O derby do disparate. As dificuldades individuais e colectivas, e as bolas de aço de João Felix

Desde sempre que se defendeu a tomada de decisão como o mais importante no jogo de futebol.

O derby de ontem, porventura, um dos com menos qualidade de jogo (se apelidarmos de qualidade, a capacidade para ir ligando o jogo de espaço para espaço) desde há bastante tempo, prova-o.

Ainda não estava jogado um minuto de jogo na Luz, e o Benfica numa das suas saídas padronizadas para o ataque, cria, por mau posicionamento de Battaglia, um desequilíbrio muito importante, e que seguramente daria golo a cada seis, sete, oito em dez vezes, se os intervenientes fossem daquela gama que chega habitualmente aos últimos oito na Liga dos Campeões.

A saída dos encarnados, aliada à desconcentração posicional momentânea de alguns jogadores do Sporting coloca André Almeida e Ferreyra contra um desamparado Coates, já bem na entrada da área. Faltava decidir como desequilibrar o central leonino. Tabela, para isolar Almeida, ou ruptura para isolar Ferreyra.

A mal fadada tomada de decisão tornaria o lance de potencial imenso em apenas mais um lance corriqueiro de um derby que não deixará saudades…

 

A quantidade de ataques prometedores que se perderam por dificuldades técnicas e de decisão não encontra paralelo com muitos outros derbys que não os da década de noventa, onde ai, ainda imperava total anarquia táctica. Nada que fosse surpreendente, afinal, desde o início da temporada que temos vindo a apontar as lacunas das equipas, embora José Peseiro lidere uma equipa que passou por uma conjectura que poderá “desculpar” o nível apresentado até ao momento.

 

 

 

O perfil do médio defensivo de cada uma das equipas, também proporciona um jogo menos fluído. Se Fejsa é verdadeiramente fenomenal nos momentos sem bola (ver post recente de Sergio e Alfa, e perceber que nunca erra uma decisão defensiva), com bola é tão incapaz quanto capaz é sem esta. É muito raro vê-lo a espreitar por cima do ombro para perceber o que o rodeia, e na sua tomada de decisão raramente é um conector, mantendo sempre a bola no espaço para onde direcciona em primeira instância os seus apoios. Tecnicamente, as dificuldades também são óbvias.

Também tecnicamente, Acuña com um lance de potencial incrível desperdiçado por uma recepção…

 

 

Mas não são apenas as debilidades individuais de um sem número de jogadores que marcaram o derby. Também colectivamente foi um jogo que deixará poucas saudades. E importa referir também, que se a aposta é contínua num perfil de “corredores” em detrimento de “pensadores”, é natural que o jogo não consiga ser fluído… e a responsabilidade é sempre de quem toma tais opções.

Em geral, há muita dificuldade para se perceber o que é colectivo e individual. As opiniões tendem a moldar-se a gostos e não a factos. Gosto deste jogador, não gosto daquele outro, protejo um, nunca o outro. Gosto de um treinador, não gosto de outro, vejo lacunas individuais que são colectivas num, e no outro vejo lacunas colectivas que afinal até são individuais.

Um lance que denuncia a falta de maior entendimento colectivo nos encarnados, é a forma como não está preparada a entrada da bola no espaço interior em zonas de criação. Fejsa coloca uma bola muito boa em Ferreyra, e a partir daí, o desentendimento deste com o movimento de Grimaldo denuncia que num lance que deveria ser padrão, há jogadores a pensarem em duas coisas diferentes: Aqui não é erro técnico de Ferreyra no passe! Mas, sim descoordenação colectiva! E o Benfica procura pouquíssimas vezes furar por dentro, como aqui o fez, e das vezes em que o faz, não há uma ideia comum! Ao contrário da dinâmica que construiu nos corredores laterais, e que quando não há erros individuais / técnicos, contribui para aproximar o colectivo do último terço.

 

