O Chanceler e a Rainha (ou a história da Final de Air Mbemba)

Todos conhecemos pelo menos uma daquelas pessoas que se irrita com o mensageiro. Algo simples, como o notar de que um pedaço de salada lhe ficou preso entre os dentes, pode irritá-la profundamente. Ora, o lógico seria de que a pessoa agradecesse o aviso e pudesse proceder à simples ação de limpar os dentes. Mas há quem prefira não saber e quem prefira que ninguém saiba, o que equivale à (ir)realidade de viver numa dimensão paralela onde os nossos defeitos não fazem sombra a uma irreal expectativa – neste caso a de comer sem (Deus Nosso Senhor nos livre e guarde) ficar com os dentes sujos. Simples, já o dissemos, seria agradecer a mensagem e proceder à posterior higienização, mas a coisa pode ficar presa por detalhes surreais como a acusação e tentativa de demonstrar que o mensageiro também tem defeitos pois come de boca aberta, ressona quando dorme e uma vez, numa visita de estudo em 1997 não aguentou o xixi na fila para a casa-de-banho. Enquanto isso, o pedaço de salada ainda lá está…

FC Porto e Benfica foram e são, simultaneamente, os mensageiros e os irritados. E sem recuar muito, para não perdermos o fio à meada, poderemos facilmente reparar que o FC Porto, por exemplo, demorou épocas a retirar o enorme pedaço de salada que a saída de Vítor Pereira lhe deixou colado aos dentes da frente. Por seu turno, o Benfica aproveitou a falta de categoria e ambição que se seguiu para confecionar um tetra-banquete que, obviamente, lhe foi deixando os dentes sujos. No meio do feast apanham-se vícios e, com um copo a mais, surgem velhas ilusões como a rebuscada segura-me aí na cerveja, que eu vou formar uma equipa para ganhar a Liga dos Campeões!

Trabalho dos médios do FC Porto fundamental para impedir criação do Benfica. Otávio e Corona nas alas tanto garantiam equilíbrio na linha média como na defensiva. Aqui em 4x4x1



E tal tirada seria inofensiva se não houvesse mesmo quem acreditasse que o SL Benfica, jogando numa Liga periférica, pode fazer objectivo principal de ganhar uma competição que, por exemplo, Manchester City, Juventus, Paris Saint-Germain não podem prometer. É um enorme pedaço de carne putrefacta (para aí com 30 anos) que os benfiquistas não querem tirar, de tão bom que foi o banquete no passado. E o erro, amigos, nem está no querer ser o melhor dos melhores – algo legítimo para quem faz do futebol a vida. O erro está em ao mínimo sinal positivo achar que agora sim tudo vai ser como dantes e que os tempos de Borges Coutinho voltarão a colorir o Estádio da Luz. E isso leva-nos ao outro lado do Oceano Atlântico, ao ano de 1987, e a outro tipo de… cof, cof… futebol. Foi na NFL, nos Estados Unidos, que os jogadores profissionais da principal Liga de futebol (cof, cof) americano entraram em litígio com os donos dos clubes, paralisando a competição. Long story short, os donos dos Washington Redskins foram obrigados a construir uma equipa de rejeitados para regressarem à competição. Os scabs, como lhes chamaram, eram constituídos por projectos e promessas de jogadores que não deram certo. Um dos quarterbacks, por exemplo, cumpria pena prisional por posse de drogas e foi-lhe concedida uma licença provisional para poder jogar.

Os scabs foram imediatamente rejeitados pelos próprios adeptos e, sem surpresa, pelos jogadores profissionais e contratualmente ligados aos Washington Redskins. Mas, surpresa das surpresas, os Scabskins ganharam o primeiro jogo que disputaram. E o segundo. E finalmente o terceiro. E assim que soou o gongo, não do terceiro, não do segundo mas, do primeiro jogo, já os adeptos amavam loucamente os scabs virando costas aos jogadores que do outro lado da barricada lutavam por melhores condições num negócio que assenta neles.

Foram ao todo três jogos, sem qualquer derrota, que iniciaram uma temporada que culminaria (já com os antigos jogadores) na conquista do Super Bowl, com a maioria dos scabs a voltarem à sua vida mundana depois do 3.º jogo – incluíndo o quarterback que regressou à prisão. Ora a pergunta será, em que ponto é que isto aconteceu com o Benfica? Em que ponto é que um grupo de scabs conquistou os adeptos ao ponto de os próprios julgarem que os seus mais irreais desejos se veriam realizados por aquela equipa? E é inegável que aconteceu no período inicial com Bruno Lage. Ainda há um ano, por exemplo, o Benfica abriu a época a golear o eterno rival Sporting e ninguém via mácula em Bruno Lage, em Rafa, em Grimaldo, em RDT, Seferovic, em Vieira, ou no Projecto Seixal. Ninguém se atreveria a dizer o que hoje se diz desses e de outros. Por exemplo, se numa realidade paralela, Bruno Lage saísse depois dessa Supertaça para um grande Europeu, e Jorge Jesus regressasse, quantos jogadores lhe deixariam os adeptos transferir sem contestação?

