Mourinho na espiral do tempo

Na Espiral do Tempo (2009) uma entrevista fabulosa de José Mourinho (aqui).

 

Quando foste para o Chelsea, entraste para o meio dos ingleses. Já gostavas de ingleses desde miúdo?
Gostava do futebol inglês.

Mas tinhas relações com ingleses?
Não, não tinha. Só em adulto, quando trabalhei com o Robson.

Gostavas das séries inglesas ou de literatura inglesa?
Eu era completamente vidrado era no futebol inglês. E confesso que foi o futebol inglês que me puxou naquela direcção.

Nessa altura os portugueses seguiam o  futebol inglês?
Só seguiam aquilo que chegava, que eram as competições europeias e um jogo anual que era a final da Taça de Inglaterra.

E tu?
Eu seguia, até porque era um jogo anual.(Risos) E era aquela situação de Wembley, com o carisma que tinha.

Assinavas revistas inglesas?
Assinava. Claro.

Não era comum nos miúdos portugueses dessa altura.
Pois não. Lembro-me perfeitamente de um dos meus aniversários, quando fiz 8 ou 9 ou 10 anos. Obviamente não tinha Internet nem acesso ao tipo de informação que agora qualquer criança tem. Era uma aflição. E eu lembro-me perfeitamente que a prenda que eu quis foi a assinatura de duas revistas: a inglesa World Soccer e a francesa Onze Mondial.

E nessa altura as assinaturas eram caras…
As assinaturas eram caras e não era o mesmo processo de hoje. Hoje queres fazer uma assinatura, chegas à internet e está feito. Naquela altura, lembro-me perfeitamente, tive que ir com o meu pai ao banco; no banco o meu pai teve que pagar à Bertrand e depois ainda tive que trazer um  papelinho do banco para mandar para lá… Uma grande trabalheira! Não me recordo quanto é que uma revista daquelas poderia custar: uns contos, uns contitos anuais. Mas também o processo para se atingir aquilo era importante para mim. E depois, sim, eram revistas que me faziam comer o futebol internacional.

E da excitação de quando chegava uma revista, lembras-te?
Eram as duas revistas mensais. E eram boas revistas. Depois, tinham uma coisa que me começava a abrir um grande apetite: eram revistas que tinham sempre cupões de publicidade a centros de treino, de férias de Inverno, de férias de Verão. Imagina, um tipo com 12, 14, 15 anos a ler anúncios de centros de formação para novos treinadores, em Paris, em não sei quê, em Inglaterra.. Eh pá, mas eu quero fazer esta coisa e não sei quê! E depois, quando cheguei já à idade adolescente adulta, à primeira oportunidade que tive (e ainda aqui eram grandes motivações para mim); a primeira coisa que eu quis fazer foi um curso de treinadores no estrangeiro. Foi logo a primeira coisa!

Já tinhas muito trabalho por esses anos…
Já tinha. Depois havia também uma coisa que eu fazia… Não era só ler os artigos.

Não lias só passivamente.
Não, não! Eu estudava a revista. Ainda  agora fui entrevistado por um canal francês de televisão e quem me veio entrevistar foi o Daniel Bravo, que foi um bom jogador dos anos 70. E o tipo veio-me entrevistar mas vinha assim um bocado…(faz cara de snob e entediado) porque Daniel Bravo foi um bom jogador, mas não foi aquele jogador de que as pessoas hoje se lembram, como se lembram de um Platini. Foi assim um bom jogador que se transformou num bom jornalista. E vira- se para mim, naquela de ser o Daniel Bravo a entrevistar o Sr. José Mourinho e eu disse ao gajo: «Eh pá, tu desculpa lá, pá; tu mete-te ao mesmo nível do que eu porque eu sei tudo de ti». E ele: «Mas tu sabes tudo de mim o quê? Quando eu jogava na selecção francesa?» «Não», respondi eu, «eu sei tudo de ti quando tu jogavas no Nice, contra o Metz, com 18 anos; eu sei tudo de ti».

Já sabias de antemão? Não foi preciso ires ver quem é que te ia entrevistar?
Eu lembrava-me perfeitamente dele. Quando ele começou a falar comigo eu sabia tudo. Sabia que ele tinha começado como atacante e que tinha acabado como médio, que tinha começado aqui e que tinha acabado ali. Sabia tudo da carreira dele.

As revistas eram a única maneira de saber essas coisas.
Eram a única maneira. Depois, uma outra coisa: em Portugal não havia traduções. Pelo menos ao nível do futebol, não havia traduções. Os livros que se publicavam eram livros que apareciam quando o professor não sei quê da universidade de não sei quê, do INEF, resolvia fazer um livrito; quando o rei fazia anos. E nós íamos muitas vezes a Espanha só à procura de livros.

De traduções…
Fundamentalmente de traduções, porque os espanhóis traduziam muito. Nós chegávamos a Espanha e encontrávamos traduções de autores franceses, de autores ingleses e de autores alemães, principalmente da Alemanha de Leste, de onde vinha muita informação desportiva, sobretudo ao nível do treino físico desportivo…

Como é que os outros miúdos reagiam quando te viam com as revistas?
Os meus amigos eram todos eles apaixonados pelo futebol, mas mais pelo futebol jogado…por eles.

Lias francês e inglês?
Eu lia francês e o inglês da escola. No ciclo tinha francês e inglês. Quando passei para o secundário já não tinha francês, mas continuei com o inglês, e depois isto do futebol obrigava-me a aprender. Depois, um dos meus melhores amigos da altura tinha vivido em França muitos anos e falava melhor francês do que português.

E viagens?
Não posso dizer que viajava muito, muito, muito. Mas naquela altura os miúdos da mesma geração, da mesma idade, praticamente resumiam a sua vida a Portugal a umas feriazinhas no Algarve e uma idazinha a Badajoz, enquanto eu…já viajava um bocadinho.

E a imprensa italiana?
Os italianos só numa fase posterior.

Quando é que começaste a ler os jornais desportivos estrangeiros?
Os jornais desportivos estrangeiros só comecei a ler quando já era autónomo. Por exemplo, na Faculdade eu lembro-me claramente de passar tempo na biblioteca — ainda não uma biblioteca computorizada, obviamente — à procura de artigos.

Para os teus estudos ou para ti próprio?
Para mim próprio, mas sem estar restrito à necessidade da Universidade. Eu fazia a minha pesquisa fora do âmbito. Eu por exemplo, acho que poderia ter sido um aluno de faculdade com muito melhores notas do que aquilo que eu tive. Eu digo-te muito honestamente, para mim, um aluno de faculdade, principalmente numa área como a nossa, não é a nota que o faz melhor ou que o faz pior.

