Ponto reforçado

Já há muito que por aqui elogiamos as organizações defensivas que, com o passar dos anos, foram sendo capazes de evoluir para níveis quase impossíveis de ocupação de espaços. Isto porque às linhas defensivas adiantadas as organizações ofensivas responderam com a procura da profundidade. Investidas às quais as organizações defensivas responderam com indicadores, ou triggers, mais evoluídos para controlar espaço atrás ou à frente. E dizemos à frente porque o controle do espaço atrás abre, obviamente, espaços à frente. Espaços esses hoje tão vulgarmente conhecidos como espaços entrelinhas. Assim, as organizações vão tentando cumprir desideratos impossíveis, como controlar isso tudo e mais um par de botas. Porém, mesmo com isso tudo, chega um momento em que temos de retirar o itálico à palavra impossíveis. Fica virtualmente impossível juntar o meio-campo à linha defensiva e tentar sair com a fluidez necessária para ganhar um jogo atacando. Mais a mais quando o adversário que se tem pela frente surgiu da mente do criador e assolador de organizações defensivas. E tudo o que elas evoluíram nos últimos anos foi para servir de antídoto às suas ideias.



E Sérgio Conceição, tendo os cityzens de Pep Guardiola pela frente, apostou em reforçar a linha defensiva (entrada de Diogo Leite para se juntar a Sarr e Mbemba, com Manafá e Zaidu nos corredores) e juntar-lhe um meio-campo que funcionou como prótese a essa mesma linha. E ainda que o FC Porto fosse capaz de controlar muito do que o City criava, ficou impossível que, primeiro, esse controle fosse total e, segundo, que esse controle se transformasse em saídas e ataques perigosos. Porque as saídas partiriam sempre de zonas recuadas e porque o Manchester City foi enorme na reação à perda. Foi assim uma empreitada de difícil conclusão para os azuis-e-brancos que, neste cenário, teriam de esperar uma noite desinspirada dos de Manchester para saírem incólumes. Algo que acabou por acontecer, mas não sem mácula e susto. Marchesín acabou por se agigantar, mas não sem ver Sterling ser incrivelmente bem sucedido a iludir a última linha dos portistas. Raheem foi, de facto, gigante na hora de agredir a linha com entradas, facto que pode ser comprovado aos 58 (quando deixou Zaidu nas covas) e aos 69 minutos (quando com um timing de entrada perfeito consegue encontrar espaço para a melhor ocasião de golo da noite, se exceptuarmos o golo anulado a Gabriel Jesus).

Quando o City não viu a linha de cinco como pecado, e quando o FC Porto foi mais igual àquilo que o caracteriza e forçou os cityzens a adoptarem por momentos o mesmo sistema



São assim, tempos estranhos estes em que a maior parte das análises que nos chegam têm pouco, ou nada a ver, com as que se têm de fazer no futebol real. Hoje, por hoje, nas Televisões e colunas de opinião, o mesmo sistema que corroeu igrejas, instituições e religiões é bradado aos céus e sem impossíveis. Se para os crentes a ideia de um deus autoritário, castigador e com mão-de-ferro os assola, deixando-os sem qualquer tipo de amor-próprio, a ideia de um futebol perfeito que ataque à Barcelona e defenda à Milan de Sacchi, criando narrativas de teletransporte à Dragon Ball Z entre ataque e defesa, deixa os treinadores com desideratos impossíveis de cumprir. Desideratos esses só possíveis no campo da teoria, da ilusão e da banha da cobra, de quem nunca pisou um relvado para tentar materializar uma ideia que fosse. Atente-se quando, aos 21 minutos, o FC Porto se esticou no campo para conseguir a sua melhor (e talvez única) jogada do encontro. Repare-se no que se passou depois, com o City a ter também a sua melhor oportunidade da primeira metade. O resultadismo é assim essencial para um treinador que, aos primeiros desaires, vai ser sempre chamado à cruz do impossível e da perfeição, e da ilusão do teletransporte que é tapar o seu espaço entrelinhas ao mesmo tempo que explora o do adversário. Fica então a questão para quem se preocupa com futebol: se toda a gente cumprisse um desiderato que parece tão fácil no Twitter, que espaços entrelinhas haveria para encontrar? E se toda a gente, e todas as equipas tivessem em mente ter toda a bola possível, que paradigma 74 seria possível de existir?

