Onde vai um, vão 3-4(e mais 3)

Já vai longa, e exaustiva, a análise sobre o novo campeão nacional. Contudo a mesma parece empancar num ponto (que foi trazido à baila por Sérgio Conceição, antes da visita dos leões ao Dragão). Seria fácil desmontar (teoricamente) a maneira do Sporting jogar, mas muito difícil de parar. E, como já dito, a maioria das análises que esmiuça o Sporting de Rúben Amorim (e o próprio Rúben Amorim) leva travão a fundo nesse inexplicável je ne sais quoi. E quem anda no, ou segue, futebol há uns tempos, conhece o fenómeno dessa inexplicável vibração vencedora. Já a reconhecemos no jovem José Mourinho, de Benfica, Leiria e Porto. No jovem André Villas-Boas e no jovial Bruno Lage que fez a retumbante caminhada até ao título de 2018/2019. Já a conhece, repito, mas não a sabe explicar muito bem. E isso tem lógica, até porque quando a tentas teorizar, parar, copiar, ela já voou com o tempo. É fluida e a mente linear não a acompanha, ao estilo de nunca te banharás no mesmo rio. E recordando os especiais nomes referidos junto a Rúben Amorim – nova coqueluche do futebol nacional – perceberemos de imediato, olhando para o momento actual de cada um – o quão difícil se torna manter, acompanhar esse misterioso je ne sais quoi que os faz/fez vencer de forma retumbante.

É como um cavalo selvagem que passa por uma daquelas cidades do velho oeste americano. E entra a tal velocidade e traz algo de tão diferente que só pela poeira que deixa se consegue sentir que é especial. E mesmo que alguém o conseguisse por instantes montar e trazer a história para contar, a definição que arranjaria já estaria antiga pois o bicho continuaria a cavalgar, transcendendo, inovando a cada galgar. E de Rúben sentimos essa poeira no seu primeiro discurso em Braga. Mas o futebol, mundo matreiro, não se faz de palavras. De outra maneira seria fácil agora pegar no que Rúben fez e tentar teorizá-lo, estancá-lo, copiá-lo, fazer xerox do modus operandi (sistema táctico incluído) e esperar sentado pelas vitórias. Mas o que conta (e peço desculpa pela explicação vaga, mas não tentarei definir por ser impossível) é essa vibração vencedora que Rúben trouxe. E como tudo flui da tua identidade, para a tua mente, para as tuas emoções e, depois sim, para o físico, encontrar explicação nas palavras, nos actos, no sistema é tentar enclausurar o que fez do leão o campeão. Por isso se celebrizou que é fácil de ver ao que o Sporting vai, mas é imensamente difícil de o parar. Porquê? Porque a vibração vencedora que Rúben trouxe, não é – primeiramente – teórica, não é (só) física.

Obviamente que os jogadores leoninos não se sentaram no relvado em posições de ioga à espera de ganhar jogos. Mas o que é que dissemos aqui? Que a revolução começou na identidade, passou depois para o campo mental, e no corpo emocional ganhou balanço (porque é fácil as emoções se desequilibrarem) para a vitória que Rúben já tinha na mente se tornar física. E, ainda que nos parágrafos seguintes nos tenhamos de debruçar sobre as coisas físicas do novo campeão nacional, será lógico que recordemos primeiro exemplos da identidade e mentalidade que Rúben instaurou. E o exemplo perfeito acaba por não ser desta época. Pois ainda nem há um ano atrás, o projecto de Sporting que visitou, na altura, o novo campeão nacional FC Porto, viu e sentiu uma festa que naquela época não seria sua. E Rúben, ao invés de se deixar levar pelo habitual mau perder, preferiu focar-se no objectivo principal. Assim, quando dizem que Rúben Amorim nunca assumiu a candidatura ao título – até à antevisão do jogo com o Boavista – estão redondamente enganados. Fê-lo após essa derrota no Estádio do Dragão, ainda na época anterior, onde assumiu que o que os jogadores do FC Porto estavam a sentir, seria exactamente, o que os jogadores do Sporting, e sua equipa técnica, quereriam sentir. Pois bem, profecia cumprida.



Mas para lá chegar foi importante manter o foco. Se a identidade não admitia obstruções à possibilidade do seu Sporting vir a ganhar o campeonato, a mentalidade teria de ter um balanço fulcral para esse desiderato. E foi aí que Rúben equilibrou a balança. Reparem, poderia tê-lo feito como Mourinho o fez em janeiro de 2002 – garantindo que seria deles e pronto. Mas como nunca nos banhamos no mesmo rio duas vezes, a criatividade que serviu ao Zé da Europa no início do século e ao serviço do FC Porto, não teria que servir ao Sporting de 2020/2021. Retirando obstruções de que era possível ganhar ou, garantindo até, internamente, que era muito provável, Amorim criou depois a ideia, a mentalidade. E essa passava pelo foco no jogo a jogo. E tenho de admitir, já ouvi muitos treinadores a falarem desse tal jogo a jogo, ou de assumirem que todos os jogos são finais, ou coisa parecida. Mas a nenhum vi semelhante compromisso com a filosofia. E retirando o foco do resultado final (vitória no campeonato), permitiu um enfoque total no processo, ao mesmo tempo que, sagazmente, retirou a pressão de um grupo de jogadores, e de um clube, que não estava preparado para pensar em maio mas sim, apenas e só, no jogo a seguir.