Eu também ia à biblioteca e fazia exactamente o que tu fazias.
Ainda agora quando estive no ISEF, com esta história do doutoramento, falei com  alguns professores e colegas e recordávamos que havia disciplinas em que eu nem ouvia o que os professores diziam. Eu sentava-me lá e nem ouvia o que eles diziam.

Tinhas a noção de estar já a escolher o que te interessava?
Desde o primeiro dia. Antes de entrar eu sabia o que é que queria.

A ti interessa-te muita coisa, não é?
A mim interessa-me muita coisa mas, na Faculdade, há um tronco comum de três anos. Havia muita coisa que não me interessava nada. Tanto eu, que queria ser treinador de futebol, como um colega, que queria trabalhar no ensino especial com deficientes, tínhamos um tronco comum de três anos de estudo. Com duas pessoas, com duas cabeças completamente diferentes nos seus interesses.

José Mourinho

© Kenton Thatcher/ Espiral do Tempo

E tu seleccionavas.
Eu sim, mas havia outros que focalizavam muito mais na sua nota. E nós, no outro dia, quando falámos lá no ISEF, chegámos à conclusão que aprendemos muito mais entre nós e nos intervalos entre as aulas.

Sabias o que tinha a biblioteca toda?
Sabia. Sabia. Pelo menos durante os anos que eu mais disfrutei dela.

Era boa?
Digamos que a biblioteca era rica no sentido de dar resposta às necessidades que o estudante tinha como estudante daquela universidade. Se eu quisesse estudar para o exame de Anatomia, a biblioteca estava cheia daquilo que eu precisaria, caso estivesse para aí virado.

Mas tu estavas mais dirigido para…
Eu estava dirigido para ser muito mais do que um pesquisador de informação. A verdade é que estava muito limitado. Na Faculdade nós tivemos que estudar o grande metodólogo de Metodologia de Treino da altura. Era um livro grande e tivemos que o estudar da frente para trás e de trás para a frente. Mas eu desde o princípio vi que era um treino desportivo generalizado. O que me interessava era treino de futebol, que é uma coisa muito mais específica e cruel, mesmo ao nível físico. Não é o mesmo treinar uma equipa de futebol ou treinar um atleta individual ou um nadador ou um jogador de basquetebol… E eu não aceitei aquele senhor.

Porque te prejudicava.
Eu sempre quis a especificidade…

E onde estava?
Tinha que ir à procura e só depois de acabar a faculdade…

E como reagiam os professores?
Acho que o ISEF até tinha um tipo de professores se calhar um bocadinho ‘adiantado’ no tempo porque davam-nos muito espaço para a dúvida, para a questão, para a interrogação e …

E tinhas a humildade de perguntar?
Eu tinha o à-vontade para duvidar e também o à-vontade para duvidar da abertura dos professores para aceitarem a dúvida.

Não perdias tempo com o outro universo.
Não. Eu jogava. Havia disciplinas completamente descontextualizadas da minha ambição intelectual, completamente descontextualizadas, porque eu tinha a noção clara que tinha que a fazer para ter o canudinho e para andar em frente e que eu fazia.

Consideras  que aproveitaste bem esses anos?
Eu aproveitei muito bem esses anos. Para mim os anos de faculdade foram anos óptimos.

Se fosses um miúdo agora, com todos os meios à tua disposição, achas que conseguirias seleccionar o que era essencial?
Sim, eu penso que sim. Eu penso que era capaz de escolher.

Estudavas em Portugal?
Penso que era capaz de ter saído.

Com 18 anos o que é que farias?
Com 18 anos o que é que faria? A faculdade fazia sempre.

Mas onde? Se não quiseres responder não faz mal.
Não, eu acho que as duas faculdades fundamentais de desporto em Portugal são ricas de capacidade e são ricas de ideias mas são pobres efectivamente…

De meios…
De meios, sim. Por exemplo, a Portugal Telecom é um dos meus sponsors e eu agora com o meu ISEF fiz um ‘desvio’ de fundos em que a PT vai fazer um investimento na faculdade ao nível dos laboratórios, ao nível das instalações, laboratórios de investigação, de biomecânica, de fisiologia. A PT vai fazer isto porque a PT é também aberta a este tipo de coisa e, como é meu patrocinador, terá prazer em que eu faça uma coisa que me dá prazer a mim e à minha faculdade.

Então para que país é que ias estudar, se tivesses 18 anos agora?
Por exemplo, eu com as minhas equipas vou fazer os treinos de pré-época para os Estados Unidos. Porquê? Porque, ao nível das global facilities, como eles dizem, aquilo é paradísiaco. Quer dizer, o tipo de laboratório, onde nós treinamos; as condições de treino; as condições de  investigação; a investigação do corpo, neste caso é do corpo do grande profissional. Mas um estudante teria de ver as condições de investigação numa outra perspectiva. De qualquer forma, as condições são incomparáveis.

Conheces bem?
Conheço bem, vou para lá todos os anos. Este ano vou para lá outra vez.

Falas directamente lá com os gajos, com os investigadores?
Falo e é giro porque um tipo cá pensa que o nosso futebol não é lá muito forte; nós pensamos lá que eles são basebol, são futebol americano, são basquetebol, são NBA. Mas eles são muito, muito, muito o nosso Soccer também! Conhecem-nos; admiram-nos; querem colaborar e depois, obviamente, querem demonstrar a sua força nas áreas onde podem demonstrar a sua força; ou seja exactamente nestas áreas de investigação que apontei; nas áreas médicas.

Mas tu sentes que esse isolamento futebolístico dos EUA vai acabar?
Não sei. É um bocado difícil porque eu penso que o futebol é um bocadinho inadaptado, na sua essência como jogo, ao americano. Um intervalo, 45 minutos de jogo, um intervalo, mais 45 minutos de jogo… quando é que os gajos vão comer hamburgueres? Quando é que os gajos metem publicidade? Quando é que as famílias se levantam para irem à shop; para irem à loja e virem carregados de produtos de  merchandising?  É uma construção completamente diferente.

Mas porque é que é preciso ir aos Estados Unidos treinar?
Eu gosto, por exemplo, de trabalhar com as minhas equipas médicas — que obviamente têm um médico chefe — mas que depois, na estrutura de trabalho, permite-me que eu continue a ter, como  manager da minha equipa, essa situação sob controlo. É o que acontece nos Estados Unidos. Eu gosto que os meus departamentos médicos sejam abertos e não estanques. Quando um jogador meu tem um problema no joelho quero que este joelho seja visto. De todas as maneiras.