FC Porto com posicionamentos mais habituais. Jogada daria lançamento lateral que forçaria Ederson a boa defesa. No seguimento o City descobre um desequilíbrio que aconteceria mais vezes caso o FC Porto adoptasse a sua matriz mais habitual. O resultado ficaria 0-0 se assim acontecesse?

Sérgio escolheu um lado. O da possibilidade remota de travar o City, ocupando-lhes os espaços preferidos e abdicando de atacar (não porque não quisesse e não tivesse as unidades na frente à espera disso, mas porque o City foi incrivel na reação à perda). O mesmo Sérgio que viu, há quase dois anos, o seu Porto colocar em sentido o Liverpool, criando, criando e criando sem conseguir marcar, para depois sofrer à primeira investida dos de Klopp. Resultado que ficou para a história 1-4. Ontem, resultado que ficou para a história: 0-0 com qualificação para os oitavos. Podia sempre ser outro quando se tem pela frente o Manchester City, mas foi este retirando-se daí as ideias que mais vos convierem para tentarem tornar real a vossa ideia. Mas essa, alertamos, só será real quando estiverem no campo a tentarem expô-la, tranzendo-a à realidade, sentindo todos os obstáculos a esse desiderato. Sim, a ideia de Sérgio foi real, foi prática. Existiu. A dos analistas, cronistas, armados ao pingarelho (incluíndo este que vos escreve) não passa de teoria. Não que quem não esteja lá não possa falar de futebol, e não possa saber algo sobre o assunto. Mas não estando lá, no jogo que comenta e analisa, exigir-se-ia mais tolerância e menos emproamento e verdade absoluta.

Seguimento da jogada anterior, com o desequilíbrio bem patente que quase custou a clean sheet aos dragões


10 Comentários

  1. Excelente artigo Laudrup,

    Sou treinador de uma equipa que joga numa divisão amadora na Suíça e concordo 100% com o que está escrito. O trabalho de Sergio é notável mas nunca vai colher os elogios do maior número porque é preciso ter um mínimo de noção tática para apreciar, ou pelo menos reconhecer a habilidade tática que uma dinâmica como a apresentada pelo Porto frente ao City exige. Não sou adepto do jogo do Porto e estou convicto de que este modelo só funciona bem contra equipas que gostam de tomar a iniciativa do jogo, pelo que na liga portuguêsa a maioria dos jogos são difíceis para o Porto, por outro lado , os jogos contra equipas como o Braga, Boavista e Benfica, são mais de grau de dificuldade menor. É minha humilde opinião.

    • Olá, Fábio 🙂

      Concordamos, embora o Porto na Liga tenha uma proposta diferente. A primazia dada ao trabalho defensivo está sempre lá, até nas características dos jogadores, e talvez isso possa fazer travar, de alguma maneira, o processo ofensivo.

      Para mim é evidente que Sérgio Conceição se preocupa em arranjar soluções para todo o tipo de jogos, sejam ofensivas ou defensivas. Ainda ontem podia ter jogado em 541 mas preferiu o 532. Pode parecer igual mas não é. Foi a pensar nos momentos ofensivos que fez essa escolha.

      Grande abraço e tudo de bom aí na Suíça ??

  2. Um bom post, onde gostaria de reforçar este trecho: “Sim, a ideia de Sérgio foi real, foi prática. Existiu. A dos analistas, cronistas, armados ao pingarelho (incluíndo este que vos escreve) não passa de teoria.”. Qualquer herói que ache que o Sérgio deveria ter encarado na sua forma natural, não dando primazia ao momento defensivo, não pode estar a ver a realidade destes dois clubes em termos futebolísticos. Mais: eu também ficaria frustrado se não conseguisse ganhar o jogo com o plantel do City.

  3. Boa noite,

    Excelente texto.

    Porto com muitas dificuldades e mesmo com muita gente a defender, permitiu várias oportunidades claras ao City (em 10 jogos seria este a sorrir…talvez).

    Muitas destas diculdades, em proporção bem menor, já as teve na segunda parte do santa clara. Mais uma vez, com muita gente atrás, com muito tempo de jogo com 11 jogadores dentro do seu meio campo.

    Continuo com muitas dúvidas sobre a competência deste Porto a defender. Nem sempre a solidariedade, a quantidade, resolvem.

    O porto tem sido sofrível no campeonato português, o “mas ganha” um dia poderá deixar de existir.

