O Empréstimo

Sempre foi uma preocupação para o treinador. E se, em alguns casos, não o foi, a relação com os adeptos – independentemente, da importância que jogadores e treinadores, ou o clube como um todo, lhe dão – será sempre preponderante e altamente influenciadora nos corpos identitário, mental, emocional e físico da equipa. Porém, mesmo levada ao extremo com total afinidade, essa é uma relação condicional. Para lá das cantigas de amor que os adeptos bradam em relação ao seu clube, encontra-se a areia movediça da dualidade assente em resultados. Assim, ter os adeptos do seu lado é, e será importante, para qualquer equipa, treinador ou clube. Mas a ilusão é a de que esse apoio, transferido em energia para o seio da equipa, não tem um preço a pagar. Num Mundo perfeito não teria, e o amor incondicional de quem sabe que o futebol é, basicamente, erro atrás de erro, seria transferido para a equipa como intenção de transcender os tais erros cometidos de uma forma realista, não-dualista (ou seja não assente na areia movediça de três resultados – incluindo aqui a vitória que tanta vez toda a visão) e totalmente construtiva. Mas o Mundo está longe de ser perfeito e aceitar isso é o primeiro passo para o tornar (um pouco melhor). E neste Mundo dualista, os adeptos (como Sérgio Conceição fez questão de referir depois do FC Porto ter sido surpreendido em Vila do Conde) só querem mesmo saber de uma coisa.

Esqueçam, por isso, o dogma da atitude. A equipa pode dar tudo, naquele sentido mais da raça e do querer, como também do crer, que, ainda assim, o futebol arranjará maneira que ela perca. Aborde-se por isso o lance do 1.º golo do Rio-Ave no tal empate (e que o Maldini tão bem dissecou aqui) e veja-se, pelos olhos do adepto que sublinha o dar tudo a cada análise que faz que Casillas cumpre a regra de ouro (lembrem-se: pelos olhos de um adepto que sublinha o dar tudo) em não facilitar e não jogar perto da sua baliza. E, depois da perda de bola num meio-campo preparado para sair de forma curta, atente-se na abordagem de Pepe. Haverá mais dar tudo que aquilo? Ir a todas para as ganhar, abordar os duelos como tarzões, são dois chavões presentes na cultura da raça e do dar tudo que tão colorido dá às conversas de café. E, ainda assim, o FC Porto sofreu golo. Não por não dar tudo, não por não querer ganhar, mas porque, como é normal em futebol, abordou mal o(s) lance(s).

E se não é o dar tudo, são outros dogmas. Chutou longo e sofreu golo, deveria ter saído curto. Evitariar-se-ia assim, na mente dos dogmáticos, literais e fariseus do futebol, certos golos que deitaram por terra certos títulos. Não é carne, é peixe! e não é peixe, é carne! não é menos limitador que o dar tudo ou o jogar na raça que intelectualmente está menos cotado na facção mais estratégica do jogo. Isto porque outro dos golos que o FC Porto sofreu e que poderão também ser um highlight importante na revisão àquilo que a equipa de Sérgio Conceição fez, ou não fez, na presente época, foi precisamente o inverso em termos de escolha na abordagem. Ou seja, em vez de Casillas bater longo e não complicar, contra o Benfica o guardião espanhol preferiu sair curto. E não foi por isso que, numa sucessão de perdas de bola, o Benfica de Lage foi impedido de empatar no Dragão e partir, depois desse golo, para cima de um jogo que lhe poderá valer um campeonato.

FUTEBOL – Sergio Conceicao e Adeptos. Jogo Rio Ave – Porto, a contar para a 31 jornada da Liga NOS, realizado no Estadio dos Arcos, em Vila do Conde. Sexta, 26 de Abril de 2019 (ASF/VITOR GARCEZ) RIO AVE – PORTO 2018/2019



E ainda que a ilusão, e falha de análise, que é pensar que a abordagem certa a cada lance veio de um livro – e não do próprio jogo e momentos do mesmo – não seja o objectivo do texto, não seria certo fugir-lhe e não apontar certas incongruências na nossa (básica) leitura de jogo. Num jogo de tantas possibilidades o mais normal é cometerem-se erros, erros esses que são coloridos pelo resultado final como sendo – tal como o próprio resultado – bons ou maus, mais importantes ou menos importantes. E sendo que os adeptos só querem a vitória – e o resto pouco importa – que papel terá o treinador na união da equipa com uma energia que só serve no lado bom do jogo?

