Eu passo. Tu passas. Ele marca.

Guardiola e Klopp

Arte, ciência… ou ambas? Discutir se o “desporto rei” é hipónimo de um destes é embarcar num rio cujo fim desconhecemos. Ao filosofar sobre o assunto, e partindo do princípio que o futebol é uma arte pois todos nós fazemos juízos de ordem estética acerca do mesmo – “nota artística”, diz-lhe alguma coisa? -, talvez tenhamos que distinguir dois tipos de apreciações: o belo e o feio, o bom e o mau. Confesso que não gosto do Pulp Fiction de Tarantino, e nem acho Mona Lisa de DaVinci tão encantadora assim, mas isso não me impede de afirmar que ambas as obras possuem um valor artístico inigualável. Pelos vistos, não foi isso que sucedeu com a arte do futebol nos últimos 10 anos, refém de algumas “verdades absolutas”…

Já todo o mundo havia pincelado as suas defesas com pormenores zonais de Sacchi, quando Gian Pero Gasperini trouxe de volta à ribalta a marcação individual. Conceito sombrio, tenebroso, espezinhado por (pseudo) especialistas, rotulado de “antiquado” e, pasme-se, “inútil”! Como ousaram tal? Um quadro de cores garridas, que Gasperini tratou de demonstrar ao futebol que também nele se poderia ver o bom – se é belo ou não, fica ao critério de cada um. É precisamente isto que podemos aplicar à chamada (valorização da) posse de bola.

Bola só há uma. Facto que, pela sua irrefutabilidade, tantas vezes serve de argumento àqueles que defendem que o jogo só é belo e bom quando a equipa circula a bola com fluidez, mesmo que, por vezes, sem progressão. Tão verdade quanto ter a bola nos permitir marcar e não sofrer, pese embora esta posse seja, muitas das vezes – e cada vez mais! – sinónimo de uma construção lenta, rendilhada num sem número de passes inconsequentes.

No entanto, como o futebol não é nada mais que duas culturas (ideias) em confronto, a partir do momento que algum tirano derruba uma hegemonia instaurada, terá consigo milhares de seguidores por esse mundo fora. E foi precisamente isso que Klopp, talvez inspirado nos Beatles, fez ao iniciar a era do futebol rock n’roll em Liverpool, colocando rapidamente alguns dos mitos das (apelidadas por si) orquestras em cheque. Chavões perpetuados no tempo do Barcelona de Guardiola passaram, então, a ser postos em causa.

Sim, o passe curto ainda é mais fácil que o passe longo, mas o passe longo, pese embora a maior probabilidade de erro, dará tempo à equipa de subir linhas e de ficar com a segunda bola mais à frente. Além disso, será mais fácil errar um mero passe longo que nos pode deixar na cara do golo, ou uma corrente de 50 passes curtos cujo objetivo será precisamente o mesmo?

Também é verdade que o meínho é um exercício rico, mas o excesso de situações sem orientação podem viciar a equipa num jogo sem progressão, onde o passe para trás e para o lado é constante e o reconhecimento de situações onde é possível acelerar dá lugar ao desperdício de oportunidades para uma chegada à frente, previsibilidade em demasia e lentidão de processos. Arrisco até a dizer que o próprio Pep ficaria desiludido ao saber que muitos de nós interpretaram mal a sua ideia, e confundimos aquilo que deve ser um meio (a posse) com o fim (golo).

É óbvio que o jogo se domina com bola, pois a redondinha dita quem ataca e quem defende. Ao invés, controlar um jogo significa neutralizar as investidas do adversário, tornar os seus ataques estéreis e desviá-lo do objetivo número um: o golo. Algo que, quem não é controlado, poderá estar em condições de o fazer, pelo menos num plano teórico. Porque enquanto eu passo e tu passas, eles marcam, e isso é o que realmente importa.

Let Manchester City take the ball home as I take the three points.

José Mourinho, após o Tottenham 2-0 Manchester City

Contrariamente ao que muitos pensam, o grande impulsionador do futebol apoiado do séc. XXI odeia o conceito de tiki-taka – ele próprio o confessou num dos livros de Perarnau. A capacidade adaptativa de Pep ao contexto já havia ficado bem patente aquando da sua ida para os bávaros de München. Contudo, o expoente máximo da forma criativa como contraria os seus rivais reside no pé esquerdo de Ederson. E como a manta não cobre a cama toda, quem se atreve agora a pressionar com o bloco todo à saída de bola dos citizens?