Dás-te bem com médicos? Consegues comunicar com eles?
Eu tenho meu pequeno staff de que não abdico. Somos quatro; vamos juntos; cada um é especializado na sua vertente e tenho imensa confiança neles. Depois, quando entro, o meu discurso é sempre o mesmo não só à sociedade, ao presidente, à estrutura, mas também às pessoas que lá estão: Eu não vou mudar nenhuma pessoa sem antes perceber se a devo mudar ou se não a devo mudar. E depois tenho a sorte — ou o azar — de encontrar pessoas que se adaptam à nossa forma de trabalhar. (Risos)

Já pensaste muito bem aquilo que queres e és capaz de apresentar isso.
Exactamente.

Porque há pessoas que sabem o que querem, mas não sabem como apresentar.
Eu penso que nós, o nosso staff é muito forte nisso também, na explicitação da ideia, na sistematização da ideia.

José Mourinho

© Kenton Thatcher/ Espiral do Tempo

Como é que essa maneira de trabalhar se coaduna com as várias culturas? Por exemplo, em Portugal. Ou com os ingleses e com os italianos? Culturalmente, quais são os mais difíceis?
Culturalmente, o Porto foi fácil para mim. O Porto foi fácil porque no Porto trabalha-se com grande paixão. As pessoas são apaixonadas, as pessoas de base…

Foi fácil para ti.
Fácil no sentido em que as pessoas que trabalham, aquelas pessoas que são ‘fixas’, os médicos, o departamento médico, são apaixonadas não só pelo seu trabalho como também pelo clube.

E o Porto é diferente dos outros portugueses?
Eu acho que sim. Em Portugal trabalhei pouco, como sabes. Estive pouquinho tempo no Benfica e trabalhei pouco…

Mas no Porto…
Mas o Porto, o meu Porto foi muito fácil de estruturar. Era um clube que estava num momento que se pode dizer, nestes últimos 20 anos, de maior dificuldade. Se calhar, aquela queda foi, de certeza, o início de uma ascensão porque estavam sequiosos. Sequiosos de uma linha condutora que já tinham ao nível administrativo (com o Presidente era o mesmo) mas agora ao nível do treino, de organização específica do trabalho diário. Era disso que estavam sequiosos.

E isso ajuda muito, não é?
Pessoas como o Dr Nelson Pulga, o Dr Esteves, pessoas que estavam de braços abertos à espera que alguém chegasse. Eles estavam era desesperados de viverem na situação em que estavam a viver. E depois chegou lá uma pessoa que disse «Ok vamos nesta direcção» e eles vão nesta direcção e foi muito fácil.

E o Chelsea?
O Chelsea era um clube estranho porque era o clube mais rico do mundo, na altura, apesar de, estruturalmente, o Real Madrid, o Manchester e o Barcelona serem muito mais fortes. Mas o dinheiro vivo estava ali. E era uma clube onde toda a gente estava desesperada para ganhar, porque era um clube feito para ganhar que não conseguia ganhar. A primeira vez que viajo a Londres, já como treinador do Chelsea, chego ao ‘centro de estágios’ do Chelsea e o centro de estágios não era do Chelsea. O centro de estágios era uma escola, uma high school! Quando o Chelsea treinava, o Chelsea treinava e, quando o Chelsea não treinava, a escola ia ter aulas no mesmo espaço. Os  balneários eram aqueles balneários do meu tempo de escola, de liceu — se calhar do teu também — onde se equipavam seis ou sete putos e eram seis ou sete balneários. Eu quando chego lá, disseram-me «Olha, este balneário aqui é onde se equipam os ingleses».

O Chelsea é um clube um bocado sui generis, não é?
Era muito sui generis.

A imprensa inglesa, que é sempre (muito céptica, gostava de ti. E tu gostavas muito deles também?
Gostava, gostava.

Aqui em Itália é muito mais difícil não é?
A imprensa aqui é uma imprensa futebolística.

Muito parcial, não é?
É uma imprensa que eu, se calhar, qualifiquei de um modo demasiado forte. Mas qualifiquei numa altura onde o campeonato estava em fogo e senti necessidade de atiçar um bocadinho mais o fogo. Qualifiquei como «prostituição intelectual». É uma imprensa onde o dono do principal jornal desportivo é o dono do Milan. Uma das duas televisões mais importantes, que é a mais forte ao nível do futebol, que tem os comentadores importantes, os comentadores mais credíveis, que tem os nomes mais  importantes e que, por isso, têm mais força do que todas, o dono dessa televisão é o dono do Milan. Depois Milão é uma cidade que é metade Inter e metade Milan — mas só o Milan tem esse nível mediático. É uma imprensa que não é fácil. É uma imprensa que, por muito independente que queira ser, acaba sempre por não ser independente. E isso cria uma dificuldade acrescida a um clube como o meu, não é?

Eles pronunciam Mourinho como nós pronunciamos em português. Mourinho não é um nome fácil de pronunciar. Mas quando os miúdos estão todos a cantar e dizem o teu nome, eles dizem o teu nome bem.
Sim, sim, dizem o nome bem. Por acaso eles sempre tiveram essa preocupação de perguntar como é que se pronuncia…

E depois conseguem dizer…
Conseguem, conseguem…

Mas ser do Chelsea na Inglaterra não é ainda mais minoritário?
Eu dizia que o Chelsea simbolizava tudo aquilo que os ingleses não gostavam. Ou seja, quem era o dono do clube? Um multi-milionário estrangeiro que chega aqui e que compra e que paga e que quer ganhar treinado por um maluco de um português que chega aqui e vem armar confusão  e vem aqui criticar ou dizer que isto está bem…

Mas ingleses respeitam-te.
Respeitam. Os ingleses são a potência que são ao nível das competições europeias de clubes porque são abertos a tudo isso. …

O que distingue os futebolistas ingleses?
Têm uma emotividade incrível para com o jogo; uma paixão incrível para com o jogo de futebol. No entanto, ao nível da metodologia, ao nível do seu jogo, são muito directos.

