“Cada ser humano é um universo de estudo”. O “estranho” caso de Mafalda Mariano.

“Para mim, a expressão “todos os jogadores são iguais” é a maior mentira no desporto. Nem todos são iguais. Nem todos têm de ser tratados de forma igual. Com o mesmo respeito sim… (…) Descobrir cada um é o mais fascinante na nossa função…”

Pep Guardiola citado por (Santos L. , 2013)

Fruto, uma vez mais, do pensamento analítico e cartesiano que se enraizou na nossa cultura e raciocínio, o ser humano continua a ser seriado e catalogado como se de uma peça de mobiliário se tratasse. Não nos estamos a referir à procura de padrões comportamentais. Referimo-nos a identificação de características muito genéricas como a idade, o sexo, a morfologia ou mesmo a fisiologia, e a partir daí colocar adultos e crianças em categorias mais ou menos estanques. No futebol de formação é comum depararmo-nos, com opiniões de responsáveis técnicos, de que por exemplo, “miúdos com determinada idade devem jogar futebol de X” ou “as raparigas devem jogar com raparigas e rapazes com rapazes”. Ignora-se porém, a sua complexidade, e que cada ser humano é possuidor de uma individualidade, passe a redundância… singular, com um particular crescimento e traços exclusivos. Como Yuri Verkhoshansky, citado por (Silveira Ramos, 2004) defendeu, “cada ser humano é um universo de estudo”. Também (Barreiros, 2016) sustenta que “o desenvolvimento é um conceito de raiz biológica que procura exprimir o conjunto dos processos de transformação de um organismo ao longo da sua vida. No caso do desenvolvimento humano, este processo inclui inevitavelmente o conjunto das transformações da vida psíquica e os efeitos de interações sociais constantes. O desenvolvimento humano é, por natureza, biológico, psicológico e social, o que significa também que estas dimensões do desenvolvimento interagem, produzindo uma notável complexidade e individualidade“. Assim sendo, cada indivíduo apresenta as suas necessidades particulares.

Mafalda Mariana, aos 12 anos, teima em provar que o pensamento tradicional está profundamente errado. Há quatro anos a jogar em competições federadas com rapazes, inclusive dois desses anos contra uma maioria de adversários de idade superior. Começou, aos 8 anos, a jogar Futebol de 7, portanto, numa complexidade de jogo acima da regulamentarmente definida para a sua idade, o Futebol de 5. Na presente época deu um semelhante “salto” para o Futebol de 9. Durante este período formou equipa com outros miúdos de enorme talento, que sempre lhe reconheceram o dela, tratando-a como igual. Por vontade e decisão própria tem recusado passar para as competições femininas em clubes de maior dimensão, por sentir que o actual contexto onde treina e compete, é o mais adequado e desafiante à sua qualidade. Naturalmente, também pela amizade que construiu com os companheiros, aspecto que um regulamento competitivo que separa por completo, rapazes de raparigas no futebol de formação a determinado momento, ignora em absoluto.

“Como te sentes a jogar numa equipa de rapazes contra rapazes?

Sinto-me bem, pois os meus colegas receberam e tratam-me como igual. A maioria dos meus adversários respeita-me.”

Mafalda Mariano, 2017 em entrevista ao website www.futebolfemininoportugal.com

Ignora-se também que existem aspectos ainda mais decisivos para a evolução da criança do que a própria complexidade do modelo competitivo. Uma criança, numa equipa de Futebol de 7, à qual seja imposto jogo directo e marcação individual, não terá com certeza mais propensão à sua relação com bola, com o centro de jogo e desafio à inteligência táctica, que o jogo curto e apoiado e a Defesa Zonal potenciam, mesmo quando solicitados num contexto competitivo de Futebol de 11. Neste sentido, (Fábio Ferreira, 2013), descreve que “de acordo com Pacheco (2001), a competição em idades mais jovens depende da qualidade da sua prática e da intervenção por parte dos treinadores, dos dirigentes e dos pais que enquadram a criança na actividade desportiva. Por isso, é extremamente importante que se respeite a individualidade biológica, cognitiva e emocional da criança (Fernandes, 2004). Assim sendo, é fundamental que no futebol de formação as competições estejam ao serviço dos jovens futebolistas, estando adequadas às características das crianças e do seu nível de desenvolvimento (Pacheco, 2001) tornando-se uma ferramenta de auxílio para que os objetivos de formação sejam atingidos. Pacheco (2001) refere ainda que o problema induzido pela competição nos escalões mais jovens são as distorções impostas pelos adultos”.

Em entrevista a (Xavier Tamarit, 2013), o professor Vítor Frade questiona: “você já viu ou acha que o gajo que vai tocar piano, primeiro vai andar a correr à volta do piano ou fazer elevações ou flexões?! Não. Os putos vão, se tiverem dois, «olha, joga tu ali e eu ali», se tiverem onze, «seis para aqui e cinco para acolá». É isso que eles fazem, é Futebol com bola!” No entanto, condicionados pelas ideias, preconceitos e receios dos adultos, o autor (Carlos Neto, 2017) deixa a pertinente questão: “qual é o nível de participação das crianças na sua formação desportiva?” E responde. É tudo imposto. Tal e qual como nas escolas, onde têm de estar sentadas, quietas e a ouvir professores cansados, velhos e chatos. O que é que elas gostariam de fazer no treino? Algumas vez os treinadores ouvem as crianças? Os pais ouvem os próprios filhos? A formação de crianças e jovens em Portugal é de uma visão autocrática e isto é mau, porque as crianças do século XXI mereciam outro respeito e um processo mais democrático. Haveria mais participação, um melhor ambiente, mais entreajuda… como acontece nos países que já o fazem de forma mais adequada, como o Canadá e alguns países nórdicos. As crianças não são atletas em miniatura. Eu posso fazer um campeão à martelada. Se repetir exaustivamente, eu chego lá. Só que ele não vai ser criativo, não se vai adaptar, vai morrer cedo. Se eu fizer um atleta inteligente, dinâmico, com capacidade adaptativa, esse é que vai ser um bom atleta, e quero na formação um modelo que forme estes atletas”.

