Vasco Seabra, sobre o seu jogo

Vasco Seabra abriu o (seu) jogo numa entrevista que se traduziu numa lição de conteúdo de um treinador verdadeiramente promissor, de quem se espera uma chegada à Liga para muito breve.

“Porque quando o scout quer ter muito sucesso, mas contrata um jogador que não tem nada a ver com aquilo que é a ideia de jogo do treinador, acaba por entrar em confronto. A ideia de jogo do treinador fica manca, a valorização do jogador não é a ideal, a valorização do clube também não é a ideal, porque não vai conseguir vender da mesma forma…”

“Porque nós podemos ter uma ideia espetacular, fantástica, mas a forma como a operacionalizamos e a forma como conseguimos que os nossos jogadores vão connosco para a luta e criem exigência neles mesmos todos os dias, para que essa ideia possa acontecer, é essencial.”

“Porque acho que a nossa genuinidade, como treinadores e como líderes, é importante. Porque não sou só eu o líder da equipa, há vários momentos em que são os treinadores assistentes a liderar a equipa, seja quando estão mais ligados à linha defensiva, ou mais ligados aos alas e aos apoios para poder receber e enquadrar…”

“Para te dar um exemplo muito claro: o nosso trabalho com a linha defensiva já existia, logo no primeiro ano em que chegámos à formação. A forma como queríamos que ficassem curtos, que preparassem os apoios para a profundidade, isso já existia. Contudo, neste momento, acho que esse pormenor é mais preenchido agora, no Mafra. Os nossos jogadores estão muito mais preparados para o encurtamento ser feito com muito mais rigor, a forma como controlamos o cruzamento é melhor e com mais pormenor do que na formação. Ou seja, nós tínhamos um claro comportamento de controlo de profundidade e controlo de basculação para chegada à pressão, assim como tínhamos de pressão e coberturas.”

“Por exemplo, no controlo de cruzamento não tínhamos tanto pormenor. A forma como a equipa sabia encurtar até um determinado momento e depois parar ou manter o controlo de profundidade, mesmo sob ameaça, modificou em relação ao que era antes na formação. Antes, sob ameaça, a nossa equipa retirava de imediato profundidade; neste momento, já depende do tipo de ameaça.”

“Depois também temos momentos de trabalho mais individual, mas isso também já fazíamos nos juniores: o tipo de receção que queríamos, a forma como queríamos que se posicionassem para bater a pressão para não terem que receber de costas e poderem orientar para a frente… Já tínhamos esse trabalho dentro do nosso contexto de jogo, que queríamos que fizessem em termos individuais.”

“Tudo aquilo que tem a ver com a forma como eu ajo perante os jogadores vai ser sempre diferente. Faço questão de lhes dizer isto para eles perceberem que vou tentar ser sempre coerente, frontal, genuíno e direto com eles.”

“Para te dar um exemplo de forma mais prática: se tens um ponta de lança que tem 30 anos e teve uma carreira toda a fazer golos habituado a jogar colado nos centrais, claramente de costas para a baliza, a servir de apoio frontal para a bola ir fora para depois haver cruzamentos e ele é muito forte no ataque aos cruzamentos na área… Tudo o que seja jogar descolado da linha defensiva, vir tocar, atrair entre linhas, no momento em que alguém se enquadra, pedir na profundidade, porque se nós queremos atrair com jogo interior, provavelmente ele terá de fazer mais ruturas em espaços de buracos mais fechados, e não na solicitação exterior para ele depois ir para a área… Com isto, ele vai retrair-se.”

“Acredito que, mesmo dentro do modelo, podes ter uma ou outra nuance em que podes aproveitar este jogador que é mais forte entre linhas, por exemplo, com a equipa a sentir que com este jogador entre linhas podemos combinar aqui mais dentro. Se é um outro que está ali, então se calhar é o ’10’ que fica ali e os teus alas se calhar é que vão penetrar em termos de profundidade. Procuramos que haja esta gestão interna mas também não te nego que vai haver uma altura em que provavelmente esse jogador vai acabar por perder espaço na equipa e vai ser ele a acabar por sair, porque o modelo vai sobrepor-se.”

“Acredito que, mesmo dentro do modelo, podes ter uma ou outra nuance em que podes aproveitar este jogador que é mais forte entre linhas, por exemplo, com a equipa a sentir que com este jogador entre linhas podemos combinar aqui mais dentro. Se é um outro que está ali, então se calhar é o ’10’ que fica ali e os teus alas se calhar é que vão penetrar em termos de profundidade. Procuramos que haja esta gestão interna mas também não te nego que vai haver uma altura em que provavelmente esse jogador vai acabar por perder espaço na equipa e vai ser ele a acabar por sair, porque o modelo vai sobrepor-se.”

“O modelo tem de se sobrepor porque o que acreditamos é que o nosso jogar é competente, tem de ser competente para ganhares, se não acreditares nisso…”

“O que nós procuramos com o nosso modelo, e não tenho problema nenhum em explicar-te isso e em falar sobre isso, é que haja versatilidade nas nossas ações. Procuramos que os nossos jogadores identifiquem que é importante a equipa sentir-se confortável na forma como transporta para a frente, mas também é importante olhar para aquilo que está a acontecer e sentir que os espaços são aquilo que nós mais valorizamos no jogo.”