    Aceitemos este tipo de jogo (que tem em muitos aspectos comportamentos importantes do jogo), não aceitemos a treta e a mania da perseguição que vem anexada, mas acima disso, Valorizemos aquilo que fez e criou a paixão por este desporto.

    Cumprimentos

    • Boas, Zidane 🙂

      Discordamos que é só quantidade e solidariedade. Lembras bem o Santa Clara, onde a quantidade de jogos também pesou, mas podemos lembrar o Burnley e a forma como se apresentou contra o City, e a forma como sofreu os golos.

      Ninguém vai escolher paixão em detrimento de resultados. Esta era a forma que podia dar mais chances de sucesso ao Porto neste jogo. E mesmo assim a percentagem seria sempre relativa ou reduzida. Uma das coisas que me custa a entender é que o estilo posse e controle absoluto se exige hoje a todas as equipas. Mas se formos honestos só uma o pode ter. O que é que deve fazer a outra: abrir uma via-rápida e deixar marcar a equipa que tem mais paixão pelo jogo?

      Falhasse o city na reação à perda e irias ver o Porto a sair e a ter alguns momentos de ataque rápido ou momentos mais longos de org of. Mas, avisados, foram gigantes na reação e engoliram completamente uma equipa de outra divisão. Diz muito da forma como encararam o jogo, como mostram as dificuldades na hora de finalizar e as respectivas flashes no final do jogo. Muito empenhados e muito nervosos, sabendo que podiam muito bem perder no Dragão se facilitassem. Acabaram por fazer o melhor jogo que lhes vi nesta época e, sim, em dez jogando assim ganhariam a maioria – ao Porto e a 90% das equipas europeias.

      É o que acho. Só isso. Não pretendo ser um guru ou um profeta da coisa, ou ver sequer a minha opinião validada ou reconhecida. Nem vou estar a forçar aqui para que isso aconteça. Vejo o jogo, escrevo sobre ele e admito que me escape muita coisa. Depois, temos direito a visões diferentes. Mas muito do que se diz aqui (exceptuando questão estéticas) está no texto.

  4. Proposta e registo sem autoridade de saber fazer. Queremos jogar assim, “só” podemos jogar assim. Mas sem segurança e muita concessão e imprecisão.

    • Boas, Blue

      Não dará essa sensação porque do outro lado estava o City? O Porto faz coisas extremamente evoluídas a defender. Do melhor que se vê na Europa a nível do posicionamento e momentos para activar determinado comportamento. Obviamente passando 90% do tempo aí, é impossível que a coisa saia perfeita. O momento com bola foi o momento negativo para o Porto. Já foi aqui referido porquê.

      Podemos comparar com o jogo do etihad, onde o city estando vários furos abaixo não conseguiu criar metade em org of.

  5. Eu aplaudo o Conceição, é verdadeiramente meritório o que tem feito nestes anos, ao catapultar o valor individual dos seus jogadores.

    Mas existem outras formas de tentar conquistar pontos. Recuso-me a pensar que este é o fado das equipas portuguesas, tem que haver sempre alternativas. Eu bem vi o SCP no Bernabéu…

    • Boas, Rafael.

      Não acho que seja o fado das equipas portuguesas. Referes o jogo do bernabeu mas não são situações comparáveis. Basta ver que no etihad o Porto saiu e criou muito mais. Não vejo as coisas de forma ‘preto ou branco’. O empenho defensivo do city – especialmente na reação à perda – engoliu o Porto. Se depois aí tu escolhes dar-te à morte e tentar jogar o jogo onde eles são os melhores, é escolha tua.

      Não há anjos e demónios no futebol. Como não há 2 jogos iguais e estratégias que funcionem sempre. O Porto não jogou assim contra o Marselha e olympiakos, por exemplo. Mas jogou como muita gente aqui defende contra o marítimo. Em que ficamos?

      • Claro que são situações comparáveis. Ainda bem que o Porto jogou assim no Etihad, devemos sempre valorizar esse tipo de abordagem.

        Se defendemos que “o resultadismo é essencial para o treinador”, então aprofundemos as múltiplas possibilidades que eles têm de chegar a outros resultados (ou aos mesmos, mas com outras formas de jogar). Não é uma crítica ao que escreveu, ou à postura do SC neste jogo em particular. É um desabafo para com o nevoeiro que parece cobrir as tais análises e crónicas que aplaudem determinadas formas de jogar e estratégias contra as equipas dos orçamentos gigantescos.

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