade de persuasão terá sempre de estar presente e ser bem acentuada. Tantas são as vezes em que o mais difícil de se conseguir não é um processo de treino ou modelo de jogo condizente com os pergaminhos do clube. Mas antes controlar todas as variáveis próprias de cada um dos intervenientes do processo, e conseguir misturar tudo para um só produto final que rume ao encontro de todos.

Alguns excertos de entrevistas de José Couceiro ao jornal Expresso. As vivências de um treinador com uma experiência incrível, que lhe permite ter a sensibilidade para perceber o que é melhor em cada instante, para que o produto final seja o desejado por todos.

Posso contar uma coisa que aconteceu a nível do jogo. “Abi” significa, o mais velho. Se eu disser Muhammad Abi, é o mais velho Muhammad. E eu comecei a perceber que eles passavam a bola ao Abi, não à melhor linha de passe, mas ao mais velho, porque o mais velho culturalmente tem importância. Então falei com eles e disse-lhes que temos de ter respeito pelo mais velho, o mais velho é fundamental, mas em alguns momentos a decisão não pode ser essa porque não é tão boa para a equipa e isto não é nada contra o mais velho, é a nosso favor, etc, etc. E, devagar, os mais novos passaram a ter essa liberdade de não jogar sempre no Abi, mas na melhor linha de passe.

 

Já tive dissabores. Há muitos anos, uns alunos da Faculdade de Motricidade Humana pediram-me para ver um microciclo. Teve muitos períodos lúdicos, e expliquei-lhes porquê: a equipa estava com vários meses de ordenados em atraso e as coisas estavam difíceis, portanto tinha de prepará-los de uma forma diferente. O relatório deles ‘rasgou-me’ todo, de cima a baixo. A sério. Fiquei desgostoso, porque dificilmente se é treinador assim, há que conciliar o lado académico com o empírico. E por acaso até ganhámos a esse Braga do Jesualdo, no ano em que o Vitória depois ganhou a Taça.

Tão determinante para o sucesso quanto o perceber de treino e de jogo, é o perceber do indivíduo. O ter a sensibilidade para entender qual o momento oportuno para surgir cada uma das tarefas. Recordo um episódio pessoal. Na semana que antecedeu o jogo que determinaria o campeão de futebol feminino de há duas temporadas atrás, muito do tempo de um treino específico foi “gasto” em exercícios de finalização sem oposição. Algo que muito estranhou uma das pessoas que durante essa semana esteve a observar os treinos semanais. Afinal, quantas vezes já afirmei a inoperância de um treino descontextualizado do jogo? No treino da véspera, havia ouvido uns lamentos entre elementos do plantel “não estamos a fazer golos a ninguém. Ela não quer entrar… não sei como vai ser este fim de semana…”. O resto, perceberão vocês… Não houve seguramente ganhos técnicos ou tácticos. Não houve naquela sessão qualquer ganho ou consolidar do meu jogar. Não era o importante naquele momento, porém…

Com regularidade fazíamos reuniões com a presidente, era uma senhora. É economista e via os jogos por números. Numa das reuniões ela disse-me, “José, a equipa está a jogar muito para trás”. Perguntei-lhe porquê. E ela diz, porque o Pavlyuchenko fez muitos mais passes para trás do que para a frente. Tentei explicar-lhe que o Pavlyuchenko era o nosso pivot ofensivo, que quando jogamos com um pivot daquele género a tabelar, é evidente que ele tem uma percentagem de passos para trás ou para os laterais grande. Quando ele passa a bola para a frente é porque normalmente vai chutar à baliza. Eu não conseguia convencê-la porque ela agarrava-se aos números. Eu insistia, quando ele joga para a frente é para chutar à baliza, e isso tem a ver com o número de remates dele. Ela nada. Até que me lembrei. “Oh presidente veja lá se o Guilherme não joga sempre para a frente?”. Ela foi ver. O Guilherme é guarda-redes, portanto, obviamente que ele joga sempre para a frente, se jogar para trás faz pontapé de canto ou autogolo. Ela viu os números do Guilherme e eu rematei: “Está a ver como jogamos sempre para a frente?” A reunião acabou ali e nunca mais me chatearam com a história da equipa jogar para trás. Como disse, o entendimento do jogo é fundamental, não é só agarrar numa série de números e despejar para cima de nós.

Sobre discussões antigas, um excerto genial de como José Couceiro desmontou uma determinada estatística que pretendia explicar o jogo.

“A estatística que tenta explicar o jogo” – AQUI:

Poderão os números explicar o jogo? Poderão os números avaliar a exibição individual de um qualquer jogador?

Nem por sombras. Nos dias de hoje em que as equipas são autênticos colectivos que se devem mover em conjunto e que o jogo não é mais o somar de características e funções diferentes de cada jogador, numa era em que todos devem participar em todos os momentos, há duas variáveis que definem todo um rendimento.

