Shit Happens vol.1: O Poder do Positivismo

Funcionamos em reação. Não nos damos conta, mas, sim, funcionamos. Funcionamos com um mecanismo embutido que reage a certos fenómenos externos. E, mesmo sem nos darmos conta, passamos a vida a tentar evitar que certas coisas aconteçam. E ao contrário do que se possa pensar, nem sempre o fazemos para evitar que essas mesmas coisas aconteçam. Fazemo-lo também para evitar a nossa reação a essas coisas. Contudo, seja por medo à coisa, seja por medo da nossa reação à coisa, temos um sentido de aranha instalado que despoleta um sentimento negativo quando essas coisas estão perto de acontecer. Daí termos desenvolvido outro mecanismo para lidar com possibilidades que nos desagradam, aquelas que vão criar em nós reações extremamente adversas. Falando disto, espero que seja comum a imagem daquele gajo de headphones que recita frases ao espelho: eu sou bom! sou boa pessoa! sou puro! sou forte!

É o positivismo, senhores. Trata-se não de deixar as coisas fluírem mas de as tentar controlar por via mental, ao ponto de só coisas boas acontecerem (muito para evitarmos ter de lidar com a nossa reação às coisas más). O positivismo parte do pressuposto que temos, pelo menos alguma, influência no que criamos e no que nos acontece. E um dos pontos fortes da teoria (chamemos-lhe assim) é de que, realmente, uma pessoa geralmente positiva consegue funcionar melhor do que uma pessoa colorida por traços negativos. Sendo que as doenças mentais não são uma moda, nem uma superstição, e afectam de sobremaneira as nossas vidas, fica fácil percebermos os efeitos na mente provocados por uma visão extremamente negativa das coisas. E assim, dêmos a mão à palmatória, o positivismo terá o condão (pelo menos temporariamente) dar um boost de esperança, de fé, de que realmente se pode ter algum controle num Mundo altamente caótico.

Mas o problema é esse, mesmo esse. O Mundo é altamente caótico e engloba as vontades, e o livre-arbítrio, de sete biliões de almas, sendo que a maioria delas passa a vida a pensar em si mesma. E mesmo quando pensa nos outros, está (ainda que não pareça) a pensar em si mesma. Para evitar reações de desgosto ou de dor, um humano é bem capaz de ajudar outro, vejam lá. É capaz até de se tornar um filantropo para se sentir melhor consigo próprio. Nisto, com tanta mente a tentar usufruir do seu livre-arbítrio pensando somente em si própria, torna-se impossível que coisas más, coisas negativas, não aconteçam. E mesmo que pudéssemos aperfeiçoar-nos ao ponto de só criarmos coisas positivas, ninguém nos garante que um maluco qualquer não nos enfiasse um balázio pela cabeça adentro.

Adiante, shit happens. E assim sendo o positivismo que, embora não pareça, preenche a mente de biliões de pessoas neste mundo (basta olharmos para as bancadas de uma Final do Campeonato do Mundo com resultado renhido) não resulta. E não resulta porque o Mundo é demasiado imprevisível, demasiado caótico e com tantas vontades próprias, que é impossível que não aconteça algo que despolete uma reação negativa da nossa parte. Assim sendo, ficamos então à mercê do inevitável desfecho que nos condene? Sim. E porque não?

Funcionando isto como funciona temos até mais do que essa hipótese. E ao invés de ficarmos ao espelho a tentar convencermo-nos de algo, ou a rezar a todos os santinhos como se de um génio da lâmpada se tratassem, podemos olhar para as nossas reações. Shit happens, amigos. É inevitável. Resta-nos então lidar com isso da melhor maneira possível usando a única coisa que podemos realmente controlar: as nossas próprias ações e reações. No entanto, isso não se afigura fácil para quem anda, por exemplo, no futebol. É certo e sabido que quem dedicou a maior parte da sua vida ao futebol (seja como dirigente, seja como treinador, jogador, e até comentador ou adepto) tem uma expectativa. Geralmente é a expectativa de ser reconhecido, de ser validado. Obviamente que, para isso acontecer, os cenários que estão em cima da mesa não podem ser negativos. Se o intuito é ser reconhecido, acarinhado, validado (e até venerado) a mente criará a expectativa daquilo que criará por arrasto esse efeito nos seguidores: protagonismo nas vitórias.