O que é que isso quer dizer?
(Mourinho explica com um diagrama.)
Há um ponto A e um ponto B. Os ingleses pensam que tanto faz ir de A para B como de A para C e de C para D e de D para E e só então de E para B. Não apreciam a complexidade dos ziguezagues. É a sua cultura; são diversos meios para se atingir. Por exemplo, em Inglaterra, uma bola chutada daqui para aqui para os ingleses tem o mesmo significado que isto; isto aqui tu fazes, se tiveres força para fazer tu fazes, ‘kikas’ a bola e metes a bola aqui, agora teres a capacidade para fazer isto, isto e isto, passar para aqui e passar para ali, movimentar aqui e chegar aqui e chegar ali, tu não tens capacidade para isto. Isto é muito mais difícil, mas para eles, o objectivo é que a bola chegue aqui. É um pensamento muito mais rectílineo.

É demasiado simples…
E porque é demasiado simples não é  suficiente para eles atingirem determinado objectivo.

Mas safam-se.
Fazem-no no momento da emotividade. Mas neste momento, o futebol pensa. Desde a primeira ‘invasão de estrangeiros’ que é assim.

É da cultura?
É da cultura. A maneira como eles se estruturam, o grande boom do futebol inglês foi no momento em que aparecem o treinador do Chelsea, um português, treinador do Arsenal, um francês, treinador do Liverpool, um espanhol…

É mais uma importação.
Aqueles dois ou três anitos foram muito importantes e o Alex Ferguson disse uma coisa que me ficou; que foi «O sucesso do Manchester na era pós-Mourinho foi graças a Mourinho». Deve-se a nós, porque fomos nós que pusemos a fasquia mais alta. Ele nunca teve dois anos sem ganhar nada. Teve dois anos sem ganhar nada e ele disse «Este Manchester não é suficiente e, como não é suficiente, temos que fazer mais».

Em termos culturais futebolísticos, qual é o contrário dos ingleses?
É o espanhol. É um táctico por natureza; a sua equipa parece xadrez, é táctico; para mim demasiado táctico.

O que é que acontece às pessoas  demasiado tácticas?
Uma pessoa demasiado táctica é aquela para quem tudo isto está predeterminado.

Aconteça o que acontecer…
E quando ela chega aqui e esta situação não pode acontecer, o jogador tem a bola aqui e se esta situação não pode acontecer, ele já não sabe o que há-de fazer. É uma diferença fundamental. Eu sou um táctico, mas eu quero que os meus jogadores saibam pensar, saibam decidir. Porque eu, dentro de campo, eu não posso decidir…

E deixas decidir…
Deixo decidir porque a maneira como nós trabalhamos, eu chamo-lhe ‘descoberta guiada’, porque no fundo foi uma terminologia que eu encontrei, para quando nós estamos a trabalhar tacticamente, mas no meio do nosso trabalho táctico, existe espaço para a comunicação, existe espaço para os jogadores terem dúvidas, existe espaço para eles perguntarem, existe espaço para eles descobrirem.

Tu conseguiste, todos dizem, que só tu consegues aquela lealdade a longo prazo, mesmo jogadores do Chelsea, que eu acompanho, em que passados muitos meses, continuam…
Estamos a falar exactamente no dia depois de eu ter sido Campeão de Itália, que é a minha equipa, que ao nível do jogo, da qualidade do jogo, é de todas as minhas equipas a que eu gosto muito. É a equipa que eu gosto mais do ponto de vista humano, é a equipa que tem acumulada melhor gente, que tem acumulada gente que joga nos seus limites, que não tem mais nada, mas mais nada para dar, para desenvolver, mas é uma equipa em fim de ciclo. As minhas equipas antes eram sempre equipas em início de ciclo, em início de um ciclo.

É mais difícil este período?
É muito mais difícil.

É como os modelos de automóvel quando já têm 15 ou 20 anos?
É muito mais difícil. Uma média de idades superior a 32 anos. São 8 jogadores acima dos 34 anos, são jogadores já no limite do seu potencial.

E que já ganharam.
Eu não vou por aí, porque humanamente é tão bom que eles querem continuar mais. Agora o espaço de evolução do jogo da equipa é que não. Eu cheguei em Novembro, e eu disse que «se eu continuar a ir à procura do espaço de evolução da equipa, eu não ganho o campeonato».

Não podes desperdiçar energia neste sentido.
Não posso desperdiçar energia neste sentido.

Tens que abdicar de certas coisas…
Exactamente. Eu tenho que abdicar de alguma coisa. Eu cheguei a um momento em que disse «o espaço de evolução acabou e eu tenho que me agarrar à defensiva da equipa, a 3 ou 4 princípios de jogo que eram fundamentais». Por exemplo, ainda ontem li qualquer coisa na Gazzetta dello Sport, o jornal do Milan, em que faziam uma análise ao trabalho dos campeões e uma análise ao meu trabalho, dizendo que eu não trouxe nada de especial. Não perceberam que o que eu trouxe de especial foi a maneira como o grupo foi gerido. Acho um grande erro de um treinador não ser capazes de abdicar de certos objectivos. Há treinadores que dizem «este é o meu modo de jogar preferido, este é o meu sistema táctico preferido, e vou com este sistema e com esta filosofia até à morte». Eu acho que é completamente errado. Eu acho que é legítimo dizer «esta é a minha filosofia de jogo preferida, este é o meu modelo de jogo preferido, este é o meu sistema táctico». Isso é legítimo dizer. Agora dizer «eu vou com isto até à morte»… aí é que tu morres mesmo.

É burrice.
Morres mesmo. Naquela altura eu pensei: este campeonato, eu tenho que ganhar este campeonato sem ter espaço de evolução.

Nunca tiveste a vontade de dizer: «Eu vou precisar de mais um ano?»
Eu não gosto de dizer porque gosto de meter um tipo sob pressão.

José Mourinho

© Kenton Thatcher/ Espiral do Tempo

É uma conversa que tens contigo próprio, não é?
Eu tenho um amigo que é o Rui Faria e depois de uma derrota qualquer, que tivemos 3 no Campeonato… eu queria reunir com eles e queria esmiuçar o jogo, e queria saber porque é que perdemos e o que é que correu mal e no meio da reunião ele diz assim «Foda-se, nós estamos mesmo mal habituados, pá! Tu não sabes mesmo perder, pá». Ele, numa boa, dizia isso mesmo: nós não sabemos.

Há ou não há uma conversa contigo próprio?
Sim, eu preciso desse espaço.

Não te estás a enterrar?
Não, eu preciso daquilo. Preciso.

Para tu ficares aflito.
Preciso. Preciso de motivação.

Imaginas, durante o jogo, o que pode correr mal?
Não, eu jogo antes do jogo numa perspectiva de tentar visualizar…

Isso não te faz sofrer?
Não, não. Não me faz sofrer.