Por outro lado, autor (Esteves, 2010), partilha a visão de Vítor Frade ao distinguir especificidade precoce e especialização precoce. Segundo Frade as melhores equipas na formação, treinam sob a especificidade precoce, evitando os problemas causados pela especialização precoce. Para Esteves “quando treino em especificidade precoce, desde cedo, com diferentes graus de complexidade numa progressão complexa de muitos anos, consigo um jogador muito mais evoluído, pelo simples factor confiança. A repetição constante leva a sistematização, ao hábito e isso com o passar dos anos leva à «expertise». As grandes mentes, em diferentes sectores da história da humanidade, dificilmente iniciaram as suas trajectórias em fase adulta. Grandes lutadores iniciam as suas lutas muito cedo, entre 6 a 8 anos, grandes pianistas idem, grandes jogadores iniciam suas trajectórias no Futebol de rua, na escola, nos campos de praça, logo aos 5, 6 anos”. Por outro lado o autor defende que a “especialização precoce é a maior negação do princípio da individualidade biológica. Não é possível aceitar que todos os seres humanos são diferentes e que a qualquer momento pode surgir um novo Pelé ou Maradona se logo ao se iniciar um treino podamos todas as possibilidades de gerar este comportamento, criando uma espécie de fábrica de jogadores, fazendo tudo igual, sendo que a grande graça está em quem faz o diferente”. 

Neste sentido, o treinador português (Carlos Carvalhal, 2010) destaca a “importância de desenvolver os sentidos e de experimentar as sensações em contacto com o meio (perspectiva ecológica) de forma a testarmos todas as nossas capacidades fazendo do ensaio / erro uma autodescoberta. A individualidade é assim um conceito obrigatoriamente agregada à noção de criatividade: o que vivencio enquanto jogador potencia as minhas qualidades, exponenciando-as; faz com que codifique de determinada forma o significado do que vivi, determinando também a conexão que farei com episódios semelhantes no futuro”. O professor (Francisco Silveira Ramos, 2013), conclui que “o futebol é um jogo coletivo, mas é feito de individualidades e temos até que fomentar essas individualidades”. O autor sustenta ainda que é necessário “que o trabalho para eles seja rico e criativo”. Rico e criativo, implica experimentar diferentes contextos e desafios, e garantir uma maior propensão do mais favorável ao estágio de desenvolvimento individual e desejos de cada criança. No fundo, o caminho trilhado autonomamente por cada criança no Futebol de Rua, em regime de auto-descoberta e longe da intervenção do adulto.

“O possível

é o futuro do impossível

o padrão de problemas

não se acorrenta por esquemas,

nenhuma impossibilidade

é impossível…

Não tendo na robotização a verdade

a complexidade é exequível.”

(Frade, 2014)

 

Bibliografia

Sobre Ricardo Ferreira 47 artigos
Apaixonado pelo jogo desde a infância, foi o professor Francisco Silveira Ramos que lhe transmitiu o mesmo sentimento pelo treino. Como praticante marcaram-no as experiências no futebol de rua. No jogo formal, as passagens pelo Torreense no Futebol, e no Futsal pelo Ereira e Benfica e Paulenses. Teve experiências como treinador e coordenador na Academia de Futsal de Torres Vedras e Paulenses (Futsal), em simultâneo, durante três anos. No Torreense durante seis anos, depois uma época no CDA, duas no Sacavenense e outras duas na Academia Sporting de Torres Vedras. Foi também, durante seis anos, coordenador de zona no recrutamento do Futebol de Formação e Profissional do Sporting Clube de Portugal. Posteriormente trabalhou dois anos como Coordenador Técnico no Futebol de Formação do Sport Lisboa e Benfica. No seu último trabalho, de regresso ao Sport Clube União Torreense, acumulou a liderança dos Sub19 e funções técnicas na equipa senior, equipas nas quais se sagrou Campeão Nacional na primeira edição da Liga 3, acumulando, no mesmo ano, mais duas subidas de divisão, à Segunda Liga e à Primeira Divisão Nacional de Sub19, totalizando sete promoções ao longo de toda a carreira. Foi co-autor do livro "O Efeito Lage" e é fundador do projecto www.sabersobreosabertreinar.pt.

1 Comentário

  1. Um texto grande a requerer muito tempo no tempo dos 140 caracteres. Tempo bem empregue diga-se se passagem. Um novo tipo de textos por aqui, mas que são benvindos.

    De grande nota diga-se de passagem o tema aqui abordado. Haverá espaço para, num futuro não próximo, um futebol de 11 misto ao nível sénior? Já agora, como premissa, há espaço para os treinadores que defrontam a equipa da Mariana abrirem as suas equipas a outras Marianas? Quantas Marianas caberão numa equipa?

    Só uma nota para as citações. Essa forma de citar, pede sempre uma lista de referências cá em baixo onde se possa ir à procura. Seria possível ou fazer o texto sem necessitar delas (ex.: como disse Fulano no seu artigo na Revista-do-Catano em Abril de 19etrocaopass0) ou então fornecer cá em baixo uma lista de referências?

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.


*