Otávio (e Corona) com missão camaleónica entre tapar fora e dentro. Danilo e Uribe gigantes no miolo

Mas a época seguiu e os esqueletos saíram do armário, com o FC Porto a ser, desta vez (como foi o Benfica do tetra para o mesmo FC Porto) o mensageiro da desgraça. E por agora é ver o Benfica a estrabuchar com os defeitos do Campeão Nacional, vencedor da Taça de Portugal e finalista da Taça da Liga, enquanto lava os dentes com uma escova especial que comprou no Brasil. O campeão é feio, chato e cheira mal, dizem. Até os seus atributos são maus, porque força física, mental e emocional é coisa do diabo e estar sempre por cima do jogo, mesmo reduzido a dez e a oscilar entre o 6x2x1, o 5x3x1 e o 4x4x1 de forma perfeita conforme o jogo pedia, é rudimentar. Controlar pelo ar, pelo chão, procurar profundidade ou ganhar segundas bolas, são coisas que não interessam a um futebol evoluído onde tudo a menos que o Barcelona de Pep Guardiola (incluíndo o seu City) é mau. Tudo o que não forem anos e anos de preparação para um jogo de posse, com jogadores escolhidos a dedo para tal, é do dêmo, e deve ser destratado como um não futebol.

Ninguém, nos dias que correm, se atreveria a dizer que uma mulher de cabelo rapado (ou até careca, porque é uma condição que também pode assolar as mulheres) não é uma mulher. Mas o jogo do FC Porto (porque, surpresa das surpresas, surge abaixo na hierarquia liderada por uma equipa perfeita) não é futebol. E isto, amigos, é uma falácia das gigantes e que só serve o propósito de distrair os adeptos da realidade que a evolução do futebol levou a que os blocos baixos e o alto detalhe defensivo (como aquele que o FC Porto demonstrou em Coimbra, ou o Benfica em Turim na meia-final da Liga Europa) pudessem contrapôr um jogo de posse também ele claramente mais evoluído. E o FC Porto como equipa que tem como uma das armas evitar aglomerados defensivos à sua frente, deixando o adversário subir e jogando nas suas costas) não é futebol. Futebol é ter sempre 11 jogadores à entrada da área e tentar entrar pelo meio deles às tabelas. É a única coisa que é futebol. Até porque é fácil e tem dado resultado a Pep Guardiola, por exemplo, que desde que deixou o melhor equipa de sempre (como se isto fosse possível de avaliar ou como se o próprio se importasse com a distinção) foi eliminado da Liga dos Campeões sempre por blocos baixos que aproveitaram o seu erro. Culpa dos adversários, certamente, que não deveriam mostrar assim ao Mundo o pedaço de salada que também Pep tem nos dentes.

FC Porto antes da expulsão de Luis Diaz, com bastantes opções em organização ofensiva num desenho com bastantes apoios para ligar, atrair, desposicionar. Ainda assim a maior valia que deu maior controle na 1ª parte foi a reação à perda. To pass the ball, you have to take it



Deus nos livre também das bolas paradas. O outrora great equalizer e peça importante em desfechos inesperados que fazem apaixonar ainda mais adeptos pelo jogo, é para amaldiçoar e levar como coisa imperfeita e de quem não sabe jogar de outra maneira. É aliás um detalhe mínimo porque o Benfica tem eficácia a roçar o 0% seja a defendê-las, seja a cobrá-las. E que jeito não daria a uma equipa que desde o jogo que o FC Porto venceu na Luz (tapando os espaços que Lage utilizava para tornar o seu jogo fluido e perigosíssimo) entrou em crise emocional e existencial. Algo que se comprova nas bolas paradas defensivas de uma Final, e na incapacidade, e falta de velocidade com bola, para apanhar as áreas cinzentas do 6x2x1 que o Porto formava junto à sua área, e que oscilando com trabalho dos alas iam tendo tempo de tapar por fora e por dentro os espaços onde o Benfica pretendia jogar. Noutra perspectiva seria visto como genial. Mas como é o mensageiro, há que lhe apontar defeitos para se relativizarem ou suprimirem os deles.

2 Comentários

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.


*