Ou é trabalho?
É trabalho. Eu, por exemplo, deitado num sofá a fingir de conta que estou a dormir mas não estou, estou a pensar, estou a visualizar; faz parte.

E não sofres?
Há pessoas que pensam que no banco se sofre muito mas eu não tenho tempo para sofrer. É aquilo que eu costumo dizer. Há cabelos brancos…

Mas depois, quando vês que há coisas no campo que não correspondem, não há coisas que te frustram?
Frustam.

E culpas-te a ti próprio? Achas que foi mal pensado ou…
Não, não. Eu não me culpo a mim próprio. Fundamentalmente, culpo-nos a nós, culpo a equipa. Depois, apesar de não o fazer publicamente, faço porque as coisas estão estruturadas de um tal… Nós, por exemplo, com o Manchester…

A equipa é quem? Não são os jogadores…
São os jogadores.

Mas jogadores não 1, 2 ou 3; é a equipa.
Jogadores na globalidade, mas há situações muito específicas em que é muito  claro ‘identificar’ o culpado. Há diversas situações…

Mas esse facto é reincidente ou varia?
Há situações onde tu dizes «o jogo correu mal porque a equipa não esteve bem». E quando se trata de a equipa não esteve bem, a mim, como um treinador, eu prefiro que seja assim. Prefiro que seja difícil identificar. Prefiro, mas há diversas situações, há diversos momentos em que as situações estavam de tal maneira bem estruturadas, bem organizadas, bem mecanizadas, onde a equipa funcionou bem, mas há a individualidade que falhou e a individualidade é de fácil identificação. A mim dói-me mais.

De uma forma involuntária.
Obviamente que sim. Por incapacidade, por… é evidente…

Os outros não podem saber quem é que tu culpas?
Sabem, sabem.

Como é que é o processo contigo mesmo?
A única coisa que eu faço comigo mesmo é exactamente aquilo que te disse que fiz com o meu staff técnico e que às vezes faço sozinho que é dar resposta a perguntas difíceis de responder. Que às vezes é difícil responder…

E tu fazes muito bem…
Mas fazer perguntas…

O que eu gosto das tuas coisas é que o que tu dizes facilmente se aplica, são bons princípios para conseguir uma coisa, seja o que for, é útil.
A pergunta de difícil resposta às vezes… Foi dessas coisas que o meu colaborador disse, pá: «Estás mesmo mal habituadinho, só perdeste uma merda de um jogo» e eu disse «pronto, eu perdi a merda de um jogo…»

Mas tens noção de que nunca tens medo do abismo e estás preparado para isso?
Estou. Quando o mal me acontecer, acontece e eu vou estar preparado para ele e para dar respostas.

Achas que aprendeste alguma coisa, a esse respeito, com os ingleses?
Não sei muito bem. Por exemplo, falando do Ferguson, que além de treinador é amigo, dá-me prazer falar dele e de falar com ele, aqueles dois anos em que foram os dois únicos anos em que ele não ganhou nada, ele de certeza que não gozou aqueles dois anos.

Deve ter sido muito mau.
Agora, teve dois anos a comer derrotas e enquanto comeu a derrota, em vez de chorar andou a pensar como é que poderia comer a vitória outra vez.

E agora é o melhor treinador da história do futebol britânico…
Não é o melhor jogador da história do futebol britânico mas…

Mas é melhor do que o Wenger e do que o espanhol?
No futebol inglês ganhou mais do que todos.

Mas é melhor ou é também um estilo?
Para mim ele tem um estilo britânico de liderança e a maneira como ele lidera o seu clube parece-me ser o típico manager britânico. Mas depois acho que tem características de personalidade que são únicas.

Por ser escocês?
Ele é escocês, eu sei. Se calhar o escocês é um britânico com um bocadinho mais…

Achas que o britânico existe ou há ingleses, escoceses, irlandeses…
Eu acho que há escoceses, ingleses e irlandeses, mais do que o britânico. Conheço irlandeses, trabalhei com irlandeses, conheço escoceses, estudei na Escócia.

Quais são os mais fáceis de trabalhar como treinador?
Eu acho que nisto existe uma coisa comum. Eu costumo dizer que o sítio mais fácil para ser treinador é a Inglaterra. Porquê? Porque a figura do treinador é aceite pelo respeito institucional. Um jogador, seja ele o John Terry ou o Frank Lampard olha para o treinador como o ‘boss’. Não está sempre a dizer ao treinador «eu não estou de acordo»; «eu não gosto de como tu trabalhas», «tu não és…»; ninguém diz coisa nenhuma. A aceitação é quase uma obediência.

Mas os outros estrangeiros não.
Não, é muito mais difícil.

E como é que tu lidas com esta questão multicultural? Continentes diferentes, culturas diferentes nas equipas. Como é que tu lidas com isto na mesma equipa?
É das coisas que eu digo sempre quando chego a um clube, quando treinadores falam comigo, quando aprendizes de treinador falam comigo, e me perguntam sempre como é que é possível lidar com um gajo que ganha 5 milhões de euros, como é que tu podes disciplinar um gajo que é multimilionário; mas eu digo sempre, «só há uma maneira que é seres honesto». Não há outra maneira. Depois eles aceitam a tua honestidade, não aceitam… Em Itália eles utilizam uma palavra que é o permaloso. Um permaloso é um pessoa demasiado susceptível, muito permeável, fácil de ofender. Por exemplo, quando eu te digo «Miguel, tu estás muito gordo» e tu me dizes que ficas todo fodido. Não estou a conseguir explicar.

Estás sim.
Um jogador de futebol na sua globalidade é parmaloso. Um jogador de futebol não gosta, na sua essência, seja de que cultura for, que tu lhe digas «tu és rasca, tu não prestas», não gosta que tu lhe digas «ontem à noite houve um gajo que te viu às 4 da manhã na rua, é uma granda merda», não gosta que tu lhe digas «tu estás velho». São permalosos. É uma palavra muito gira que eu não sei como é que se diz em português, que é permaloso. Um jogador de futebol é permaloso. A única maneira para mim de combater a permalosidade é ser sempre honesto.

Quais são os mais difíceis de todos?
Eu acho que o brasileiro é o mais difícil. Para mim, o brasileiro é difícil porque para mim o brasileiro jogador de futebol tradicional é o jogador que vive com a ‘indisciplina’ com que vive a sua própria vida.

