O holandês de White Hart Lane

Será agora bem mais pacífico aceitar que José Mourinho não foi o perfeito idiota que tantos julgaram ser aquando da sua passagem por Old Trafford. Ainda que alguns focos de resistência, baseados em tontos clichés, persistam em apontar-lhe falhas infantis, os resultados de Ole Gunnar Solskjaer ao comando dos red devils sugerem aquilo que foi aqui apontado aquando da saída de Mou do Teatro dos Sonhos. Um plantel completamente desajustado do standard criado pela Classe de 92, que a direcção manteve, irredutível, à revelia de um treinador que mais não tentou fazer do que proteger a equipa dos seus pontos fracos.

Previam-se catastróficos os resultados se Mourinho entendesse que o caminho era o de jogar a maior parte do tempo no meio-campo ofensivo. Dada a tremenda falta de compromisso, mentalidade vencedora e, não menos importante, qualidade da maioria dos jogadores para assumir um jogo mais ofensivo, José, como sempre, seguiu o caminho mais prático – ainda que isso lhe valesse o rótulo de incompetente, desfazado da realidade ou desactualizado.

Não tardaram os vampiros a alimentar-se de uma personagem que vende como poucos. São muitos aqueles, que no nosso futebol, continuam a sugar os resultados de outrém para proveito próprio. Não criam, não inventam, apenas ‘analisam’, partindo da crença de que uma ideia está certa e outra está errada. Mourinho que de 2002 a 2004 abriu caminho para que toda esta malta saísse de um buraco arqueológico, sofreu anos depois as consequências de um idealismo que não é mais do que filosófico ou até, se quisermos, de wishful thinking.

Mourinho, dizia, conquistou a Europa do futebol com um futebol de sonho (criado para primeiro conquistar um campeonato português que não se vence com autocarros), para depois ficar irremediavelmente marcado por uma final que matou pela transição ofensiva (depois de Carlos Alberto ter aberto a contagem em Gelsenkirchen). A partir daí ficou a recordação, para quem não mais se esquecerá do futebol tremendamente oleado do seu Porto que “descansava com bola”. Mas, seguindo-se a Inglaterra do kick n’ rush, pedia-se outro desígnio. E a inteligente observação do olho perspicaz do outrora Special One, concluiu que a falta de reverência britânica e a cultura do espectáculo lhe abririam alas para ganhar da mesma forma com que matou a final de 2004. Nenhum problema para ninguém. Porque venceu.

Esses [problemas] surgiriam depois, quando nasceu a Némesis. Como Mourinho fizera a Wenger (trazendo o novo que sucederia ao velho – age before beauty…) fez Guardiola a Mou, criando um monstro inultrapassável nas mentes dos analistas e que ainda hoje faz sombra ao próprio criador. De nada interessa que se tivesse Iniesta, Xavi, Messi ou Busi, Henry, Eto’o ou Villa, este, na cabeça dos românticos era agora o desígnio que teria de ser implementado em todo o lado, desde os escolinhas do Alcabideche aos séniores do Vila Flor. De nada interessava que Mou, fiel a um estilo bélico e fazendo a figura de mau da fita, tenha sido o único a oferecer alternativa. Pois nas mentes de quem funciona como um crítico de cinema do Ipsílon (não cria, não produz, apenas eleva algo criado por outrém a um estatuto inalcançável para poder fazer chacota de tudo o resto) nessas mentes, dizia, Mourinho nunca mais seria tido em conta. Não interessava o Inter campeão da Europa, o Real dos 100 pontos renascido para depois conquistar a Europa. Não interessava o Chelsea novamente campeão inglês, nem o United vencedor da Liga Europa. Muito ou pouco, não interessa. Porque Mou é agora julgado pelo factor estético, por algo idealista e fundamentalmente subjectivo. Por ser menos do que o que Pep criou há… 10 anos. E até Guardiola é agora julgado por isso.

Adiante, quão a borrifar-se para isso deve estar José Mourinho. Ele que, hoje mesmo, afirmou que são os jogadores e o contexto que definem como jogam as suas equipas. Mais atentos estivéssemos todos a isso e mais rápido se preveria o debacle deste United criado para David Moyes (que Mou tentou desfazer com libras que hoje valem um Pogba e que antes valiam um Carvalho, um Essien, um Drogba, um Robben…). Assim, jogará o Zé da Europa nos spurs como o fundamentalismo gosta. Dirão que parou, pensou e lhes deu razão. Afinal eles é que sabem disto. Se Mou vencer será o novo compincha, um buddy, um pal, a good bloke. Se não… será porque, ainda assim, teve pouco jogo-interior, não atingiu os 74% de posse, ou porque pausando a imagem os jogadores não ofereceram, em determinado momento, 6 ou 7 opções ao portador.

