O cérebro precisa de amigos; o jogo e os números

Olhemos, por momentos, para o mundo que nos rodeia. Como definiu o filósofo cognitivo Andy Clark, “o mundo que nos rodeia tem padrões, regularidades e formas de comportamento de todos os tipos, e todas as criaturas que fazem matemática fazem-no a partir das regularidades que limitam o comportamento das coisas que encontram”. Esta frase encerra uma descrição aceitável daquilo que cada jogador ou treinador enfrenta, diariamente, num jogo ou num treino. Estabelecer padrões (no adversário e na nossa própria equipa) e entender a forma como esses limitam o comportamento de cada um, de maneira a encontrar uma resposta para chegar ao objetivo, ao golo.

Desde o início da história do jogo que a procura de uma vantagem foi motor de evoluções à forma como se joga, pensando e analisando a partir da nossa experiência, expondo-a às suas limitações, para que, de alguma forma, estas fossem ultrapassadas. O caráter complexo do jogo, por sua vez, permitiu sempre o encontrar de outros níveis de limitação, pelo que, como muitos insistem em dizer, se já nada resta a inventar no futebol, muito há ainda por entender, até chegarmos ao dia em que uma infalibilidade coloque em causa toda e qualquer paixão por uma bola que salta, contra a vontade dos jogadores, para entrar na baliza.

Estamos longe, muito longe, de o conseguir, simplesmente, porque esse não é o objetivo. Por muito que queira ganhar, nenhum jogador, treinador ou analista procura formas de acabar com o jogo. Pelo contrário, cada um pretende, dentro dessas limitações crescentes que vão surgindo sempre que parecemos encontrar uma resposta que nos aproxima da perfeição, que exista um outro que, pelo mesmo trabalho de análise e pensamento, nos ofereça novos desafios. Por isso, os melhores, como Pep Guardiola, procuram uma outra equipa, um outro país, onde voltar a ser o melhor, noutras condições e contexto.

A evolução da análise estatística do jogo e o grau de complexificação da estatística avançada, encerra-se nessa busca da pequena vantagem sobre o adversário, do ver algo ou alguma coisa antes do rival. Citando Max Tegmark, do MIT, “antigamente era muito fácil enumerar um pequeno número de coisas na natureza que conseguíamos descrever com base na matemática. Nos nossos dias, é muito fácil listar o pequeno número de coisas que não conseguimos descrever desta forma”. A evolução da matemática enquanto linguagem é uma chave que abre novos mundos na maneira que tínhamos para explicar aquilo que fazemos. Mas, como terão como experiência aqueles que já lidaram de perto com algum treinador de nível muito alto, a compreensão dessa linguagem chega a ser demasiado parecida com a intuição.

Nos estudos realizados por Stanislas Dehaene e Marie Amalric a partir da observação de imagens digitais do cérebro de matemáticos e não matemáticos, chegou-se à conclusão que os primeiros “começam a pensar de uma forma que não implica linguagem normal. […] É quase como se transferissem a intuição para outro mundo, o mundo das matemáticas, como se dessem um passo atrás e deixassem essa intuição responder-lhes”. Treinadores com muitos anos de experiência e exigência, apresentam modos de trabalho, ideias de jogo, modelos e soluções que se aproximam bastante às apresentadas pela estatística avançada. O jogo de posição é um jogo essencialmente matemático. As opções de posse de bola e de ocupação de espaços experimentadas, de forma mais radical, por Pep Guardiola durante o seu período no Bayern Munique, colocaram em campo uma linguagem matemática que se apresentava como solução para o jogo de futebol. Caminhamos, passo a passo, para um entendimento superior daquilo que é o jogo.

O número enquanto forma de ver

Arthur C. Clarke, famoso autor de ficção científica, deixou-nos três ideias, em forma de leis, que nos ajudam a perceber o impacto da inovação da ciência na vida de cada um. Através delas, e trazendo-as para o campo do futebol e da sua relação com a ciência, não nos custa entender o caminho, ao longo da história, que vai sendo percorrido.

Leis de Clarke

1)Quando um velho sábio estima que qualquer coisa é possível, tem quase sempre razão. Mas quando afirma que qualquer coisa é impossível, provavelmente está errado.

2)A única forma de descobrir os limites das possibilidades é aventurar-se para o além, para o impossível.

3)Toda a tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.

Olhando para aquela que é, hoje, a realidade do futebol, ao nível dos conhecimentos e potencialidade de trabalho ao nível do treino e do jogo, da observação e análise, da fisiologia e da biomecânica, da medicina e da psicologia, não nos custa a aceitar que, não existindo impossíveis, muitos antes de nós decidiram-se a aventuras para lá do conservadorismo de fazer sempre o mesmo, mesmo que, a determinadas alturas, tenham sido confundidos com esses mágicos que prometem impossíveis.

