Sensações, Formação e Criatividade

Em imensas situações agimos sem consciência do porquê, sem termos traçado um plano, sem que tenhamos pensado se não haveria outra solução. Muitas das decisões no dia-a-dia são tomadas por impulso, de forma espontânea, por influência de “algo que nos entra pelo cérebro adentro” e por causa do qual, de forma inconsciente, resolvemos agir de determinada forma, sem tempo para recorrer a um processo de (demorada) reflexão. Eventualmente, segundos, minutos, horas, ou até dias depois (talvez nunca!), podemos dar um sentido consciente a essa decisão.

Essencialmente em momentos onde o tempo é escasso e a pressão é grande, mas as decisões têm que ser tomadas, é muito importante que o nosso inconsciente esteja “fresco” de forma a poder recorrer à informação realmente importante, que não esteja toldado por demasiada informação menos importante, de forma a poder tomar as decisões mais acertadas em função do que está a acontecer.

No futebol, como na vida, esta espontaneidade treina-se, e por isso o treino tem que ter em conta que aquilo que se faz pode tornar esta espontaneidade cada vez mais ajustada à nossa equipa e ao jogo ou então poderemos correr o risco de com o treino atrofiar esta espontaneidade, tornando o jogador mais lento, porque tem dúvidas ou porque não sabe focar-se no que é prioritário e assim necessita de uma reflexão mais demorada sobre o que fazer em determinado momento, entretanto não se desmarcou, não passou, não se atirou (GR), não tentou o desarme, não colocou os apoios correctamente, não saltou, etc., etc., etc…. no timing ajustado ao que a circunstância pedia.

Pensemos na Comédia de Improviso, como é que os actores conseguem, sem guião, sem conhecer o tema previamente e sem conversarem minimamente sobre o que vão fazer, criar um enredo fluído que entretém o público de forma hilariante? É graças a esta espontaneidade. E não desvalorizemos esta espontaneidade pensando que ela é aleatória ou que não exige inteligência ou treino. É sabido que esses grupos de actores treinam muito para poderem antecipar o estilo de cada um e assim relacionarem-se em palco criando algo de forma colectiva e com qualidade.

O que aconteceria se esses grupos em vez de treinarem de forma aberta (objectivo: gerar relações num contexto imprevisível) treinassem segundo um guião muito específico? Chegada a noite do espetáculo quem escolhia o tema era o público, que poderia muito bem escolher outro tema. Haveria maior probabilidade de ficarem demasiado agarrados ao guião, o que iria gerar um conflicto e assim limitar a tal espontaneidade.

Numa equipa e durante um jogo poderá suceder o mesmo se envolvermos na discussão o lado estratégico. Elaborar todas as semanas um guião novo com base no adversário, poderá ser limitador dessa tal espontaneidade. O jogo é essencialmente resolução de problemas recorrendo ao inconsciente e as únicas coisas que nós sabemos que vamos ter ao longo da época em todos os jogos é: a nossa equipa, os nossos jogadores, num campo de futebol, com duas balizas, onde o jogo é 11v11, com regras específicas para o futebol, isto é o que nós temos. Eventualmente teremos também uma cultura relativa à competição onde estamos inseridos (um padrão comum a 80% das equipas). E temos também a ideia do treinador que é fundamental para direccionar a espontaneidade e as qualidades dos jogadores num sentido comum, gerando um filtro informativo para a equipa. Agora, se este sentido comum for mudado todas as semanas dando referenciais colectivos diferentes aos jogadores, dando a cada semana informação que poderá até ser contraditória (em função do adversário), então corremos o risco de estar a “matar” a espontaneidade e criar mais dúvidas e assim tornar as decisões e a fluidez dos movimentos e acções dos jogadores mais lentas.