O treinador com o comando da Playstation não é o que Mourinho preconiza. Para se saber se Mourinho triunfará em White Hart Lane, perguntem primeiro a Delle, a Kane, a Erikson e aos demais como está a sua vontade de vencer. É que estes que estão em 14° são os mesmos que foram à final da Liga dos Campeões do ano passado. E não me parece que Pochetino tenha mudado a identidade ou oferecido menos soluçoes ao portador. A competitividade e transcendência próprias elevam a ideia colectiva. Sem essas nunca sairá do papel teórico para um grande palco físico uma ideia que seja. Poderá fazer furor em TV’s, em colunas de jornais, que descansem em cima do produto final que outros criaram. E Mourinho não é dos tais que se esconde atrás do trabalho dos outros. São anos e anos a tentar levar a ideia para o relvado. Outros, que o acusam de falta delas, escudam-se atrás da utopia, do futebol perfeito se certas manifestações do mesmo fossem irradiadas e outras elevadas à condição de hegemónicas. Onde é que já ouvimos isto?

14 Comentários

  1. Sim, tudo correto, mas nunca me esquecerei, porque me chocou, uma meia final europeia que podia ter dado final, frente ao atletivo de Madrid, em que o Chelsea de Mourinho aborda a segunda meia final, após empate a zeros em Madrid com 6 defesas. Citando-os, Ivanovic, Ashley Cole, Terry, azpilicueta, David Luiz e Gary Cahill. Nesse dia Mourinho morreu para mim. Não quis ganhar, garrotou a equipa e acabou por perder. Salvo erro até escreveram sobre esse jogo.

    • Vimos Mourinho cometer erros, mas não sofremos na pele as consequências dos mesmos. Ele sim, saberá que os cometeu (ainda ontem admitiu) e saber que não vai deixar de os cometer. Alguém morrer para alguém por causa de algo corrigível é, no mínimo, exagerado.

      • De acordo, erros todos cometem e continuarão a cometer. Erros que retiram identidade à equipa e que a afastam de maneira tão descarada da vitória não é frequente (pelo menos para mim) ver os melhores treinadores a cometer ainda que “justificado” como postura estratégica.

        • A estratégia não retira identidade à equipa. Não leste isso aqui, de certeza. Há muita coisa que retira identidade à equipa, mas há um nicho que defende que a identidade é tudo e, no entanto, perde-se tanta vez com facilidade. Parece-me antagónico, mas ok.

          Sinceramente, acho que as justificações são usadas mais para defender a identidade do que a estratégia. Ainda ontem ouvi num programa de TV que o Ajax perdeu com o Tottenham por renunciar à sua identidade. E eu ainda estou para perceber se o Ten Hag deu indicações lá para dentro para eles perderem a identidade…

          Já o Pochetino usou um estilo que o levou à Final da LC, e usa o mesmo para acabar no 14.o lugar da Premier. Agora pergunto-te eu: o que mudou dos spurs de uma época para a outra? Foi estratégia? Foi identidade? É que já enjoa. É como se as equipas jogassem sozinhas e perdessem de propósito porque não seguiram a escritura dos fariseus. Mas ok, morra-se com a ideia. Mais de metade desses que bradam identidade, lá dentro até com 11 trincos jogavam se isso os mantivesse nas boas graças.

          • O que li pode ter sido lido e mal interpretado. Não teimo. Sabes e já pensaste seguramente muito mais do que eu sobre o assunto. Cavaquinho no saco.

            Sobre o que mudou tenho palpites, e escrevi noutro post sobre este mesmo Tottenham, jogadores em fim de ciclo e a mês e meio de poderem decidir o próprio futuro.

          • Não respondo com o intuito de fazer alguém meter cavaquinhos no saco. Posso soar com um tom menos simpático porque muitas vezes leio esses argumentos e a conversa não sai do mesmo. Já vi que não é o caso e por isso desculpa a rispidez.