Puxando esta realidade para a observação e análise do jogo, encontramos algum conforto na Lei de Weber-Fechner, que “determina a nossa reação aos estímulos externos. Segundo esta lei, comprovada pelos sentidos, a nossa capacidade de distinguir sensações de dimensões semelhantes diminui à medida que as dimensões aumentam no seu conjunto”. Ou seja, se nos parece fácil distinguir um peso de 1 quilo de um outro com 2 quilos, já nos é muito difícil fazer o mesmo se os pesos detém 21 e 22 quilos. Ou, se nos é fácil distinguir, num jogo, a capacidade de um jogador utilizar o drible perante um outro, numa situação de um contra um, já nos será mais complicado quantificar, com exatidão, o sucesso desse mesmo jogador ao longo de vários jogos, com diferentes adversários e diferentes contextos competitivos. Precisamos que os números nos indiquem formas de ver, de maneira a assegurar que as nossas ideias têm uma base factual.

O cérebro humano tem estas limitações, da mesma maneira que se deixa levar por certezas que, na realidade, acabam por não encontrar base de sustentação. Por isso é que, a partir do momento em que olhamos algo como uma certeza – “o Manuel é um bom jogador” – nos custará tanto entender que esse sucesso, balizado temporalmente, seja colocado em causa pelos dados estatísticos acumulados ao longo de temporadas. Por exemplo, os quatro golos marcados por Seferovic nos primeiros quatro jogos oficiais pelo Benfica fizeram dele um jogador diferente daquilo que os seus dados indicavam nas derradeiras quatro temporadas?

A ideia da estatística no futebol mantém-se ferida por um preconceito mediático. Quando, na realidade das maiores equipas mundiais, se utiliza a análise de uma forma complexa e diária, no treino, na observação dos adversários e dos comportamentos da própria equipa, na busca de reforços a cada mercado, sempre partindo de princípios estatísticos, nos órgãos de informação limita-se o acesso a essa estatística centrando-a em algumas recolhas básicas de dados genéricos. No futebol, o acesso aos números tem um valor comercial que, de certa forma, tem impedido uma alfabetização do adepto no que toca ao entendimento do jogo numa linguagem mais próxima da complexidade que este apresenta.

Demasiadas vezes ouvimos e lemos que, tendo em conta o resultado, a estatística nos diz pouco. Na verdade, o resultado final de um encontro já é um dado estatístico. Mas a questão nem sequer passa por aí. A análise do jogo não pretende, como dissemos acima, torná-lo estéril e previsível, adivinhando resultados. Pelo contrário. A análise do jogo pretende, independentemente do resultado final do mesmo, entender e questionar as ações dos jogadores e da equipa no jogo, estabelecendo padrões e, em consequência, entender como poderemos superá-los. Ou seja, colocar a nossa equipa mais perto de ganhar.

Artigo original e referências em luiscristovao.com

Sobre Luís Cristóvão 103 artigos
Analista de Futebol. Autor do Podcast Linha Lateral. Comentador no Eurosport Portugal.

2 Comentários

  1. Não estou certo de ter compreendido tudo, mas é “matéria proseável”, como diria o Guimarães Rosa, isto é, demasiado interessante e merecedora de aprofundamento.

    Segundo percebi, considera que se podem matematizar padrões, que poderão servir de matriz a desenhos tácticos ou, mais correctamente, o tratamento estatístico oferece posicionamentos preferenciais de certas posições. Existe também uma correlação entre os desenhos tácticos mais sofisticados e as matrizes estatísticas.

    Se assim é, duas questões:

    1ª- Incorrendo no velho aforismo do “ovo e da galinha”, se os treinadores mais sofisticados (nomeadamente Guardiola, explicitamente mencionado) já ensaiam tácticas comprovadas ulteriormente pela estatística, qual a utilidade da estatística? Reforçar convicções? Validar posições ideológicas? Se uma vem antes da outra e esta última nada acrescenta (porque nada traz de novo), dever-se-á partir, inversamente, de um modelo estatístico que enforme o desenho táctico?

    2ª- Nesta sequência, uma vez mais, não dependerá sempre, em última análise, dos desejos tácticos do treinador? O treinador optimiza o seu modelo de pendor mais ofensivo ou mais defensivo porque lhe parece, alternadamente, ter mais condições de sucesso em função de uma série de factores, como o sejam o plantel disponível, as competições em causa, as ambições do clube… e as suas próprias ideias. Concretizando… Simeone olhará uma matriz estatística de uma equipa sua e confirmará as suas suposições. Guardiola fará o mesmo e confirmá-las-á na mesma. Em que pode a estatística ajudar? Como pode ela, espelhando parcialmente a complexidade de um modelo futebolístico, acomodar a aleatoriedade intrínseca do jogo e a variabilidade de condicionalismos que sucessivamente surgem?