“Têm de identificar os espaços. Se há um ponta que nos está a cortar a linha, está a obrigar a jogar para o outro central, e este central está a sentir uma pressão vinda de frente do interior adversário, então na segunda vez o que temos de ver? Temos de olhar para o espaço por fora do lateral.”

“O que procuramos quando treinamos é o seguinte: não estamos a passar-vos comportamentos automáticos, não queremos que o nosso jogo seja de Playstation, de quando este vai para aqui, o outro vai para ali e outro para acolá. Porque às vezes o jogo não te permite isso. Queremos que eles joguem o jogo e passamos muito essa mensagem aos jogadores: vocês tem de estar a olhar para o jogo e vivê-lo, porque isto é um jogo do gato e do rato, nós olhamos para o adversário e passamos aos jogadores as análises do adversário, mas nada nos garante que o adversário vai chegar ao jogo e não vai fazer uma coisa completamente diferente.”

“Porque sentimos a necessidade de ter um acrescento de dois médios ali para criar superioridade, porque queremos sair de forma limpa a partir de trás, então criamos mais superioridade para que exista esse conforto, para podermos então depois entrar nas costas da pressão adversária e aí depois podemos acelerar e chegar com mais gente na profundidade.”

“Eu não quero ter 80% de posse de bola e ter um remate à baliza. Não é esse o objetivo, o nosso objetivo é marcar golos na baliza do adversário. Agora, queremos é criar oportunidades de golo limpas. Se me perguntares se me dá um certo gozo que a bola entre por dentro e que consigamos jogar por dentro e se possível que ataquemos a baliza de imediato por dentro, sim, tanto melhor. Mas tenho de criar condições aos jogadores para que eles, dentro daquilo tudo que é o modelo, sentirem conforto, mas não posso deixar que o modelo não tenha a exponente máxima que pode ter só por causa de um jogador. Acho que podemos encontrar soluções dentro do modelo para que ele mantenha todas as características, mas também podemos acrescentar o máximo das qualidades dos jogadores a esse modelo.”

“Na minha ótica, temos de garantir que o modelo tenha apetrechos suficientes para superar os adversários e que não fique obsoleto ou retraído porque temos de nos adaptar a uma ou outra característica de um jogador. Isso não. Nós podemos adaptar uma ou outra característica de um jogador, se o modelo continuar a respeitar tudo aquilo que são os princípios e alcance máximo de dificuldades que queremos impor aos adversários.”

“Por isso, aquilo que houve no modelo foram acrescentos de pormenor. Mesmo durante a época fomos aumentando ligações e diferentes complexidades. Por exemplo, aquilo que te dizia de sairmos a três com um médio no meio, com um médio no corredor, com 2+2, com o ’10’ no corredor… Isso foram tudo acrescentos que foram sendo feitos, de forma a criar complexidade e dificuldade a quem nos defende.”

“Não tenho problemas em que venham jogadores a mais à primeira fase de construção, desde que tenhamos capacidade, depois, quando sairmos dessa pressão, sermos agressivos o suficiente para aproveitar e a seguir sermos ameaçadores para chegar à baliza adversária. A colocação dos dois médios tem mais a ver com isto, com nós sentirmos que queremos ter ainda mais a bola, para sairmos e acrescentarmos mais capacidade de chegada à frente, com jogadores que te atraem mais pressão e trazem mais soluções de construção.”

“Ainda assim, em alguns momentos, ou porque a relva está com mais dificuldades ou porque o jogo está mais difícil, eu percebo que guarda-redes é uma posição muito específica para que os obrigues a que efetivamente corram esse risco. Mas, por exemplo, quando estamos a construir mais baixo, já não é o nosso médio que entra a três, porque o nosso próprio guarda-redes diz-lhe: “Sai daqui que aqui jogo eu”. Precisamente porque, ali, mais baixo, os guarda-redes ainda se sentem mais confortáveis, porque se perdermos a bola ele ainda consegue defender a baliza.”

“Imagina: em termos de pressão, o central deles da direita gosta de conduzir e é forte a meter a bola entre linhas, já o central da esquerda, destro, vem para dentro e se for pressionado desta forma vai ter mais dificuldades. Então nós podemos, dentro da nossa pressão, ter uma nuance: no da direita pressiono na cara e condiciono que o jogo vá para o da esquerda e no da esquerda se calhar pressiono de forma circular porque é destro e vai ter dificuldades, porque não gosta de conduzir a bola.”

“Se tu eventualmente dizes aos teus jogadores: se nós pressionarmos o adversário, ele vai bater para a profundidade, mas se não o pressionarmos em cima, ele vai bater na mesma. Então para que te vais expor à frente? Se calhar podes dar um cheirinho com o teu ponta e abres espaço entre linhas mas eles não vão querer explorar isso.”

“E assim vou comprar uma guerra mais à frente. A nossa forma de estar no processo, no futebol e na vida é esta: não sermos mentirosos. Posso perder oportunidades, mas acredito que as oportunidades somos nós que as criamos, mediante aquilo que vamos fazendo.”

Entrevista concedida ao Expresso

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