            Para mim o modelo do Tottenham é pouco mais que banal. Os erros que os levam a estar hoje no 14º lugar, em boa parte, já lá estavam. Este é para mim um caso em que a qualidade e a força anímica os levou a fazer um brilharete muito para lá de um modelo ou uma identidade (que não sendo má também não será de topo). Obviamente com alguns maus resultados a parte mental e emocional esgotou-se, o que leva os processos a perderem aquela faísca que elevava um modelo, repito, não mais que banal.

            Tudo me leva a crer que Mourinho, elevando a qualidade da ideia, terá tudo para fazer melhor do que foi feito. Até o facto de não poder comprar pode ajudar. Com estes tem de jogar como temos saudades de o ver jogar. Acredito que o possa fazer, até porque desta vez tem jogadores para isso. Depois, a parte mais importante: os jogadores estarem em sintonia e terem o mesmo desejo e crença na ideia. Tudo conjugado levará a uma boa etapa. Mas, atenção, é fácil um ponto destes falhar. Seja a ideia que o Mourinho leva (totalmente incógnita até ao momento) ou os jogadores estarem, digamos, virados para se transcenderem por essa visão. Veremos.

            Abraço

  2. De acordo em parte. Mas as críticas ao Mourinho não são todas erradas. O FCP e o primeiro Chelsea eram grandes equipas na forma como encaravam o jogo. É legítimo dizer que o sucesso do Inter acabou guiando o Mourinho para vertigem de jogar por uma bola como caminho para vencer. E atenção não estou nem falando de toda a bagagem de mind games que de novidade passaram a soar baforentos. Hoje para mim do ponto de vista de entendimento de futebol, o Jorge Jesus é o melhor treinador português ( atenção que já pensava isto antes do Flamengo). O JJ tem outros problemas que o tornam dificilmente vendável fora de portas como é óbvio

  3. Há dez anos que Mourinho não traz uma ideia de jeito para a relva. O resto é marketing, e a abstracção que dá de comer a tanta gente sob o signo da “vontade de vencer”.

    • “Há dez anos que Mourinho não traz uma ideia de jeito para a relva”

      Não faz mal. Temos as tuas. São sobre o signo ‘vontade de perder’?

      • Não estava à espera que o autor me respondesse, mas sim que interpretasse que para lá das análises que querem a todo o custo continuar a pôr Mourinho no top do futebol mundial, o futebol do sofá – o direito de ser adepto, digamos assim – ressente-se. Não posso torcer por um compatriota cujo objectivo é ter um estilo de jogo que muitas vezes é anti-competição.

  4. Excelente texto.

    Espero que Mourinho volte “a funcionar”. Esta num clube e num contexto, onde nao e “o topo”, e onde pode voltar a ser visto como aquele se propoe a atingir o proximo nivel, a unir a equipa e os adeptos na perseguicao do conto de fadas. Certamente que foi contratado com o designio de dar titulos, afinal os Spurs estao perto de ser um clube faminto. Nao tera as libras de outros tempos, que podem criar um expectativa que se vira contra ele, e precipitam a aura do falhanco total apos mais pequena falha.

    Eu vi Mourinho morrer aos meus olhos de “adepto de bom futebol”, vi o Real jogar com 3 trincos, um deles sendo o Pepe, vi o Chelsea com 6 defesas, como alguem ja referiu, e isso sao coisas que nao se esquecem facilmente. Vi o Man Utd, mesmo sem equilibrio ou qualidade suficiente no plantel, com Fellaini a 9.5 e Lukaku na frente, e uma organizacao que se resumia a pedir aos centrais, que mesmo sem serem pressionados, batessem na frente. Ha limites… Ele sabera o que fez de bem e de mal.

    Assim como “o vi morrer” aos meus olhos de espectador, espero agora ve-lo ressuscitar tambem, porque daria uma bela historia, e quem nao gosta duma historia de superacao?

    Desejo-lhe a melhor das sortes.

    • O problema é que o pessoal vê o Mourinho a ganhar a LC com o Porto. E depois vê o Pep a ganhar com o Barça. Apaixonam-se pelo estilo. Pausam o tempo, esquecem contingências, adversários, plantéis, condicionantes, reações individuais de cada jogador, condições financeiras, etc., etc, etc… é a panaceia para todos os males. É só repetir o que fizeram, não é? Fácil. Pena que eles não se tenham lembrado disso. Não o conseguindo… perderam identidade e a estratégia foi má.

      Ainda dizem que não há receitas instantâneas bem boas 🙂

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.


*