O talento e o trabalho no futebol

Praticamente terminada a época, no que aos clubes diz respeito, e estando no pré-Mundial de Seleções e a meio ano de nova entrega da Ballon d’Or, vou dar uma perspetiva da eterna discussão Messi – Cristiano Ronaldo, sabendo que amanhã e depois os argumentos dos que salientam as diferenças entre ambos serão os mesmos de ontem.

Considero que um dos argumentos mais utilizados para marcar essa diferença e, no entanto, para ressalvar que ambos são génios à sua maneira, parte de premissas erradas e é injusto para ambos os jogadores. O argumento é mais ou menos este:

“ – O Ronaldo é bom porque trabalha muito; o Messi é bom porque nasceu assim.”

É injusto porque nem Ronaldo é pouco talentoso nem Messi é pouco trabalhador. Ronaldo, só com ginásio, não seria jogador de futebol, e Messi, se se tivesse cedo especializado noutro desporto, não seria tão bom futebolista. Só alguém que tenha uma prática continuada, durante anos, conseguirá chegar ao topo. Naturalmente que, para o nível de ambos, não chegam apenas as horas acumuladas de trabalho, seja na terra batida do bairro, seja mais tarde num ambiente mais controlado, como num treino planeado ou no ginásio.

Anders Ericsson, um psicólogo sueco, ficou famoso pela sua ideia de que são necessárias cerca de 10 mil horas de prática deliberada para atingir a expertise numa determinada função – a ideia de que “todos temos o potencial”, através da modificação de ADN adormecido. Esta ideia genérica não diz que tipo de trabalho tem de ser feito para atingir a expertise em determinada função e cabe aos especialistas perceber, para cada desporto, que treino faz mais sentido no desenvolvimento de um jovem atleta. Temos também, ao contrário, que a maioria dos praticantes tem muitas horas de trabalho mas poucos acabam por atingir o sucesso desportivo. Genericamente, todos teremos potencial para sermos bons, mas nem todos para sermos de elite.

A grande vantagem da aceitação desta teoria é a de que combate a noção de que se tem de nascer de determinada forma para atingir o sucesso. Pese embora a genética tenha um papel importante, não é possível hoje, pelo menos de forma massificada, através de uma análise ao genoma de um indivíduo, apontar quais são os indivíduos que têm todas as chances de singrar no futebol de alto rendimento. Por isso, o que mais faz sentido é fornecer aos jovens o ambiente que melhor vai desenvolver as suas capacidades potenciais, até porque é apenas numa parte desse ambiente que é possível termos um controlo direto das variáveis. Este ambiente inclui naturalmente o tipo de treino, mas também a dieta, lesões e doenças ao longo do percurso, clima e fatores sociais, como dinâmicas familiares, eventos de vida stressores ou proximidade de instalações de treino. Este conjunto de elementos que formam o ambiente não altera o ADN do indivíduo, mas modifica a expressão desse ADN, através de um processo que se denomina epigenética e cujas adaptações ajudam a explicar como o ambiente afeta o funcionamento biológico do atleta, ao ligar e desligar genes.

O futebol, além disso, é um jogo caótico, do ponto de vista da imensidão de variáveis diferentes que concorrem para se atingir o sucesso de uma equipa e de um jogador dentro da equipa e dentro da competição. Este facto aumenta ainda mais a importância do conhecimento global do desporto para melhor podermos potenciar e extrair o melhor de cada um.

Voltando ao exemplo com que iniciei o texto: foram necessárias muitas horas de Ronaldo a trabalhar com bola, desde muito pequeno, desenvolvendo as suas capacidades percetivo-motoras que se traduzem na técnica, para, em cima disso, através do treino de capacidades condicionais, se tornar no animal competitivo que é; mas, também Messi, não só gastou muitas horas a brincar com bola, como teve de evoluir nas características específicas que permitem a demonstração da sua técnica em todo o seu esplendor, como a velocidade e a força, caso contrário seriam impossíveis as suas ultrapassagens a jogadores em série, sem ser facilmente derrubado ou ultrapassado.

Não se trata, portanto, de talento versus trabalho – trata-se de ambos e ainda de trabalho bem feito.

4 Comentários

  1. Post muito interessante. No entanto, não concordo em absoluto com a teoria das dez mil horas nem com o facto de combater a noção de que se tem de nascer de determinada forma para atingir o sucesso.
    Aliás, a respeito da mesma, há uma história interessante que corre no mundo do desporto – a história dos saltadores em altura Stefan Holm (confesso adepto do trabalho do psicólogo sueco acima referenciado) e Donald Thomas. Um tinha acumuladas mais de 20 mil horas de prática e saltava desde os quatro anos. O outro treinava o salto em altura há apenas 8 meses, mas era dotado de um tendão de aquiles enorme e super elástico, que lhe permitiu ganhar os mundiais de atletismo ao favorito Stefan Holm.
    Outro exemplo de talento: Três dos Big Four do ténis, a saber, Federer, Nadal e Murray, quando eram pré-adolescentes, foram obrigados pelos seus treinadores de futebol e ténis a escolher uma das modalidades e dedicar-se em exclusivo a ela. Será por acaso que esses três jogadores, ainda tão novos, já eram brilhantes em futebol e em ténis? Punham mais horas em futebol e ténis que os outros miúdos punham só numa modalidade? Os dias teriam mais de 24 horas para eles? Ou será que tinham uma coordenação olho-mão e olho-pé fantástica? O próprio Federer, que é o exemplo supremo do talento, diz que sempre foi bom em todos os desportos que experimentou…
    Por fim, quantos brancos correm os 100 metros em menos de dez segundos? E quantos Jamaicanos, por exemplo?
    Em resumo, não se pode ignorar a esmagadora importância do talento, seja enquanto capacidade física (um tendão de aquiles mais comprido que o normal), seja enquanto capacidade motora (coordenação).

    • Obrigado pelo comentário, Tiago.
      A teoria das dez mil horas não é para concordar em absoluto! Nem treinar 10 mil horas é suficiente para se ser um atleta de topo nem ter os melhores genes do mundo chega para o mesmo objetivo. Para além disso, quando estás no papel de treinador, tens de pensar no que está ao teu alcance fazer para melhorar o que tens à frente. Aí é que entra a arte do treinador de formação: vou preencher as “dez mil horas” com quê?
      Abraço!

  2. As 10 mil horas terão de ser encaradas de uma forma não literal. Teddy Riner, que reina supremo no judo super-pesado há quase 11 anos disse uma vez numa entrevista que a melhor coisa que a mãe alguma vez lhe fez foi obrigá-lo a ter aulas de danças de salão na pré-adolescência. No entanto ele só se apercebeu o facto já em sénior.

    Eu nas questões do talento e do trabalho há um terceiro exemplo, contemporâneo de Messi e Ronaldo que gosto de usar: Mario Balotelli. Talento, check. Work ethic, yeah right! E o cabrão do Zlatan, outro bicho do trabalho e do talento, a ter de viver no mesmo tempo desses dois génios?!

    • De facto, dentro dos modelos de evolução a longo prazo, a prática de exercícios variados em idades precoces está mais aconselhada do que a especialização precoce numa modalidade.
      De resto, até para se ser génio em determinado período é preciso ter sorte!
      Abraço

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.


*