Como é que fazem?
Vive a sua profissão com o talento que ‘Deus lhe deu’, e que é enorme, e que vive com a indisciplina com que vive a sua própria vida. Por exemplo, há um jogador brasileiro a quem tu dizes «tens que estar aqui às 10 horas, temos reunião às 10». E se tu chegares às 10:05, notas na reunião que na sua globalidade está-se a ‘cagar’ que tu o deixes entrar na reunião ou não. Se tu não o deixares entrar na reunião ele pega no carro e vai todo contente dormir mais um bocado. Ou se acordar às 10:02 e souber que tu não o deixas entrar, se calhar continua a dormir mais um bocado, «Ok, ele vai-se chatear comigo mas eu durmo mais 20 minutinhos».

E os ingleses?
O inglês chega às 5 para as 10; o italiano ou chega às 10 ou se chegar às 10 e 1 minuto chega a correr e chateado porque chegou às 10 e 1 minuto; o português chega às 10 ou 1 minuto antes das 10…

Ai o português é o que chega mais perto da hora marcada?
É. 1 minuto antes das 10…

E os franceses?
Franceses é difícil. Para mim, o francês chega às 10, mas chega a pensar que não há razão nenhuma para chegar às 10.

Que engraçado, está muito bem visto.
Chega às 10, mas chega a pensar assim: «porque é que este treinador me obriga a chegar às 10 porque é que não poderia ser às 10 e 5».

É exactamente assim.
O francês tem sempre razão, sempre razão. Mas sempre.

Os russos…
Os russos se tu dizes para chegarem à 10, chegam à 10. É impossível chegar às 9 e 59 ou às 10 e 1 segundo. Eu penso que sim. Eu só tive um jogador, não, tive 2. Um no Chelsea e um no Porto, e o jogador russo acho que precisa que tu lhe digas tudo aquilo que… Acho que precisa de ser dirigido.

Se calhar é um bocadinho burro.
Não estou a dizer que é um bocadinho burro, estou a dizer que se calhar cresceu a ser dirigido, a ser teleguiado. Precisa de ser teleguiado.

Numa estrutura autoritária.
Se tu lhe dás espaço de mais, para pensar, sente-se um bocadinho desorientado. Acho que precisam de rigor. Não tive muitos, mas os que tive eram homens de equipa, homens de equipa e não individuais. Não são homens para resolverem sozinhos os problemas da equipa mas para serem pessoas importantes num contexto de equipa.

José Mourinho

© Kenton Thatcher/ Espiral do Tempo

Há tantas culturas diferentes para apreender.
Há uma data de anos houve um grande treinador — não me lembro quem foi — que disse que o futebol português, antigamente, era futebol sem essa globalidade. No futebol português, existiam jogadores portugueses, portugueses-africanos e brasileiros. Não havia mais nada; e ele  dizia «um jogador brasileiro numa equipa é bom, dois jogadores brasileiros numa equipa é fantástico porque é acumulação de talento; 3 jogadores brasileiros numa equipa é um problema. 4 jogadores brasileiros numa equipa é um desastre». Portanto, já nessa altura ele pensava «precisamos de talento, mas se for talento a mais começa a entrar mais a indisciplina e a falta de rigor e a falta de organização, é um desastre». Hoje com esta globalização, eu continuo a pensar que é bom a continuação…

Uma situação hipotética: vamos supor que para salvar a humanidade, a tua família, a minha, toda a gente, tu tinhas que ir para o Brasil durante um ano treinar a Selecção brasileira; tinhas que ir e tinhas que obter bons resultados e não podias mandar vir mais nenhum jogador inglês, português… Como é que fazias? Contando com o que me disseste e com o que tu sabes sobre o futebol brasileiro.
Eu acho que hoje o futebol brasileiro ao mais alto nível está europeizado porque estão na Europa 300 jogadores brasileiros a jogar dos quais os melhores 30 jogam nas melhores equipas europeias. 2 estão comigo, 2 estão no Milan, 2 estão no Roma, 2 estão no Manchester, eles estão europeizados. Eu acho que o Brasil hoje tem condições.

Mas se tivesses que fazer uma equipa com os brasileiros que não estivessem na Europa.
Não havia problema porque é lá que está o talento.

Mas seria difícil?
Não sei. Não sei se seria difícil. Acho que teria que se encontrar uma plataforma de equilíbrio entre o talento indisciplinado e o hábito que era organizar e disciplinar. Por outro lado, é muito difícil um treinador estrangeiro no Brasil; muito difícil ele treinar uma selecção brasileira.

Agora, mas daqui a uns anos…
Nunca se sabe, também se dizia isso à selecção inglesa e tem treinadores estrangeiros.

Para mais, dizes que gostas das pessoas difíceis.
E gosto.

Mas o talento e a indisciplina…
Havia outro que eu não sei quem é que dizia «eu não quero os jogadores para casarem com a minha filha». Eu não quero um jogador que seja um homem perfeito, que seja um profissional perfeito, que seja um carácter fantástico, isso é o que eu quero para a minha filha. Eu quero é um jogador para meter a bola lá dentro.

Mas achas que a indisciplina vem sempre com o talento? Achas que são talentos indomesticáveis?
Acho que não. Penso que não. Eu vejo, por exemplo, um Kaká, em que é quase o exemplo do grande talento do miúdo fantástico, de um miúdo socialmente…

Não tem indisciplina…
Não existe indisciplina. Pode ser uma excepção. Eu acho que o grande talento é que o faz um bocadinho acima. Um grande talento em campo tem que ter espaço para a capacidade para aquilo que ele tem.

Mas como é talentoso é um bocadinho desgovernado.
Não, desgovernado não. Pode ser um bocadinho desgovernado na sua essência do jogo. Por exemplo, o melhor jogador, com mais talento que é o Ibrahimovic, eu posso-lhe atribuir tarefas, obviamente tarefas de equipa que tem de cumprir, seja ele o Ibrahimovic, seja ele um jogador normal ou um jogador como os outros, mas depois eu não posso castrar aquilo que ele tem que faz a diferença.
Porque quando nós estamos nisto e nisto e nisto e se eu meter o Ibrahimovic neste contexto de quase automatismo, eu estou a fazer dele um jogador como os outros. Se eu tenho em mãos um jogador com um talento especial que é no fundo aquilo que era o meu Deco no Porto. No Porto, o Deco tinha tarefas defensivas a cumprir, tinha tarefas de equipa a cumprir, a equipa precisava dele para os seus equilíbrios enquanto equipa, mas havia coisas que ele fazia em campo completamente descontextualizadas e que era fruto da sua capacidade de… O Manchester, o Barcelona, mesmo as equipas mais pequenas que não têm estes super-jogadores, todas as equipas tem o seu super jogador. Todas as equipas têm um jogador que é especial.