Para um treinador funcionará com vitórias da sua equipa. Para um jogador funcionará com protagonismo nessas mesmas vitórias. Nos dois lados se cria um cenário, uma expectativa, altamente positiva que só as vitórias e o protagonismo nas mesmas confirmarão. Sem essas, nada feito. E assim sendo, o que é que estamos a observar aqui? Estamos a observar pessoas, com uma força ou talento acima da média, a entregarem a sua auto-estima, o seu trabalho, o seu bem-estar mental e emocional, ao julgamento de pessoas com talento abaixo da média. E agora pensemos: é isto natural? é isto saudável? é isto, sequer, correcto ou viável?

Muito se fala hoje – sem grande profundidade – em controle emocional, em força mental, até em espírito, relacionados com futebol. Mas poderão todos esses factores psicológicos estarem entregues a algo tão volátil como os resultados ou as apreciações dos adeptos? O jogar à roleta-russa com os adeptos e com o jogo em si, onde ganhando temos o carinho, e onde perdendo temos ódio, não será também um terreno tão pantanoso e ilusório como o positivismo descrito acima? E será esta a única manifestação possível neste desporto? será esta a forma mais alta de encarar a volatilidade em futebol? Parece-me claro que não é, mas para isso há que olhar e perceber se estamos a agir ou se estamos a reagir.

A diferença, ainda que possa parecer subtil, é enorme. Fazendo a distinção explicando que agir será independente e reagir será dependente de alguma condição interna ou externa, rapidamente se perceberá que, na maioria das vezes, quem está ligado ao futebol está a reagir de acordo com as suas expectativas, desejos e ambições e de acordo com as expectativas de quem o segue. E essas estão intimamente ligadas aos resultados, o que inevitavelmente cria medo das derrotas. É então inegável que os medos dos treinadores e jogadores estão lá, fazem parte e estão intimamente ligados à performance dos mesmos – ainda para mais num ambiente onde o medo se suprime e não se transcende, e onde a raiva e algum descontrole até são elogiados. E que quer isto realmente dizer? Bem, que se estás ligado ao futebol e tens medos talvez não vá ser lá que os vais ultrapassar.

Isto porque a cultura de vitória/derrota é a mesma que a cultura de bom/mau. E o efeito mata ou morre surge até desde que se começam a dar os primeiros passos neste desporto – ainda que se romantize e que se passe a mão pelo pêlo, um miúdo que não fica numa Academia fica com uma rejeição para lidar para a vida. É a cultura do descartável, onde um efeito bola de neve emocional afecta os jogadores e treinadores. A falta de tolerância ao erro cria o medo do mesmo, e o futebol não tem actualmente meios para se transcenderem os medos, para os jogadores (e treinadores) se darem conta que esses (tais como as suas expectativas) são na maioria das vezes irreais e que a sua reação ao externo pode ser trabalhada para se tornar em ação independente a condições totalmente irreais (como a de 50.000 zés da tasca terem poder psicológico sobre ti). Cabe aos clubes traçarem o caminho de medirem e pre(ca)verem reações, despertando-as em cenários seguros e trabalhados para o efeito, para as transformarem em ações puramente criativas e desapegadas de pressões e ilusões exteriores e interiores. Hoje, atletas e treinadores estão sós nesse caminho, enquanto se debate alegremente a força emocional e mental de uma equipa, ou até a sua identidade. Tudo isto é psicológico, tudo isto é trabalhável, cabendo também aos atletas encontrarem motivação diferente da de agradarem ao mundo e às massas, para não correrem o risco de entregarem a sua sanidade e estabilidade mental e emocional à montanha-russa de exigências e agrados de quem, muitas vezes, não consegue gerir a sua própria casa. Em que é que nos vamos focar, então? Neles ou no melhor de nós?

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