Tal como Jorge Jesus fez há uns anos (ele que foi o impulsionador da onda encarnada), Sérgio Conceição devolveu, totalmente, a equipa do FC Porto aos adeptos. Ao encarnar o espírito ser Porto como poucos haverá nesse Mundo azul-e-branco, Conceição sabia, e sabe, que essa energia e esse elo de ligação seriam fundamentais para uma época que iniciou com os dragões num impensável jejum de quatro anos. Mas essa, como ele também sabe, nunca seria possível sem o maior elo de ligação: as vitórias. Com elas, e com novo desfile pelos Aliados quatro anos depois, a paciência cresceu, e com ela a tolerância. Mas estar assente nessa energia, que é emprestada e não dada, tem um preço. E depois de aguentar ser massacrado (no resultado final da eliminatória) pelo Liverpool, já depois de ter perdido uma vantagem de sete pontos para o rival Benfica – consumada em pleno Estádio do Dragão – o volte-face que foi a cobrança desse empréstimo foi feito nos Arcos, com a equipa a ter de encarar com penitência o mesmo Tribunal que a carregou em ombros quando o resultado foi diferente. E que mais Sérgio Conceição poderia ter feito se não o acto de pagar a dívida oferecendo o corpo e mente dos jogadores como sacrifício?



Pela lógica não poderia, obviamente, sair pela porta-dos-fundos e esquecer a dívida para com aqueles que, ao longo de quase duas épocas não lhe falharam. Mas o que realmente terá de interessante aquele escabroso e surreal cenário, é a de que o FC Porto de Sérgio Conceição terá, finalmente, oportunidade de encontrar outra almofada se não aquela perseguição ofegante por títulos e notoriedade entre os seus. E que tem o FC Porto para lá do título de campeão nacional e da relação harmoniosa com os seus adeptos? É a pergunta de resposta mais difícil mas que terá de ser encontrada sob pena de não viver na areia movediça e condicional que é a de ganhar sempre ou ser engolido pelo exigente Dragão que não compreende que ganhar sempre, pura e simplesmente, não existe no futebol. Podendo descansar da exigência que lhe toldou o cérebro em momentos decisivos da época (contem as oportunidades desperdiçadas pelas finalizações constantes a 200km/h e o coração na boca de que tem que marcar a todo o custo) e encontrar, nesse desapêgo o seu melhor futebol, a sua melhor versão. E essa não se liga tanto ao corpo emocional, mas sim ao Reino das ideias e melhores decisões que, no FC Porto de Sérgio. foram suficientes para suplantar o Benfica de Rui Vitória mas não o de Lage. Assumir isso e partir para uma ideia de jogo mais dinâmica e criativa (sem falar aqui de abordagens curtas e longas), menos assente na emoção que está assente em conquistas e resultados foi o grande desafio da época e que o FC Porto falhou. Foi notório o peso de ter que ganhar a todo o custo, e isso, por mais evoluído, ou não, que seja o modelo, tem a sua influência em como os jogadores decidem dentro desse mesmo modelo. E são essas decisões que fazem o sucesso do mesmo. Querer ganhar a todo o custo sem um desapêgo emocional que permita clarividência para boas decisões (e principalmente finalizações e definições) foi construir uma casa pelo telhado. Foi construí-la na areia movediça assente na volatilidade dos resultados e na tentativa de os ganhar pela emoção. E como já estamos fartos de o dizer aqui: não é só cérebro por cima do físico. É identidade (aberta a mais) por cima de mente, mente por cima da emoção, e emoção vinda da boa ideia, a dar energia para trazer resultados ao físico. Só emoção e energia emprestada por adeptos voláteis é algo que vai dar ao cenário escabroso que uma boa equipa (ganhando ou perdendo a Liga o FC Porto é, com todos os seus defeitos e virtudes, uma boa equipa) teve de experienciar quando falhou às expectativas altamente irrealistas dos seus adeptos. E se a gasolina que esses lhe emprestaram foi altamente tentadora para a caminhada de Conceição, encontrar algo que mova a equipa sem ser um empréstimo com juros (como a necessidade de melhorar ainda mais, e mais, e mais, o seu futebol sem ter garantia de títulos) é o maior desafio da sua carreira de treinador.

