Faz-me sempre imensa confusão alguns dos preconceitos que este país à beira mar plantado ainda guarda. Hoje numa entrevista fascinante ao Jornal A Bola, o mestre do processo de treino e do jogo em Portugal, enquanto volta a dar lições sobre o jogo e sobre a formação, sente necessidade de romper com um paradigma.
Tenho vindo a trabalhar com jovens, mas a minha área até é o alto rendimento. A minha participação no futebol jovem é sempre com a preocupação de que as etapas sejam bem construídas e que tenhamos jogadores que estejam na melhor condição possível quando chegam ao alto rendimento.
É no treino que me sinto bem, que me sinto em casa. É com jogadores à minha volta, com equipas técnicas à minha volta, que me sinto realizado…
…não sou nada apologista daquela ideia de que quem não sabe ensina, e quem sabe faz. Pelo contrário, procurei na minha vida quebrar esse paradigma
Fica a sensação de que poderá haver demasiada gente a olhar para uma das maiores referências sobre o jogo em Portugal, como alguém que deve unicamente encaixar em determinado contexto. É certo que o seu percurso na Federação Portuguesa é genial, e contribuiu para promover um sem número de talentos que mais tarde enriqueceram a selecção portuguesa principal. Todavia, é impensável continuar a associar Francisco Silveira Ramos somente ao trabalho de excelência na formação. E não precisaria de ter tido o percurso absolutamente brilhante que teve na temporada transacta em Fátima, para o provar.
Sobre a deliciosa entrevista, uma série de assuntos também abordados cá ao longo do tempo:
o futebol é um jogo de enganos
Nem a propósito, sobre o último texto que construí para o site, na véspera de ter saído a entrevista: Kevin de Bruyne, a arte do engano (aqui). Texto publicado hoje, mas redigido no dia de ontem, conforme a data de upload do video no youtube ajudará a confirmar.
São os frutos do nosso futebol de rua, da aprendizagem sem o adulto estragar (sobre Ronaldo, Ricardo Carvalho ou Rui Costa). Sem essa cultura teremos muitos jogadores como a Dinamarca e a Noruega, aqueles jogadores de laboratório, com processos muito lineares, mas sem o que futebol que nos apaixona, da imprevisibilidade.
Estamos a criar jogadores de futebol aos 12 anos, e não há jogadores com essa idade. Há miúdos que jogam à bola. Isso, sim. Só começas a construir futebolistas a partir dos 16/17. Vejo meninos de 12 anos cheios de táctica e depois aos 18 / 19 vejo-os a cometerem erros. Deixem os miúdos jogar à bola, porque têm muito tempo para aprenderem o futebol. Aos 12 / 13 têm de arriscar o drible… mesmo que percam a bol
Mas o jogo é colectivo… Ninguém consegue resolver os problemas de jogar em equipas se não resolver os problemas da bola e do adversário directo.
Nos últimos anos os grandes laterais foram extremos na sua formaçaõ. Isto deve ser uma grande lição para nós. Para se jogar no alto rendimento, a destreza técnica, o engenho, é importantíssimo.
Sobre problemas da formação, tantas vezes abordados cá (etiquetas – Futebol Formação – Futebol de Rua). A importância do jogo, do crescimento livre de amarras, e da qualidade técnica e da destreza como forma de maximizar potencialidades e resolver problemas.
Aproximou-se de mim e terá dito: aquele vai ser dos melhores do mundo. Lembra-se de quem era?
Imagino. Muitas vezes disse que o Cristiano iria ser o melhor português a seguir a Eusébio… diziam-me que estava louco…que havia o Chalana e o Futre… o que via é que poderia ser um extra terrestre, e hoje já terá ultrapassado o Eusébio…
Recordo um episódio algures entre 2001 e 2002, no ano em que o Sporting voltaria a sagrar-se campeão nacional. Terá sido a primeira vez que ouvi o nome de Cristiano Ronaldo. Encantava Ricardo Quaresma, ainda antes da chegada de Ronaldo à equipa principal. Porque Silveira Ramos era também treinador de Quaresma nas selecções jovens, uma turma em peso perguntava-lhe pelo “cigano”. “…é bom… é muito bom… mas quando vocês virem outro que lá anda…” “…quem…?” “Cristiano Ronaldo. Fixem o nome…”.
Portugal foi pioneiro nessa capacidade de aliar a vertente estratégica às metodologias de treino mais avançadas. Isso produziu alguns dos melhores treinadores do mundo. Não percamos isso, não nos agarremos a preconceitos. Identidade não é jogar sempre com os nossos argumentos expostos. Nenhum grande general faria isso… Estratégia é utilizar o que temos de melhor…
Há muita dificuldade em perceber que no jogo, tudo é contextual. Frases ou ideias feitas, não encaixam em diferentes contextos. Uma certa vaga de quem não tem experiências de campo relevantes acredita que só há uma única forma de jogar e que essa forma é infalível. Embora me pareça ser muitas vezes o caminho manter sempre a identidade, é importante perceber que só quem tem mais recursos que o adversário se pode dar ao luxo de nunca preparar estrategicamente cada batalha. A frase de Silveira Ramos não traduz somente um conhecimento muito grande sobre o que é o jogo e de que forma se pode vencer nele, mas sobretudo garante-nos que está preparado para o passo seguinte. E que não tarde, porque o futebol em Portugal precisa de génios como ele no campo.
De facto, outro nível. Gostaria de vê-lo a treinar uma equipa da Primeira Liga, mas que fosse inserido num projecto a longo prazo. Falou-se no Estoril, sempre será verdade? Mas considerando o micro-clima empresarial que gira à volta desse clube, tenho dúvidas de que seria o mais indicado.
No que toca a grandes “visionários”, e se conseguirem fontes em inglês, pesquisem sobre o alemão Helmut Groß, Mentor do grande Coordenador do “actual” Futebol Alemão – Ralf Rangnick, que influenciou os principais treinadores, casos de Jogi Low, Klopp, Tuchel, Ralf Schmidt, Nagelsnmann, entre outros, e esteve na base do modelo de sucesso do Hoffenheim e Red Bull – Leipzig e Salzburgo.