Passando à “Formação” ainda nos parece mais preocupante, não só que se dê imensa importância ao adversário, como também que se crie para a própria equipa uma série de “jogadas estudadas”, estilo Futebol Americano, um autêntico “guião (ditado) colectivo” onde o treino é um constante ensaio sem improviso. Deveremos sempre criar algo que os guie, ligando-os (seja qual for o estilo – ao critério de cada treinador), mas que isso não lhes tolde a espontaneidade na hora de resolver os reais problemas que aparecem no jogo. Toda a informação pode contar, mas há prioridades e temos que treinar o nosso inconsciente de acordo e para aquelas que na nossa equipa são as mais importantes – gerar o tal filtro que ajuda os jogadores a lidar com a informação mais importante e que gera entrosamento, capacidade de resolução de problemas e aprendizagem (isto não se entende sem entender e incluir o conceito de erro, como algo natural).

Caso se confunda o que é essencial corremos o risco de passar informação “não tão importante” a mais e depois não sobra tempo para o fundamental. Ainda que no curto prazo isto possa não se sentir é uma questão de tempo até que os jogadores comecem a perder agilidade mental e do próprio corpo também e que o jogo colectivo perca fluidez. Parece-nos que é preferível deixar informação por dizer do que dar a mais.

A criatividade, que nem sempre o lado estratégico respeita. Desenvolver relações entre jogadores e permitir que se criem “macro- e micro-sociedades” que requerem uma sensibilidade especial, requerem olhar uns para os outros e a vontade de se quererem conhecer no jogo. Treinar é ajuda a que todo o corpo deles está aberto ao improviso, é aproximar o jogador dum patamar onde parece que nada é imprevisível, pois eles tudo antecipam, colocá-los em contextos (no treino) onde haja necessidade de seleccionar de cada circunstância a informação mais relevante para resolver o problema da melhor forma e sempre com a identidade da equipa presente.

Vivemos numa sociedade da informação e até da “desinformação” e temos a tendência errada para dar importância a tudo (no mesmo patamar) e tentamos planear recorrendo a tanta informação que acabamos por perder o tempo todo na análise sem nunca decidir.

Confiemos mais no nosso instinto, respeitemos o nosso impulso e treinemos com a intenção de formá-lo para que mais vezes tome conta sem preconceitos e com bons valores.

a) Extratos duma entrevista dada por Pablo Aimar à organização do C.O.T.I.F. (Torneio Internacional de Futebol realizado em Valência), aquando da participação da selecção Argentina sub-20, em Julho de 2018.
Sobre João Baptista 19 artigos
A paixão por Futebol conduziu-o até à FCDEF (Universidade do Porto), onde o Professor Vítor Frade viria a ser uma grande influência na busca constante da essência do jogo e do treino. Com passagens por FC Porto B, FC Porto (Dragon Force), Valadares Gaia FC (feminino), AD Sanjoanense e EF Hernâni Gonçalves, desde 2016 que se encontra na China, de momento num projecto de formação ao serviço do Zhichun FC. A página/o blog "Bola na Árvore" são reflexões de quem vai à procura da essência do jogo, da formação, do treino e da vida que se manifesta no futebol... na busca incessante vai-se aprendendo.

3 Comentários

  1. Tive na formação um treinador, que parco em recursos, metia a malta a jogar quase 90% do tempo do treino e ia parando o jogo para fazer perguntas aos jogadores, especialmente quando estes tomavam más decisões, levando a que estes, cm a pausa q ele exigia tomassem melhores decisões dia após dias, ganhando uma intenção em casa passe que fizessem…

    Na altura o processo de treino tava na baila, e lembro me desse treinador ser criticado, por pais, diretores e até jogadores dos outros escalões por não elaborar os treinos…

    Será que era esse treinador o q estava certo e os outros(com cones e desenhos em papéis e jogadas estudadas) estavam todos errados???

    O que é certo é q foi nessa época que tive o melhor grupo, e senti que todos os meus companheiros evoluiram muito mais q nos outros anos de ‘pinos’…

    Deixo aqui a reflexão…

    Ps: excelente texto

    • Carlos, Obrigado pelo exemplo. Sem dúvida que o treinador melhor preparado não é aquele que tem o maior manancial de exercícios.

  2. Muito bom texto sobre uma reflexao que devia estar na mente de cada treinador de formaçao. O Lage parece conciliar de maneira perfeita esse antagonsimo entre criatividade e estrategia

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