4 Comentários

  1. A herança de Sérgio Conceição no Porto foi, e provávelmente é, o maior problema que ele teve na sua carreira de treinador. Herdou uma equipa que não vencia qualquer trofeu à 4 anos, herdou um plantel demotivado, herdou um plantel com menos qualidade comparativamente ao dos rivais, herdou uma equipa que não tinha sido escolhida por ele e foi campeão.

    Se pensarmos no investimento que o Porto teve nos últimos dois no seu plantel, dificilmente se pode dizer que o Porto podia ter dado mais. Sérgio não teve o prazer de poder escolher os jogadores que queria ou que complementavam melhor a sua ideia de jogo. Muitas vezes teve de pegar em jogadores que apenas pensavam em sair da equipa e fazer deles membros integrantes do plantel e até atores principais nestes dois anos.

    Claramente o treinador podia ter abordado as caracteristicas dos seus jogadores de forma diferente e explora-las de outra forma, mas acredito que, novamente, tendo em conta o curto investimento no plantel, Sérgio fez muito com aquilo que tinha. Pegou naquilo que conseguiu e expremeu ao máximo aproveitando assim as características mais fortes dos seus jogadores.

    Também sou apologista de um jogar mais inteligente mas muitas vezes se viu que jogadores altamente dotados intelectualemnte não “funcionam” em pleno na ideia de jogo que o treinador pretende. Também gostava que o Óliver fosse titular todos os jogos mas infelizmente não funciona a 100% no plano de jogo de Sérgio da mesma maneira que o Geraldes não funciona no Sporting.

    Acredito que o Sérgio enquanto treinador tem capacidade para dotar a equipa de outras características e de maior qualidade (como já demonstrou em certos momentos durante estas duas épocas) mas para isso precisa de se libertar de certos vícios “impostos” pelas caracteristicas de certos jogadores.

    Cumprimentos e votos de bom trabalho!

  2. O FCP do Conceição não é uma boa equipa, assim como o Benfica bicampeão do Vitórias também não era. Estou à vontade para dizer isto porque sempre foi a minha opinião, mesmo quando fizeram trinta e cinco vitórias seguidas ou quê lá.

    O texto é giro. Aquele pontapé do Casillas foi apenas a consequência de tudo o que o treinador lhes pede para fazer. Tu chamas bolas longas ou curtas, eu chamo-lhes bolas rápidas ou lentas. E o FCP, mesmo que o teu coração não permita enxergar as coisas, é uma equipa de bolas rápidas a toda a hora. A-toda-a-hora. Esteja o jogo como estiver. É uma equipa horrenda, é uma equipa família adams.

    Acontece que naquela noite em Vila do Conde a cabecinha dos atletas estava em fase de receios, de medos pela iminência de falhar em toda a linha. Portanto, bolas rápidas, sempre, sempre que o jogo está quente – como estava, porque o Rio Ave dava ares de querer discutir tudo até ao fim – até porque é isso que lhes pedem.

    Já no Dragão contra o Benfica a cabecinha deles dizia tudo ao contrário. Estava ganho, porque no Dragão mandam vocês e essas parvoíces todas, e porque o campeonato estava no papo depois daquele jogo. Aliás, o Maldini andava aqui em Dezembro a anunciar um bicampeão. Então e ainda por cima a ganhar logo de início – num golo patético pela ilegalidade monstruosa – o senhor Casillas resolveu tirar nabos da púcara e fazer banga com o Benfica. Na cabeça dos jogadores e dos adeptos vão sempre esmagar o Benfica. Com o resultado que sabemos. E com a reacção do Conceição que também sabemos. Porque não é aquilo que eles treinam.

    Sobre o campeonato, parece-me que ainda não acabou.

  3. Já reviro os olhos de cada vez que ouço algum colega adepto falar de “jogar à Porto”, “Mística” ou “Raça” juro que espumo um pouco da boca.
    Tenho de passar a ter este artigo como bookmark para essas ocasiões!

    Grande trabalho!

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