E clubes especiais? Há?
Há. O Inter. Ou dou-te outro exemplo, o Chelsea… como hei-de explicar melhor? Ou por ironia do destino ou porque tinha que ser assim, não sei porquê, mas eu estive sempre num clube especial por qualquer razão. Ou seja, o Porto é, sem dúvida, um clube especial. O Porto é um clube onde, se tu crias uma empatia com um povo — porque aquilo é um povo — aquele povo está atrás de ti; está contigo e cria-se quase um movimento de bola de neve… Do primeiro dia em que eu entrei até ao último dia em que saí, senti sempre que tinha atrás de mim. No Chelsea era a mesma coisa e aqui a mesma coisa. Isso para mim é fundamental.

E saudades de Portugal?
Não tenho saudades de Portugal.

Da comida e do mar…
Não tenho.

De Setúbal, não tens saudades do mar? Não tens saudades disso?
Não sou uma pessoa saudosista.

Mas sentes uma maior proximidade cultural aqui em Itália à tua maneira de ser do que em Inglaterra? Eu tenho a impressão de que te sentes mais em casa em Inglaterra.
Sim, sinto-me mais no meu habitat natural.

Mais do que em Portugal? Mas porquê? Porque os ingleses são justos?
São justos, é verdade. No futebol a Inglaterra é o país das legends; a legend existe e a legend é imortal.

São leais.
São leais. Tu dizias há bocado que … fui jogar ao Porto como treinador do Chelsea. E fui metade assobiado e metade aplaudido. Aplaudido por quem percebeu porque é que eu saí; e assobiado por quem não perdoa um gajo que quis ir à procura de um mundo novo, de uma vida nova, de desafios novos; fui visto como um traidor. Isso é Portugal. A Inglaterra não é assim. Inglaterra é o país das legends. Em Inglaterra tive um jogador que jogou no Chelsea, e que marcou o golo no campo do Chelsea com a camisola do adversário. E o estádio aplaudiu — porque aquele jogador era uma legend do Chelsea. É uma coisa completamente diferente.  Eu ainda não fui ao campo do Chelsea ver um jogo porque acho que, no dia em que for ao campo do Chelsea ver um jogo, acho que o treinador do Chelsea que estiver lá no banco vai querer ir embora.

Vai ficar deprimido.
Não vou. Eu só vou campo do Chelsea quando tiver que ir jogar contra o Chelsea.

Mas se tu não vais ao Chelsea para não chatear, para não destabilizar, então é porque ainda gostas do público.
Gosto.

Não te sentes um bocadinho culpado da sombra que deixas? Das pessoas que vão para os teus lugares?
Eu por um lado reconheço que a esse nível não é fácil, mas, por outro lado, não sou egoísta na minha perspectiva de trabalho. Sou uma pessoa que vai para um clube e que não pensa «eu estou aqui, quero ganhar, mas quando eu sair que se lixe esta merda». Deixo uma perspectiva de continuidade.

Mas foi assim com o Porto?
Não foi no Porto por uma razão muito simples: porque o Porto, quando eu saí, decidiu, e quanto a mim, mal, o Porto decidiu «nós queremos o anti-Mourinho». Foram buscar um italiano. Se em vez de terem ido buscar um italiano, têm ido buscar um treinador da mesma linha de pensamento ou parecida…

É bom não ter ressentimentos. Tu tens a tua visão do que é o clube. Tu e as pessoas que tu gostas — e isso é sólido.
Exactamente.

E é isso que interessa.
O resto não interessa.

José Mourinho

© Kenton Thatcher/ Espiral do Tempo

Gostava que me falasses dos blocos de tempo que há dentro dos minutos que dura um jogo de futebol. Nos teus jogos nota-se que, durante um período concentrado de 4/5 minutos, estás a viver o tempo independentemente do que se passa no campo.
Até a minha própria intervenção no jogo é feita de blocos de tempo.

Como é que tu divides um jogo em blocos de tempo?
Os primeiros 5 minutos de jogo para mim são 5 minutos de jogo de intervenção imediata sobre o jogo.

São 5 minutos.
Eu tenho uma intervenção imediata sobre o jogo. Os meus jogadores devem receber de mim, naqueles primeiros 5 minutos, um feedback imediato da fotografia que eu estou a ver e que eles não estão. Os primeiros 5 minutos são fundamentalmente isso porque nós podemos estar preparados para uma determinada estrutura de jogo e quando o jogo inicia é necessário uma intervenção imediata. Existem jogadores que pelo seu posicionamento em campo têm de ser avisados.

O primeiro bloco é um bocado aflitivo.
Gosto. Até porque é o período de tempo onde eu entro imediatamente no jogo. Eu tenho um momento de grande introspecção antes do jogo começar, em que gosto de estar sozinho, gosto de pensar, gosto de estar fora do jogo e nos primeiros 5 minutos eu entro imediatamente no jogo.

E quando há alguma coisa nova ou há uma surpresa?
Há uma injecção de adrenalina que entra ali de súbito, estou no jogo…

Pode haver um momento de surpresa.
Pode haver um momento de surpresa, pode e depois há uma coisa que entra ali no bloco de tempo que eu gosto que é o momento só de observação e de análise.

Quanto mais ou menos?
25 minutos. 20, 25 minutos.

E aí estás mesmo atento ao jogo.
E depois os últimos 10, 15 minutos da primeira parte é o período dos 90 minutos onde eu vejo menos o jogo. É o momento em que eu preparo a minha intervenção ao intervalo. Se eu quisesse sair do banco e, em vez de estarno banco, ficar fechado no balneário já, eu podia estar. Já li; já observei.

Então esse período antes do intervalo não é tão crítico como as pessoas pensam.
Não, não. É crítico para os jogadores; não é crítico para mim. É crítico para eles porque é um período de tempo importante.

Faltam 10 minutos e ele deve estar preocupadíssimo e não, estás pensar…
Estou a estruturar a minha intervenção. As minhas intervenções são sempre intervenções muito estruturadas. A intervenção de um trabalho é a mais difícil de estruturar e é consequência de uma coisa que acabou agora e o intervalo começa agora.

E tu dás-te 15 minutos para isso.
Dou-me. É suficiente. Parece pouco, mas é muito.

Mas se acontece alguma coisa antes do jogo, 10 minutos antes?
Adapto. Obviamente, adapto.

