Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto

No documentário Trainer!, do realizador Aljoscha Pause e datado de 2013, temos oportunidade de mergulhar no sistema de formação do treinador alemão, enquanto acompanhamos três casos concretos durante a temporada de 2012/13.

O que salta à vista durante este documentário, é o nível de introspeção e reflexão necessárias para se ser treinador. Jurgen Klopp é um dos treinadores mais reconhecidos entre os que participam neste filme, mas são as carreiras de Frank Schmidt (FC Heidenheim) na 3.Bundesliga, André Schubert (FC St. Pauli) e Stephan Schmidt (SC Paderborn) na 2.Bundesliga.

Oriundos de realidades bem diferentes, este trio de treinadores passa por problemas que todos os técnicos reconhecerão. Todos foram jogadores profissionais, ainda que Schubert tenha nascido num meio mais rico e Stephan Schmidt seja oriundo de bairros populares de Berlim. Já Frank Schmidt, entre a carreira de jogador e a de treinador, teve funções como gestor bancário.

Que tipos de problemas vivem? A gestão de expetativas, por vezes irrealistas, de dirigentes e adeptos, as dificuldades de escolhas de jogadores e do trabalho que, todos reconhecem, deve ser diferenciado com cada um dos atletas, e os resultados. Tanto assim é que, ao fim de sete jogos, Schubert é despedido do St. Pauli. Stephan Schmidt, apesar de manter a sua equipa a meio da tabela, é também despedido a duas jornadas do final. Frank Schmidt, apesar de dificuldades, consegue levar o sonho do play off até à derradeira jornada, onde a precisar de vencer, acaba a falhar o objetivo (haveria de consegui-lo na época seguinte).

Fazê-los pensar

Especialmente interessantes são as palavras de Frank Wormuth, diretor da escola de formação de treinadores da Federação alemã. Acompanhando, ao longo da temporada, uma série de candidatos a treinador, ficamos a perceber melhor sobre o formato desta formação, com estágio e ações ao longo do ano, bem como com a presença do diretor da formação nos treinos dos candidatos.

Frank Wormuth reflete sobre o papel do treinador, da importância da sua experiência, mas, sobretudo, sobre a necessidade de auto-análise que o papel de treinador obriga. Wormuth tem a vantagem de ter tido aos seus cuidados quase todos os intervenientes no documentário. Reconhece-lhes os percursos, entende-lhes as dúvidas e desafios e tem ideias sobre a sua missão neste processo.

Mais importante do que levá-los a adotarem este ou aquele comportamento, o também treinador nos escalões de formação germânicos espera que a sua presença e as suas intervenções façam os treinadores pensarem. Não há um convite a uma adoção de comportamentos ou a uma faceta ideal de treinador. Pelo contrário, o principal objetivo é que cada um encontre, na sua personalidade, a melhor forma de definir objetivos e atingi-los.

Problemas, problemas, problemas

Será, provavelmente, o ponto de união entre todas as reflexões. As dificuldades para chegar a treinador e, sobretudo, para se manter como tal. O nível de dedicação é elevadíssimo, sendo que todos os participantes estão de acordo com o facto de não conseguirem deixar os problemas do treino e do jogo fora do âmbito familiar (sendo que, muitas vezes, estão expostos a viver afastados de companheiras e descendência). A pressão sofrida nesta profissão é outro dos elementos a ter em conta, dado que estão em constante exposição (dentro e fora da sua missão, com um treinadores a lembrar que mesmo a atividade mais banal, como ir às compras ou a um café, os expõem a comentários e a avaliação de comportamento) e são sempre avaliados, semana após semana, por aquilo que a equipa faz.

O comportamento dos treinadores é um dado fundamental deste processo, e durante o documentário, não só ouvimos os treinadores a falar sobre os seus problemas, mas também temos acesso a opiniões dos outros treinadores, de dirigentes e jogadores. Por aí entendemos muito bem as dinâmicas que se podem gerar num grupo de trabalho e das necessidades de entendimento que um treinador tem que ter de tudo aquilo que lhe rodeia. No caso de André Schubert, reconhecido como um treinador emotivo e, por vezes, problemático, os meses de pausa no trabalho são usados para um profundo processo de auto-avaliação.

A experiência acumulada é outro dos dados interessantes de entender. Enquanto todos os três principais intervenientes serem técnicos em início de carreira, vamos tendo oportunidade de ouvir depoimentos com bastantes anos de trabalho. Armin Veh tem uma intervenção muito interessante sobre o principal ganho dos anos de experiência, a capacidade para entender os meios para os quais são convidados. Segundo este técnico, é fundamental que um treinador entenda se terá condições para fazer o seu trabalho no clube para o qual é convidado. E deve recusá-lo, se entender não as ter. Ora, como ele próprio reconhece, isso é mais passível de acontecer quando tens anos de trabalho, do que quando estás à procura de oportunidades para te lançares.

Finalmente, a participação dos dirigentes dá-nos mais oportunidades de entender a forma como se desenha um quadro bastante complexo de trabalho. Entre os diretores desportivos, diferem comportamentos entre aquele que é mais interventivo (o que, em última análise, acaba por colocar em causa o trabalho da equipa técnica) e o mais expectante, que funciona como alguém que presta apoio e serve de ligação com a direção, mas sem demasiada exposição perante o grupo. Entre os presidentes, também percebemos que, se um caso, perante uma crise de resultados, estabelece como prioritária a manutenção do treinador, noutro caso vemos as implicações negativas de uma entrevista de um presidente que coloca questões que não tinham sido discutidas previamente com o seu pessoal.

A paixão, acima de tudo

Os vários intervenientes assumem algum acordo na ideia de que existe um talento para se ser treinador, que não tem, propriamente, uma ligação às diferentes experiências acumuladas previamente. No entanto, a esse talento, que muitas vezes aparece no documentário enquanto paixão, necessita de um aparato científico muito elevado, bem como tende a alcançar melhores performances com a experiência acumulada no posto.

Não parece haver desvantagens apresentadas pelas experiências prévias, seja como jogador, seja como qualquer outro percurso profissional. Fundamental é que, às ideias do treinador, se juntem oportunidades e estruturas que, confiando-lhes a liderança do processo de treino e de jogo, compreendam essas decisões no âmbito mais largo da gestão do clube. Não deixa de ser curioso entender, por exemplo, que no FC Heidenheim, o treinador está presente em reuniões de marketing e o seu trabalho seja, também, parte da avaliação das decisões de investimento feitas pela direção.

Todos os percursos são diferentes. Todos os contextos lançam desafios diferenciados que podem ter resposta em experiências prévias (pessoais ou estudadas de exemplos de caso). Todas as soluções podem ser viáveis. Não há um caminho certo e um caminho errado, se bem que, em cada carreira, as tendências devam ser assinaladas, para se evitar a repetição de ações cujos resultados não foram os desejados. E, por falar em resultados, porque no contexto profissional acabam sempre por ser estes a derradeira fronteira entre o manter ou perder o emprego, é fundamental que 1) se saiba exatamente qual o plano e qual a forma de o executar; 2) entender o que foi feito de diferente entre uma situação de vitória e uma situação de derrota; 3) apurar o foco quando a crise ameaça instalar-se; 4) estar seguro de se ter o que é preciso para sair dessa situação. E, sempre, estar disponível para se trocar umas ideias sobre o assunto.

 

O documentário Trainer! está disponível no Netflix. 

Este artigo foi originalmente publicado em luiscristovao.com

Sobre Luís Cristóvão 103 artigos
Analista de Futebol. Autor do Podcast Linha Lateral. Comentador no Eurosport Portugal.

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