Morrer com a ideia ou transcender a ideia?

Ah o status quo. O belo do status quo que nos deixa confortáveis quando alguém decide que é tempo de ser, pensar, sentir e fazer outras coisas. O Mundo do futebol, como outros Mundos, tem uma forte componente de resistência ao novo, ao diferente. Mesmo depois de um milhão de provas dadas pela constante evolução do jogo, há quem continue a achar que as coisas são e devem ser de uma só maneira, arranjando-se para isso todos os argumentos possíveis para se manter a ideia original. Repare-se como as ideias originais do Lateral Esquerdo formaram um culto que hoje até contra o criador se revolta. Isto porque para o LE a identidade não é um produto acabado. Novas coisas obrigam a novas ideias, e com a variedade de desafios surge a variedade de ideias.

Afinal o que conta no futebol? Ganhar todos os títulos possíveis e deixá-lo como estava? Permanecer em 2010, num Mundo que já não existe, que já passou, e tentar que Iniesta, Xavi, Messi, Busquets, Henry & cia apanhem Guardiola de novo? Ou criar mais com o que existe agora, fazendo frente ao que o futebol evoluiu quando teve de enfrentar a melhor ideia, a melhor intenção, a melhor emoção e acção do futebol moderno?

Hoje divide-se a análise dos jogos nos tais cinco momentos do jogo, mas subconscientemente já há muito que se levam em conta outros momentos. Há muito que se fala no que é realmente a equipa, ou no que tenta ser (identidade), que ideias tem para lá chegar (mente), como usa o sentimento como gasolina para trazer a ideia ao físico (emoção) e, claro, o que faz dentro do campo com essa identidade, ideia e emoção (físico). E só neste último estão compreendidos os tais cinco momentos com que se analisa, por estes tempos, o jogo.

Contudo são aqueles quatro que criam tudo o que a equipa produz, e quanto mais abertos forem maiores serão as hipóteses de a equipa dar coisas novas ao futebol. Sim, porque uma coisa são colagens e tentativas de reproduzir algo já feito, outra coisa é criar novo, fazer escola, ver a oposição arranjar antídotos, ou ver a própria equipa a precisar de algo novo e criar esse novo.

Quer-me parecer que se perde agora muito tempo a discutir o que é melhor. Sejamos sinceros, se a identidade que defendemos é assim tão boa, é assim tão perfeita, porque raio precisa da nossa defesa? Acham mesmo que, daqui a 100 anos, alguém vai olhar para 2010 como exemplo para alguma coisa? Seria a mesma coisa pegarmos em 1918 e tentarmos ganhar agora. A ideia flui e por isso não me seduzem identidades inalteráveis, nem o morrer com a ideia. Até porque a frase que mais leio, e oiço, dos treinadores é a de que os seus primeiros exercícios, os seus primeiros rabiscos, de nada lhes valem agora. E a cada momento que nos agarramos ao passado, a tentar que o jogo se molde às nossas ideias, estamos mais não só de que a querer o Reino à força. Nem todas as situações são perfeitas para a nossa ideia, nem sempre o nosso manual funcionará. Mas esse é o gozo, essa é a piada, essa é a pica de um jogo que tenta, todos os dias, comer a nossa ideia. Obriga-nos a transcender e a elevar, por arrasto, o próprio jogo.

Recordo-me, por exemplo, de um Benfica-Académica dos tempos de JJ (mas do qual não consigo especificar a época). Já o jogo, em que os encarnados foram sempre fieis à sua ideia mas não conseguiam mais do que um nulo que persistia, ia para lá dos 90 quando, por acaso, o guarda-redes do Benfica decide mandar um balão para a área adversária conseguindo através dessa anormalidade uma situação para a qual a Académica não estava, de todo, preparada. Sim, o Benfica ganhou 1-0 e ganhou para lá da ideia que levava. Morrer com a ideia era empatar esse jogo. E perceber isso antes (que a Académica era particularmente frágil nesse aspecto) era, muito provavelmente, ter construído a vantagem mais cedo. Estou com isto a dizer que devemos recorrer ao chutão sempre que as coisas estão negras? Acho que já sabem a resposta. Mas tão centrada na sua ideia, a equipa do Benfica passou 90 minutos sem ver onde estava o ouro. E o mesmo nos pode estar a acontecer a nós, todos os fins-de-semana. Ou pensamos mesmo que a nossa ideia cobrirá as infinitas possibilidades que o jogo oferece? Há coisas que não estamos a ver. E a nossa ideia – por mais apaixonados que estejamos por ela – pode muito bem ser o que está na frente dessas coisas.

7 Comentários

  1. Bom exemplo do pontape para o ar…esqueceste foi de dizer que so e o treinador com mais titulos na historia do slb por causa dessa ideia e essa ideia levou o a duas finais europeias seguidas…como melhorar uma ideia supostamente ultrapassadA….charuto e 2 bola bora todos juntinhos…digo eu da poltrona!

  2. Como a anàlise do futebol que se faz pelos momentos do jogo faliu porque nao correspondam sempre à realidade dos resultados, advem novas analises como a tua sobre a identidade que se agregam à analise dos momentos. A identidade traz mais humano ao abstrato das estruturas e vejo discursos que acham que se o modelo reflete a identidade, ele nao define a identidade e que essa nasce do grupo composto do treinador e dos jogadores.
    Assim para pôr em pratica as ideias do treinador dentro de um modelo, tem-se que trabalhar tambem a mente e as emoçoes dos jogadores.
    E uma boa ideia evolutiva e original, e que contem certas verdades mas a minha pregunta é a seguinte: porque complexifiar sempre a teoria do futebol quando o jogar bem parece simples? Nao haverà teorias que decorrem da beleza simples do futebol e sem recursos a teorias exteriores ao futebol como as ciencias humanas e sociais para o management, cognitivas e psicologicas para a pedagogia, systémicas ou cybernéticas para a anàlise do jogo? Nao existerà uma teoria que pertence à especifidade do futebol e das suas regras?

    Jà te escrevi longamente sobre a minha visao do futebol e isto de escrever nesta caixa de comentarios, é sempre uma tentativa de mudar de paradigma para teorizar, e como é aqui o unico espaço existente…
    Obrigado ao LE que traz reflexoes gratifiantes à inteligencia e abram sempre outras perpectivas.

  3. Olá, Miguel 🙂

    Sinceramente penso que… whatever works. Isto porque é difícil separar futebol do todo. Percebo o que queres dizer, e até pode ser possível, mas a mim não me é fácil fazer essa separação. Posso estar a ler um romance do sec XV (estou a brincar, não leio nada disso) e associar algo de lá ao jogo ou ao treino. Eu escolho não a fazer (a separação) porque me parece impossível. Mas acho que trazes um excelente ponto e que te poderá ser muito útil na criação de uma identidade

  4. Sim, tens razao, whatever works… e o sucesso dos treinadores oriundos da linha de pensamento de Manuel Sergio ou discipulos de Vitor Frade atestam essa verdade mesmo se para mim, a inteligencia coletiva das equipas desses treinadores foi a parte mais importante porque criaram muitos desequilibrios graças aos processos coletivos ao qual os treinadores da veia mais clàssica nao souberam responder de imediato.
    O novo ensinamento universitario do futebol foi bem util pela evoluçao desse deporto mas esse ensinamento, por exemplo, nao entende o Misterio impenetràvel e oculto da Finta, e por isso nunca conhecerà a filosofia do futebol; e os seus profesores ficarao orfaos dessa noçao do encobrimento, indecifràvel para eles e serao refém das ciencias humanas.

    Outra vez obrigado pela tua resposta e pela tua paciencia.

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