    Peço desculpa pelo longo comentário. O texto é extremamente interessante e, se for possível e houver paciência para tanto, gostaria de ler um bocadinho mais do autor a este respeito.

    Abraços.

    • Gonçalo, obrigado pelo comentário.

      Tentando responder, parece-me muito interessante trazer à discussão o aforismo do “ovo e da galinha”. Na verdade, apesar de ser uma questão que parece encerrar séculos de pensamento humano à procura de uma resposta impossível, quer nos inclinemos para considerar que existiu primeiro o ovo ou primeiro a galinha, continua a parecer-nos imprescindível que ovos e galinhas andem juntos. Em alguns casos, é uma galinha a ferramenta que nos proporciona deliciosos ovos, noutros, é o ovo que nos traz deliciosas galinhas. Assim, também, com a estatística. Um dia gostaria de entrevista o Pep Guardiola para entender, no seu caso, quem chegou primeiro, a consciência matemática ou a ideia de jogo que é explicada por esta. Mas vários outros mestres antes dele parecem indicar que uma intuição profundamente apurada (pensemos em, por exemplo, Helenio Herrera), se assemelha bastante à tomada de consciência referida. Ou seja, existem determinados técnicos que nos levariam a comprovar que, o que realmente importa para diferenciar um treinador, é a sua intuição. Nesse mundo, ignoraríamos as diatribes de quem considera que existe uma especificidade futebolística, que os jogadores fazem melhores treinadores, que ter pertencido ao mundo do futebol, ter andado lá dentro, é que importa, em detrimento de um “ter intuição é que o vale”. Talvez esse mundo nos demonstre quem são os técnicos que, de uma ou outra forma preponderante, influenciaram os destinos do jogo (Rinus Michels, Valery Lobanovskiy, Brian Clough, Alex Ferguson, Johan Cruyff, Arrigo Sacchi, José Mourinho, Pep Guardiola, Marcelo Bielsa, Maurizio Sarri eram/são, todos eles, senhores de uma profunda intuição e conhecimento sobre o futebol). Muito provavelmente, todos eles, lhe diriam o mesmo: quando eu sinto que sei tudo, o único caminho que tenho é saber mais. Dessa forma, não verá nenhum grande sábio desdenhar a utilização de uma ferramenta que lhe possa acrescentar uma, por pequena que seja, vantagem sobre os rivais: seja porque conjuga mais informação, mais depressa ou, simplesmente, porque ajuda a questionar este ou aquele aspeto do jogo que lhes havia escapado.

      Uma nota, aqui, para explicar que, como é fácil de entender, nem só de génios vive o mundo. Para lá desses grandes nomes, muitos outros treinadores fazem, com sucesso, longas carreiras a diferentes níveis competitivos. Para todos eles, essa ferramenta de análise se tornará, talvez não tão interessante na sua complexidade, mas bastante útil na forma como os ajudará no seu trabalho diário.

      Continuando, então, para a segunda questão. Para mim não existe a mínima dúvida de que o trabalho de recolha estatística está dependente do modelo de jogo do treinador e, por isso mesmo, defendo como certo aquilo que muitas equipas já fazem, criando os seus próprios modelos de análise estatística, muitas das vezes com sistemas de recolha próprio. Conforme aquilo que cada treinador, em cada equipa, considere mais importante conhecer no jogo, devem os modelos de análise adaptar-se para o procurar. Equipas de diferentes níveis têm diferentes necessidades, e o que a estatística, aí, fará, não é confirmar as ideias de cada treinador, mas posicionar-se como uma ferramenta que aumenta o impacto dessas mesmas ideias. A estatística não existe para explicar o jogo, nem adivinhar resultados. A estatística existe para ajudar a descrever, da melhor forma possível, “a complexidade de um modelo futebolístico”, procurando antecipar os “condicionalismos que sucessivamente surgem”, nessa aleatoriedade que, no mundo do Big Data, parece cada vez mais acessível a uma padronização.

      Diria, então, que se um treinador procura, na linguagem matemática, apenas confirmar as suas ideias, está a limitar um campo de ação que aponta, exatamente, para um aprofundar da complexidade dessas mesmas ideias. O que se pretende é exatamente o contrário. Deixar de acreditar em impossíveis, encontrando uma linguagem que explique, de forma mais concreta, aquilo que existe.

      (As perguntas, por interessantes, levaram a uma longa resposta, também. Irei publicá-la no meu site, como continuidade da discussão lançada no texto inicial.)

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