Posicionamento e Tomada de decisão / acção.

Como se avalia estatisticamente um mau posicionamento?

Por exemplo, na partida de ontem Palhinha obteve uma nota superior a Danilo. Porque venceu mais duelos aéreos, somou mais desarmes, e outras variáveis que não foram reveladas. Mas, como se avalia estatisticamente o mau posicionamento do primeiro golo do FC Porto? Desalinhado do central que define a altura da última linha, coloca Soares em jogo e permite ao FC Porto adiantar-se. Ou outros maus posicionamentos que impedem a equipa de ter segurança defensiva, ou não lhe garantem capacidade para ligar o jogo ofensivamente?

Como se avalia estatisticamente o tempo que Rúben e Schelotto demoraram a fechar atrás de Coates? O argentino então… abre o campo e coloca-se do lado de fora de Soares! e a opção de Coates relativamente à colocação dos apoios e ao baixar / sair, no lance do segundo golo do FC Porto?

Lisandro, é tido como o melhor central do Benfica. Porque somará muitos desarmes e vencerá muitos duelos, entre outras variáveis. Mas como se avaliará estatisticamente o seu posicionamento? Recorde o golo do empate do Moreirense na Taça da Liga, e a distância a que estava de Jardel, e a altura a que estava de Ederson com bola tão próxima? Não poderá o mau posicionamento ser a causa de posteriormente se ter de intervir mais? Mau controlo da profundidade, bola nas costas e lá vai em sprint resolver o lance e ganhar pontos na avaliação individual. Bom posicionamento da profundidade e o passe não sai, nem intervém. Jogo menos conseguido.

E não venham com os GPS para aferir dados do posicionamento. A menos que o GPS esteja ligado a todos os jogadores e à bola! Porque cinquenta centímetros mais à direita poderá ser errado, e cinquenta centímetros mais à esquerda correcto. Como se descobre isso se tudo o que é bem ou mal posicionado depende da posição da bola?

Com bola nos pés, a situação não é diferente. Porque um passe certo poderá ter um valor muito reduzido e ser uma má decisão que afasta a equipa da vitória. Caso extremo. Imagine o portador da bola com um colega sem oposição pronto para seguir para a baliza isolado, e a optar por um passe para outro colega. Terá sido um passe correcto. Terá contribuído estatisticamente para um bom jogo. Porém, uma decisão péssima! Que penalizou a equipa e que deveria baixar a sua “nota”! Um passe que chega ao destino poderá não ser um bom passe. Como se pode analisar por números um exibição ignorando o que é mais importante em cada acção. Que é naturalmente a decisão que traz por trás.

O jogo é demasiado complexo e só analisando cada acção ao milímetro só poderá perceber se um passe certo é de facto um passe certo. De que adianta um médio defensivo que baixa para a linha do centrais na construção, ficar só a tocar com os centrais, aumentando a sua “nota”. Que mais valia será isso, comparando com outro que soma menos passes mas colocou mais vezes a bola entre os sectores adversários, porque o seu passe vertical rompeu primeira linha adversária?

Deve portanto renegar-se toda e qualquer ajuda estatística? Não necessariamente. Poderá ser útil em diversas ocasiões. Nomeadamente quando há que “matar” em privado alguém, justificando saída da equipa, por exemplo. No fundo, uma arma interessante para quem percebendo o como pode ser redutora, usar com os menos atentos…

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Sobre Paolo Maldini 3828 artigos
Pedro Bouças - Licenciado em Educação Física e Desporto, Criador do "Lateral Esquerdo", tendo sido como Treinador Principal, Campeão Nacional Português (2x), vencedor da Taça de Portugal (2x), e da Supertaça de Futebol Feminino, bem como participado em 2 edições da Liga dos Campeões em três anos de futebol feminino. Treinador vencedor do Galardão de Mérito José Maria Pedroto - Treinador do ano para a ANTF (Associação Nacional de Treinadores de Futebol), e nomeado para as Quinas de Ouro (Prémio da Federação Portuguesa de Futebol), como melhor Treinador português no Futebol Feminino. Experiência como Professor de Futebol no Estádio Universitário de Lisboa, palestrante em diversas Universidades de Desporto, Cursos de Treinador e entidades creditadas pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ). Autor do livro "Construir uma Equipa Campeã", e Co-autor do livro "O Efeito Lage", ambos da Editora PrimeBooks Analista de futebol no Canal 11 e no Jornal Record.

1 Comentário

  1. “O futebol, jogo aparentemente tão simples, mas ao mesmo tempo tão complexo. Não somente o jogo em si, que por ser jogado com os pés e ter uma regra tão específica como a do fora de jogo, o tornam provavelmente no mais difícil de ser bem jogado, e no mais apaixonante de ser pensado.”
    …me encanta!!!!!!!

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