Identidade artificial

A dualidade certo/errado está presente em todos os aspectos da vida comum e, como seria de esperar, o futebol extrapola, hiperboliza e vive dessa mesma dualidade. O fenómeno é mais um campo de batalha para duas facções, e a ideia de que certas coisas estão certas e outras erradas cria a necessidade de inventar realidades paralelas onde uns são donos e senhores da razão e outros seres inferiores e filhos de um deus menor. No entanto, se estivermos atentos, será ridículo assumir-se o conhecimento sobre um jogo influenciado por tantas decisões. Mais grave, é a necessidade de controlo sobre o Mundo em que vivemos (Deus nos livre e guarde do desconhecido) e a necessidade de validação pertencendo a uma hierarquia ou elite, que faz com que a sobranceria seja o tom a utilizar quando se comenta algo relacionado com futebol.

Assumir incertezas seria dar a parte fraca e estar errado é algo a evitar a todo o custo. Compreender o que se desconhece é impossível, daí a desvalorização de certos fenômenos para a hiperbolização de outros ser a toada geral. Conhecemos a ideia “se só tiveres um martelo verás todos os teus problemas como pregos” e a análise futebolística, dependendo da facção que a faz, escolhe os seus pregos com critério. Uns têm a panaceia, outros vivem na doença.

Obviamente, uma solução nunca testada viverá para sempre confortavelmente no coração de alguns. Daí que a invenção da identidade perfeita seja um problema que resolve vários outros para quem maquilha partes da sua vida escondendo outras. Ora, todos sabemos que, neste planeta, as identidades são afetadas por fenómenos exteriores à mesma. Sendo que a resposta à pergunta “quem sou?” depende largamente da pergunta “o que está a acontecer?” Digamos que ao invés do fluxo de energia correr positivamente pela identidade, mente, emoção e físico, a abertura à ideia de que algo está certo e algo está errado, abre caminho à hipótese de um fluxo reverso em que algo que acontece no físico afecta a emoção, moldando depois mente e identidade. E este é um cenário que, de momento, não somos capazes de evitar.

Contudo, fora do campo de ação, poderá sempre haver quem se comporta como um vendedor de carros usados. Dentro daquele stand o carro é perfeito e o fish and bait completa-se pela necessidade do comprador ter algo em que pode confiar. E se o carro não sair do stand, nunca será afectado por coisa alguma. Na mente do vendedor estará sempre perfeito e pronto para uma venda inflacionada. Os problemas nunca chegam na autoestrada imaginária e os consumos em cidade são nulos. Haja então algo em que podemos confiar.

Só que não. O Mundo ainda não é assim tão artificial, mesmo que a sensação de comentar com arrogância, autoridade e falsa certeza um assunto que nos ultrapassa nos dê uma sensação de poder, a identidade em campo será sempre testada e terá sempre de transcender-se sob pena de morte. Sim, o melhor caminho para uma identidade será sempre a morte da mesma para outra mais evoluída nascer. Por isso desconfiem de quem nunca testa as suas escapando ao sofrimento próprio escrutinando as dos outros. Como se em dualidade não existissem na própria identidade factores maus ou errados.

É comum ouvir-se que determinado resultado negativo sucedeu por perda ou ausência de identidade. Como se todas as equipas não a tivessem, a identidade passou a ser propriedade de alguns. Terá é que ter embutido o símbolo da realeza. Outra qualquer não o será. Algo ridículo quando a uma equipa à qual lhe deram o carimbo real perde ou não segura um resultado positivo por que se esqueceu da identidade. Mas é voltando à ideia que certos fenómenos físicos condicionam a identidade que se repara que essa perda de identidade não aconteceu, apenas se revelou outra parte da mesma condicionada que foi por factores externos. Ou isto é como o banco bom e o banco mau? Não é tudo o mesmo banco?

Assim, em futebol há demasiados factores externos que podem afetar uma identidade em crescimento e afectada pela dualidade (sim todas são, mesmo que vos digam que não), mas há um sobre todos os outros: o golo (ou a falta dele). Ou seja, uma decisão pouco evoluída para certo momento do jogo (como descer linhas quando se precisa de gente na frente, ou subi-las quando precisamos de ser compactos) pode acontecer por identidade ou por estratégia. São a mesmíssima coisa una e indivisível. Só que na explicação e análise pós-jogo cheira-se o vento e encontra-se o lado ‘melhor’. Conforme a vontade e a narrativa, será identidade se ganhar e estratégia se perder, ou vice-versa. Contudo, no campo isso pouco interessa. O futebol pouca apreciação tem pelos deuses terrenos e a bola é feita de átomos que são acima do bom e do mau. Nem num mundo perfeito adoptaríamos uma identidade imune e resistente a tudo pois esse não seria perfeito. Em que mundo é que uma identidade perfeita prevaleceria sobre todas as outras que também têm vontades próprias e desejos de experimentação? O caminho do bem e do mal, do certo e do errado é altamente pântanoso. Algumas vezes vão estar certos, outras vezes vão estar errados, aceite-se. Este é um mundo de experimentação, somente, sendo que o mesmo replica ideias singulares e colectivas sujeitas a uma avaliação neutra e sempre passíveis de melhoria e ajustamento. Tudo o que imobilize isto será artificial e com base na necessidade de validação que o ego humano sente.

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