Foi o Liverpool de Klopp que abriu os horizontes de todos os treinadores do planeta, ao demonstrar que o ataque rápido e o contra-ataque são, nesta nova era, bem mais eficazes que o ataque posicional, como forma de agredir as cada vez mais robustas organizações defensivas. Não podemos colocar em causa o que de positivo nos trouxe o Barcelona de Guardiola, um dos maiores legados ideológicos da história do futebol, mas veio iluminar outros caminhos. Calculismo ou velocidade, segurança ou adrenalina – porque só nós sabemos aquilo que nos é belo, mas será a concretização da ideia na prática que nos dirá se esse nosso futebol é bom ou mau, algo que vai muito para além do gosto pessoal de cada um.
E tu, com que cores pintarás o teu quadro?

Sobre Yaya Touré 36 artigos
Amante do treino. Pensador do jogo. 💡

3 Comentários

  1. Epá às vezes na tentativa de fazer uns jogos de palavras e tal e também, já agora, de meter alguma aparente sabedoria, pode levar-nos para caminhos complicados.

    Prezado Yaya, antes de debatermos se futebol é ou não é arte, é preciso definir “o que é arte?”. Caso contrário andamos a chover no molhado. Essa ideia de que o futebol é arte porque “todos nós fazemos juízos de ordem estética acerca do mesmo” não me convenceu minimamente, achei até uma ideia de certa forma pateta.

    Quer dizer que se todos dissermos que o céu é vermelho, então significa que talvez seja mesmo vermelho? Não sei até que ponto isto será viável.

    Do mesmo modo não me parece que a Mona Lisa seja classificada na história da arte como “encantadora”. Aquele rosto é apenas um entre muitos rostos da história da arte, até cartoonistas talentosos têm rostos com traços mais bonitos e encantadores, se calhar. A grande força daquela obra incrível, na minha opinião, é a complexidade. Sim, os enigmas. A expressão impenetrável, a profundidade das paisagens e da perspectiva, dos conteúdos que estão em segundo e terceiro plano. O que a composição não mostra declaradamente mas que deixa abrir espaço para cada um imaginar ou interpretar. Repare Yaya, até hoje não se consegue deslindar perfeitamente a expressão da senhora, está a rir, a chorar, a cara dela era mesmo assim? Mas também não interessa para nada, são três perguntas sem grande importância.

    É esta indefinição aparente que dá força àquele quadro, na minha opinião. No fundo, é o que o Guardiola e os melhores treinadores fazem: têm uma ideia mas depois, no campo, isto pode ter várias representações e caminhos para atingir o belo e enganar o adversário. O belo nunca é indiscutível, pelo contrário, é motivo de contradição, discórdia, deserção, debate. É por isso que estas reflexões são tão ultrapassadas quanto o homem-a-homem.

    Dito isto, a definição que mais aprecio sobre “o que é arte?” é esta: arte é tudo aquilo que o homem faz. Portanto, até cagar é (ou pode ser) arte. Claro que futebol é arte. Bem como o basquetebol, ténis, bodyboard, badminton e os souvenirs das Caldas. Ou o bacalhau-com-natas. Ou a ponte Vasco da Gama.

    • Olá Pelé,

      É um caminho complicado, tão complicado que ainda hoje há discórdia sobre se o futebol é uma arte, uma ciência ou ambas. A definição de arte também ela é ambígua, mas foi feita uma pesquisa antes da redação do artigo, porque escrever para o LE é uma grande responsabilidade e não fazemos nada que não seja sustentado. E, de facto, existe muita gente que confunde o “não gosto” (de uma determinada ideia de jogo) com o “não é bom”. Penso que a sua capacidade intelectual permite-lhe atingir onde quero chegar. Mas fico feliz por 100% do seu comentário se cingir a uma crítica sobre a forma como escrevo, e não como analiso o futebol!

      Um grande abraço,
      Yaya

  2. Belíssimo artigo, a tocar no ponto fulcral. Infelizmente, hoje em dia, todas as equipas querem jogar da mesma forma, atacar da mesma forma, defender da mesma forma. Mesmo que não tenham os jogadores ideais para tal. O futebol tornou-se demasiado igual e robotizado. O clássico número 10 foi extinto há uns anos. Agora, aos poucos, estão a tentar extinguir o extremo de corredor, de finta desconcertante, de linha, de desequilíbrio no 1×1. Agora, o extremo é para andar enfiado lá no meio, dizem que para jogar “entre linhas”. Isto numa era em que, quem defende, usa e abusa da sobrepovoação da zona central. A linha passou a ser só dos laterais. Sinto falta do futebol de ideologias várias. Inglaterra, Itália, Alemanha, etc.. tinham ideias diferentes. Fossem boas ou más. Era o tal quadro de cores diferentes. Hoje, vemos um quadro com cores absolutamente iguais, mas pintado com pincéis diferentes. Vemos, por exemplo, um Man City x Borussia Dortmund e as ideias são idênticas, só mudam os executantes.

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