A Fortuna e a Félixidade

Muitos, demasiados, confundem a felicidade com um sentimento exterior à conquista de algo. Como se só pudéssemos ser felizes apoiados em algo exterior a nós próprios, esses continuam à espera de que algo, fora do seu controle, os faça felizes. Assim, se estiverem reunidas todas as condições, os imberbes que assim pensam talvez não vejam o seu dia estragado porque, por exemplo, está a chover, ou coisa que o valha. Já os outros, esses, são felizes porque o escolhem ser, incondicionalmente. São felizes antes de algo que os possa fazer felizes e escorrem essa felicidade pelo seu corpo de identidade, pelo seu corpo mental, pelo seu corpo emocional, muito antes de no corpo físico acontecer algo que se possa assemelhar ao espírito da felicidade. É como, diria, olhar para um espelho e ficar à espera que uma cara carrancuda devolva um sorriso. Um sorriso como aquele que João Félix usa quando, ainda, brinca com o irmão pelas divisões da casa. Basta-lhe(s) a bola. E essa é uma mentalidade em desuso. O futebol, hoje, são carrancudos à espera da felicidade. São caras de medo all over the place a tentarem ser felizes condicionalmente, que é, como quem diz, à procura de um resultado que, condicionalmente, os possa deixar felizes. Mas, arrisco dizer, na sua noite mágica em Alvalade, João Félix, de apenas 19 anos, já era feliz antes de arrancar uma monstruosa exibição que ajudou a demonstrar a todos o que, por aqui, já há muito se dizia sobre o Sporting de Marcel Keizer.

Este, não duvidem, era também o jogo que Sérgio Conceição pedia quando foi a Alvalade. Era o jogo que, quem está mais atento a formas de jogar, imaginava que, mais dia, menos dia, acontecesse a um Sporting que ora estende a manta em demasia, ora a encurta em exagero. E para explorar a debilidade de um leão que, desta vez, escolheu arriscar, nada melhor (na perspectiva encarnada) que um Benfica que, mesmo em construção, é letal na transição ofensiva, demonstrando também, com Bruno Lage ao comando, outras competências que, há uns meses, pareciam perdidas. E olhar para este Benfica – que em Alvalade espalhou organização e autoridade – é como ouvir A Fortuna. Até aquela cavalgada triunfal que já todos bem conhecemos e que foi aproveitada por aquele, entre outros, anúncio da marca Old Spice, é preciso uma introdução que a leve lá: posicionamento irrepreensível, alinhado e coordenado, é imperativo. Mas mais, Bruno Lage trouxe também algo que muita gente se esquece quando se fala em organização. E isso, no seu curto reinado, é capaz de ser a explicação para a transfiguração de uma equipa que, agora, se aproxima a passos largos do nível do rival que quer abater. Isso, dizia, foi também a chave para um resultado que, em certos momentos do jogo, daria sempre ares de escandaloso para um dérbi em que o visitante abate o visitado sem quaisquer contemplações.


Assim, olhar para o Benfica de Bruno Lage, neste momento, é como olhar para uma armada. Os posicionamentos correctos estão lá, mas a autoridade e intensidade dentro dos mesmos fazem toda a diferença. E a essa autoridade pura que os tais posicionamentos correctos conferem aos jogadores que os desenham, segue-se um número extraordinário de duelos ganhos que fazem essa autoridade crescer, crescer, crescer. De apoios bem colocados e preparado para (quase) tudo (já lá vamos ao que ainda há para melhorar) o Benfica foi capaz de levar o jogo para a escala de O Rei vai nu em Alvalade. Faltava alguém mostrá-lo. E ninguém melhor para isso do que uma armada benfiquista que, bem coordenada, ganhava alto, médio ou baixo e disparava por entre as linhas leoninas e por entre a felicidade de João, até deixar bem patente a diferença, complexidade e qualidade, da ideia de Keizer e da ideia de Bruno Lage. Em suma, o jogo perfeito não fosse ainda preciso rever a quantidade de erros numa saída-de-bola que tem sido, e pode continuar a ser, o calcanhar-de-aquiles deste Benfica.


E se bem se lembram, aquando da conversa do ganhar 1-0 ou ganhar 4-3, falou-se em vitórias. E como se sente agora Marcel Keizer depois de perder um jogo, por 4-2, em que só dois momentos do jogo o podem apoiar (organização ofensiva e aproveitar erros forçados e não-forçados do adversário)? Olhando para a descoordenação do seu Sporting em tudo o resto, já não deverão ser muitos aqueles que crerão que este futebol terá qualquer hipótese no pântano táctico português. Isto porque este é um reino apoiado na harmonia nos cinco momentos do jogo (nos quais o Benfica, ontem, originou e criou os seus 4 golos e outras tantas oportunidades flagrantes) e não de uma utopia onde só atacar, ou só defender, servirá para ganhar uma Liga que não vai a penáltis. Assim, arredado que está o Sporting (até transcender uma ideia incompleta – sim, até Keizer pode aproveitar a estadia para fazer o que Lopetegui, Camacho, Quique, Koeman, Fernández, Vercauteren… não fizeram), arredado que está o Sporting da luta pelo título, dizia, convém virar agulhas para o que será uma apaixonante luta entre panzer FC Porto, a armada Benfica e o outsider bonacheirão Braga. E que luta vai ser essa, amigos!

Sporting-Benfica, 2-4 (Bruno Fernandes 42′ e Bas Dost 89′ g.p.; Seferovic 11′, João Félix 36′, Rúben Dias 47′ e Pizzi 73′ g.p.)

5 Comentários

  1. Pergunto-me se o Sporting não poderia ter jogado com o triângulo interior invertido, ou seja, dois médios centros mais recuados, talvez Gudelj e Bruno Fernandes. Perdia capacidade de transporte até ao último terço mas talvez protegesse mais os defesas centrais (muito desapoiados e fruto disso muito desarticulados) e bloqueava a entrada de jogo do Benfica no espaço entre linhas.

    • O Bruno Fernandes é uma mais valia quando joga perto da área adversária, puxando o Bruno Fernandes para o meio campo defensivo do Sporting provavelmente ia corresponder bem, mas deixava de ser uma mais valia na minha opinião.

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