Mas é raro acontecer.
Pode acontecer no jogo. É diferente chegar ao intervalo a ganhar 1-0 ou a ganhar 2-0 ou empatado 1-1 se sofremos um golo. Mas a estrutura da análise do jogo, porque a análise da estrutura do jogo, daqueles 30 minutos, 25 mais os outros 5, não depende do resultado…

É um erro que as pessoas fazem.
Exactamente. Até os próprios jornalistas. Costumo dizer às vezes aos próprios jornalistas, a brincar, que estão já a escrever a peça e escrevem a peça durante o jogo, mas que se houver um golo nos últimos 5 minutos, os gajos têm que…

Não, não. Deixam em aberto…
Para se despacharem e irem mais cedo e irem embora. O treinador também pode. Depois, a segunda parte, os primeiros 10, 15 minutos voltam a ser minutos onde tu analisas o feedback dos jogadores em relação àquilo que tu disseste.

É a análise e observação, aquilo que eles absorveram do que disseste e de como é que eles…
Exactamente. E depois entro imediatamente porque é muito difícil fazer uma substituição naquela parte, nos primeiros 10, 15 minutos da segunda parte.

É uma fase interventiva tua.
É uma fase interventiva minha.

Quanto tempo?
5 minutos. São 5 minutos de intervenção passiva.

É muito comum os jornalista dizer «ele está muito agitado», mas estás a fazer qualquer coisa que não agitar-te.
É um momento de comunicação. E depois entro naquele momento que é o momento em que eu penso que tenho 3 substituições para fazer e como é que eu vou ajudar…

Isso é o mais difícil, não é?
É um momento muito giro porque é o momento em que tu sente também que podes ser fundamental. Que é dizer assim «eu tenho 3 substituições para fazer, posso ajudar ou não posso ajudar». Sentes-te interventivo e às vezes tu até sentes que os jogadores estão à espera que tu ajudes. E estão à espera que tu ajudes. Que tu faças qualquer coisa. Também é muito giro. Se a gente for dividir o jogo de 90 minutos nos diferentes modos de o treinador intervir…

Há algum bloco no fim?
Às vezes no fim, quando o jogo já está ganho ou já está perdido, já se está é a pensar é no outro. Às vezes, estou nos últimos 5 minutos de jogo e estou a fazer equipa para o jogo seguinte.

Sobre Paolo Maldini 3828 artigos
Pedro Bouças - Licenciado em Educação Física e Desporto, Criador do "Lateral Esquerdo", tendo sido como Treinador Principal, Campeão Nacional Português (2x), vencedor da Taça de Portugal (2x), e da Supertaça de Futebol Feminino, bem como participado em 2 edições da Liga dos Campeões em três anos de futebol feminino. Treinador vencedor do Galardão de Mérito José Maria Pedroto - Treinador do ano para a ANTF (Associação Nacional de Treinadores de Futebol), e nomeado para as Quinas de Ouro (Prémio da Federação Portuguesa de Futebol), como melhor Treinador português no Futebol Feminino. Experiência como Professor de Futebol no Estádio Universitário de Lisboa, palestrante em diversas Universidades de Desporto, Cursos de Treinador e entidades creditadas pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ). Autor do livro "Construir uma Equipa Campeã", e Co-autor do livro "O Efeito Lage", ambos da Editora PrimeBooks Analista de futebol no Canal 11 e no Jornal Record.

3 Comentários

  1. “- Tu conseguiste, todos dizem, que só tu consegues aquela lealdade a longo prazo, mesmo jogadores do Chelsea, que eu acompanho, em que passados muitos meses, continuam…
    Estamos a falar exactamente no dia depois de eu ter sido Campeão de Itália, que é a minha equipa, que ao nível do jogo, da qualidade do jogo, é de todas as minhas equipas a que eu gosto muito. É a equipa que eu gosto mais do ponto de vista humano, é a equipa que tem acumulada melhor gente, que tem acumulada gente que joga nos seus limites, que não tem mais nada, mas mais nada para dar, para desenvolver, mas é uma equipa em fim de ciclo. As minhas equipas antes eram sempre equipas em início de ciclo, em início de um ciclo.

    – É mais difícil este período?
    É muito mais difícil.

    – É como os modelos de automóvel quando já têm 15 ou 20 anos?
    É muito mais difícil. Uma média de idades superior a 32 anos. São 8 jogadores acima dos 34 anos, são jogadores já no limite do seu potencial.

    – E que já ganharam.
    Eu não vou por aí, porque humanamente é tão bom que eles querem continuar mais. Agora o espaço de evolução do jogo da equipa é que não. Eu cheguei em Novembro, e eu disse que «se eu continuar a ir à procura do espaço de evolução da equipa, eu não ganho o campeonato».

    – Não podes desperdiçar energia neste sentido.
    Não posso desperdiçar energia neste sentido.

    – Tens que abdicar de certas coisas…
    Exactamente. Eu tenho que abdicar de alguma coisa. Eu cheguei a um momento em que disse «o espaço de evolução acabou e eu tenho que me agarrar à defensiva da equipa, a 3 ou 4 princípios de jogo que eram fundamentais». Por exemplo, ainda ontem li qualquer coisa na Gazzetta dello Sport, o jornal do Milan, em que faziam uma análise ao trabalho dos campeões e uma análise ao meu trabalho, dizendo que eu não trouxe nada de especial. Não perceberam que o que eu trouxe de especial foi a maneira como o grupo foi gerido. Acho um grande erro de um treinador não ser capazes de abdicar de certos objectivos. Há treinadores que dizem «este é o meu modo de jogar preferido, este é o meu sistema táctico preferido, e vou com este sistema e com esta filosofia até à morte». Eu acho que é completamente errado. Eu acho que é legítimo dizer «esta é a minha filosofia de jogo preferida, este é o meu modelo de jogo preferido, este é o meu sistema táctico». Isso é legítimo dizer. Agora dizer «eu vou com isto até à morte»… aí é que tu morres mesmo.

    – É burrice.
    Morres mesmo. Naquela altura eu pensei: este campeonato, eu tenho que ganhar este campeonato sem ter espaço de evolução.”

    Isto podia ter sido dito pelo Rui Vitória no Benfica. E pode ajudar a explicar algumas dificuldades desta época.

    Entrevista maravilhosa.
    Mourinho, fora do contexto do jogo e da competição é uma delicia de ouvir falar de futebol.

    • aquela experiência acumulada…
      será sempre o único que foi capaz de vencer, quer Champions quer Liga, em tempos dominados pela melhor equipa de sempre! Uma inteligência invulgar..

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