A lista de más decisões seria quase interminável, e resulta de duas grandes premissas. Falta de qualidade de vários jogadores (em termos de talento, expresso em gesto técnico e capacidade para tomar decisões), como há vários anos não se sentia num derby, (sim, é díficil para um adepto o ouvir e reconhecer. Geralmente são precisos uns bons anos para olhar para trás e perceber que o Hanuch não era propriamente o Futre, e o Paulo Nunes, o novo Romário. O tempo dirá quantos dos que pisaram a Luz na noite de ontem jogarão em boas equipas de muito bons campeonatos, assim como lá chegaram: Otamendi, Danilo, Alex Sandro, James, Moutinho, Jackson, Fernando, Mangala, Falcao, Siqueira, Garay, Witsel, Enzo, Rodrigo, Nolito, Gaitán, Semedo, Ederson ou Oblak… para citar apenas os últimos 5 anos…  E os que lá chegarão, ainda estão hoje nos seus primeiros passos…) e incapacidade para que o colectivo mascare as dificuldades individuais. O Sporting, sobretudo, terá de se construir paulatinamente, e o Benfica com pontos colectivos interessantes, desde a sua Transição Defensiva ao jogo de corredores, mas com muito para mudar no seu ataque posicional, em termos de trabalho de pormenor. Porque quando individualmente o nível não é tão alto, só o pormenor colectivo poderá ajudar a esconder lacunas, e embora a tomada de decisão seja pouco passível de ser alterada de forma acentuada pelo trabalho do treinador, as decisões mais fáceis de tomar (com espaço) são mais passíveis de se orientar.

Num jogo com tanto espaço para jogar e tomar decisões, com tantas condições para entrar por dentro da organização adversária, os próprios golos surgirem de erros dos adversários e não tanto do obrigar ao erro que quem tinha bola poderia tentar, ajuda a explicar a desilusão que foi o grande derby de Lisboa.

 

O que ficará para a memória do derby?
Provavelmente apenas a estreia de um menino que para além de talentoso e inteligente, tem umas bolas de aço, não se intimida e ainda pede para assumir.

 

Sobre Paolo Maldini 3828 artigos
Pedro Bouças - Licenciado em Educação Física e Desporto, Criador do "Lateral Esquerdo", tendo sido como Treinador Principal, Campeão Nacional Português (2x), vencedor da Taça de Portugal (2x), e da Supertaça de Futebol Feminino, bem como participado em 2 edições da Liga dos Campeões em três anos de futebol feminino. Treinador vencedor do Galardão de Mérito José Maria Pedroto - Treinador do ano para a ANTF (Associação Nacional de Treinadores de Futebol), e nomeado para as Quinas de Ouro (Prémio da Federação Portuguesa de Futebol), como melhor Treinador português no Futebol Feminino. Experiência como Professor de Futebol no Estádio Universitário de Lisboa, palestrante em diversas Universidades de Desporto, Cursos de Treinador e entidades creditadas pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ). Autor do livro "Construir uma Equipa Campeã", e Co-autor do livro "O Efeito Lage", ambos da Editora PrimeBooks Analista de futebol no Canal 11 e no Jornal Record.

9 Comentários

  1. Poderá Joao Felix fazer de Jonas na Grecia?

    Odysseas; Almeida, Jardel, Ruben, Grimaldo, Fejsa, Gedson, Pizzi, Rafa/Salvio, Zivko e Felix.

    As decisões de Rafa no último terço/área parecem continuar com baixos níveis de acerto. Será que continua a ser uma questão de confiança ou beneficiará se jogar mais recuado, “mais longe da baliza”.

    • Continuo a achar que com as capacidades do Rui V, o melhor sistema para ele,desde há muito anos, deveria ser o losangulo com um ala, a exemplo do “di maria/ ramires”.. Vejo neste joao felix um saviola bem mais jogador..
      GR: Almdeida, DC, Jardel, Grimaldo, Fejsa, Samaris, Pizzi, Zivko,e 2avançados: Felix, rafa ou ferreyra…. No caso do benfica perder, quinta feira o que irá acontecer? Demissão para quem? (vitoria morais, vieira, Jmendes?)… Reparem na planificação do plantel e contratações desde à 2/3 anos para cá.

  2. Interessante esta análise.
    Será que a sucessão de erros pontuais que obviamente comprometem muitas vezes sequências longas e bem trabalhadas não será fruto de dois fatores: menor capacidade financeira e ritmo de jogo de elevado.
    Quanto ao primeiro ponto importa referir que os três grandes basicamente andam a contratar os jogadores que restam após as escolhas dos clubes dominantes do futebol europeu. E mesmo os que restam, muitas vezes nem são elementos fundamentais nos seus clubes. Basta ver que na maioria das vezes os três grandes vão buscar jovens desconhecidos (Éder Militão, Grimaldo, Ristovsy, etc.) e jogadores mais maduros mas esquecidos nos seus clubes (Jonas, Mathieu, Coentrão, Nani, Gudelj, etc). Por isso quando não consegues ter os melhores ingredientes, não consegues ter a melhor receita. Não há como negar isto.
    Quanto ao ritmo, os videos deste post ajudam a perceber isso, pois todos os erros supramencionados resultam de jogadas em ritmo elevado no meio de vários jogadores adversários. É verdade que o futebol moderno joga-se assim mas a verdade é que este ritmo acarreta um risco e capacidade de decisão que destaca os excecionais dos banais. Esta questão do ritmo é interessante para falar dum jogador: o Rafa. Fisicamente tem capacidades para jogar a um ritmo rápido, contudo a capacidade mental está ao nível dum jogador banal (já ouvi muitos entendidos a elogiar este jogador e ainda não vi a justificação para tal). Demasiadas são as jogadas em que a velocidade do Rafa coloca-o em posições no campo bastante favoráveis para criar perigo aos adversários, mas a falta de capacidade de antecipação, leitura e decisão rápida fazem com que os metros ganhos em velocidade física sejam perdidos pela velocidade mental, resultando no final em jogadas de jogador banal.
    O nosso campeonato por via da incapacidade financeira global e desnível demasiado acentuado de capacidade competitiva entre os quatro grandes e os restantes, torna o nosso campeonato tão bom como o grego, belga ou o holandês.