Muito se falará de outros intervenientes na criação do Sporting. Mas para que não se esqueça a fase de construção como primordial, aqui fica um pequeno exemplo das dúvidas que o posicionamento leonino provocava nos adversários. Sendo que, também com bola, a linha de 3 e as dúvidas que colocou na abordagem contrária foram também um dos esteios do título – a par de muitas outras coisas já referidas


E como tudo está interligado, as emoções não fugiram. Não se descontrolaram. Porquê? Porque o foco era ganhar o próximo jogo e isso era tudo aquilo que era preciso pensar nesse momento. Enquanto outros prometeram, outros garantiram e outros criaram expectativas, Rúben jogou a carta do outsider para fora, e a carta de ganhar todos os jogos para dentro. E a cada desaire os adversários tiveram um desgaste emocional muito maior porque, adivinhem, a expectativa era bastante maior. E para ir atrás foram fazendo as coisas metendo força emocional e física. E sem o equilíbrio da força da identidade (porque as dúvidas começaram a entrar) e da força da mentalidade (porque a desvantagem ia ficando maior), as emoções atribuladas retiraram eficácia às ações – sendo que aquela que se torna mais visível será a ação de finalizar, mas a outras também como a de criar (e tudo isso se sentiu no Benfica e no FC Porto e de alguma maneira escapou ao Sporting que arranjou sempre maneira de marcar).

Bem sei que já vai longa uma explicação que (nem pode, nem consegue e nem sabe se alguém o conseguirá fazer) não explica 5% do fenómeno mental que tornou o Sporting campeão. Talvez por isso possamos passar às coisas físicas, visíveis, que também tiveram grande impacto. Obviamente, se perceberam o texto até aqui, sabem que acho que são consequência do que se tentou (de modo reduzido) explicar acima (identidade, mente, emoção). Mas também a inovação táctica que Amorim trouxe foi obviamente fulcral no sucesso. E normalmente esse desenho, essa dinâmica, anda de mãos dadas com esse je ne sais quoi. Até porque Keizer chegou a jogar em 523/343 e não teve metade do sucesso, percebem? Não será só copiar agora e somos todos Amorim – vejam quantos 343 já andam por aí. Aliado ao descrito acima, o sistema foi fulcral porque colocou um dilema aos adversários. E se bem nos lembramos, Portugal já foi o país do 451, do 433 e, mais recentemente, do 442. E neles se foram criando dinâmicas quer a atacar, quer a defender. Pois bem, a título simples, o dilema mais comum de enfrentar um 343 em Portugal será o de levar com 3 avançados para os teus 2 centrais, e de veres os teus dois avançados cobertos por uma linha de três defesas. E apesar de simples, e num plano estancado, só a ocupação de espaços já dá que pensar. Claro que o futebol não é tipo matraquilhos e a dinâmica pode alterar estas equações, mas a verdade é que a larga maioria das equipas teve de encontrar novas formas de se defender, e de atacar. Isto tudo enquanto o Sporting sabia bem ao que queria ir, e ia pressionando com 3 na frente, e jogando com os alas onde queria criar vantagem numérica – fosse no miolo, ou na linha defensiva. Já a atacar, a linha de três centrais foi também fulcral por criar um enorme dilema ao adversário. Isto é, para retirar partido da pressão e poder augurar roubos de bola altos, um elemento teria de saltar da zona média – e isto envolve risco elevado que a maior parte das equipas não quis correr, o que permitia ao Sporting um elevado controle do jogo com a sua linha de três centrais. Ou então, algum dos médios realmente saltava abrindo espaços que os da frente aproveitam. E se isto não é um dilema…



Não sendo uma equipa que se possa rotular de posse, esses momentos (da fase de construção) foram determinantes no controle dos jogos e nas dúvidas que criaram aos adversários. Muito, tal como a linha de cinco que se formava no último terço a defender (e vários outros pormenores algo inovadores para a realidade desta época). O princípio básico é que o Sporting pareceu sempre saber as zonas e os timings para criar vantagens numéricas. E mesmo quando os adversários mudavam, o encaixe que daí resultava permitiu aos leões passar a depender da maior qualidade individual em relação à maioria dos adversários na Liga. Assim: vantagem numérica, dúvida nos adversários, dinâmica na organização ofensiva (sobretudo nos três da frente), talento para explorar movimentações, intensidade e eficácia nos duelos, alas com disponibilidade e percepção muito grande de onde, e como, podiam dar vantagem defensiva ou ofensiva à equipa… enfim, um rol de competências e dúvidas para os adversários. Talvez por isso Rúben tenha dito ainda no Casa Pia, algo do género: Vamos alterar o sistema, e com este ninguém nos vai ganhar! Obviamente Rúben saberá que o momento é efémero e que a vida de um treinador tem muito mais a ver com a reação aos maus momentos do que aos bons. Mas disso se falará quando a bola rolar de novo na Liga. Até lá, o leão merece desfrutar e Rúben merece tempo para apanhar de novo o cavalo…

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