  3. O Benfica fez o suficiente para poder ganhar o jogo, mas jogou-se muito mal. Houve períodos de ressalto atrás de ressalto, repelões, etc… Poucas ideias e/ou fraca execução das mesmas.

    No Benfica, acredito que o Castillo traga maior acutilância no imediato. Acredito também que, a seu tempo, o regresso do Jonas e do Krovinovic tragam capacidade para o jogo interior. Ficará eventualmente a dúvida, se o jogo interior será vontade e skills de certos jogadores ou se só é trabalho e iniciativa do treinador quando esses certos jogadores estão disponíveis. O João e o Gedson são uma lufada de ar fresco.

    No Sporting, tenho dúvidas se o Bruno Fernandes, com o tempo, terá a influência que teve com o JJ. Tenho dúvidas também que o Nani seja regular e mantenha o foco ao longo da época. De resto, para mim ainda é cedo para ter opinião sobre o jogar da equipa.

  4. Na minha opinião das melhores peças escritas que já vi por aqui. As vezes é tão simples perceber as coisas, basta querer ver …
    Perdoem me a insistência, mas há questões que para mim continuam um mistério, eu continuo a questionar me do porque de não se apostar no zickovic (já nem me refiro sempre para não parecer embirração) no lugar do pizzi, tendo em conta a excelente Resposta dada o ano passado. Sendo certo que me parece inevitável a curto prazo (principalmente se Jonas não reaparecer em breve) a titularidade de João Felix seja a médio centro a frente de Gedson e fejsa seja na esquerda.
    A insistência em rafa eu apenas explico pelo valor pago no passado, um jogador que tem muitas qualidades em que a única que parece saltar a vista em todos os jogos e a união que provoca nas bancadas com o coro de assobiadelas e apupos que os adeptos do benfica lhe proporcionam.
    Abc

  5. Grande análise, mesmo não concordando com a firmeza máxima em alguns argumentos (nomeadamente do talento individual, ainda que seja óbvio que especialmente o FCP tenha tido acesso a uma classe inatingível por estes dias – o Benfica também o fez mas em menor escala). Há qualidade dentro de campo e tanto o Benfica (ou especialmente o Benfica) e o Sporting podem evoluir e podem jogar muito mais se levarem outras ideias para os treinos e jogos.

    Porque o que se tem visto é fraco, fraquinho e com tanto espaço para jogar não se admite tanta inépcia. O Felix deve ser rapidamente titular porque é um dos melhores do Benfica.

  6. Gostei da análise, embora me pareça um pouco dura.
    Fiquei com dúvidas relativamente a um dos dos lances do Cervi (jogador que considero que realmente tem muitas limitações, nomeadamente ao nível da decisão, mas com espaço para evoluir):
    Refiro-me ao lance em que o Cervi coloca a bola da área em vez de atrasar para o Pizzi. Considerando que estavam 3 para 3 na área do Sporting, a decisão melhor não foi mesmo o cruzamento? (não está em causa a qualidade do cruzamento que foi realmente má)

  7. Continuo com dúvidas, o primeiro homem nunca conseguiria, mas se a bola saísse tensa para o segundo e principalmente para o terceiro, que vem de trás e ganha necessariamente vantagem sobre o defesa pois aparece-lhe nas costas, creio que poderia ter dado lance de golo.
    Mas atenção que concordo perfeitamente que o Cervi é péssimo na decisão, ganha vantagem vezes sem conta, principalmente pela velocidade, mas também no um para um e depois desperdiça com decisões estúpidas, colocando muitas vezes a equipa em contra-pé.
    Na minha opinião isso pode ser por falta de qualidade intrínseca ou por falta de maturidade, pois é muito novo. Creio que só quem trabalha com ele diariamente pode ter melhor noção disso.
    Um abraço e obrigado pela resposta.

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