Tomada de decisão “fora da cabeça”: um fenómeno ecológico

Luka Modric

Complexa e dinâmica: a tomada de decisão no futebol vai para lá do corpo e da mente do jogador. Mais que isso, a decisão está… no ambiente.

Ele tira dois e três da frente, mas perde a bola. Remata quando deve passar, e passa quando deve rematar. Caros treinadores, quantos casos destes já vos terão passado pelas mãos… Porque a qualidade técnica (execução) não mais é que cartuchos num revólver, quão inconsequente poderá ser esse mesmo revólver se não disparar para o sítio certo? E como podemos nós, artistas do treino e da modelação, levar a decisão a bom porto, com as coordenadas da nossa ideia de jogo?

Filosofando à boleia de Manuel Sérgio, não há chutos na bola, há Homens que chutam. E, provavelmente, o primeiro passo para se entender a tomada de decisão seja o de perceber o humano como um ser que não computa – receber, ler e executar é um processo robotizado e cujo algoritmo não considera ainda toda uma conjuntura. Ao invés, o ser humano interage com as situações que vão emergindo no ambiente ao longo de um continuum, num complexo e dinâmico sistema indivíduo-contexto. Rematar quando se tem apenas o guarda-redes pela frente não é o mesmo que rematar quando se é pressionado por dois adversários. Mais diferente seria se o remate fosse executado na lua – nem mesmo Ronaldo voou tão alto quando pegou na bicicleta para bater Buffon, no célebre Juve vs. Real de 2018!

[…] Importa perceber o que está subjacente ao conceito AutoEcoHetero engendração, e de que modo o Eco (contexto) se entranha no Auto e no Hetero, lançando-nos para a problemática de saber como incorporar o Ser Coletivo, ou seja, a emergência de um jogar de qualidade.

Jorge Maciel, in A insustentabilidade do atrevimento e a Sustentabilidade Nob(r)el da Periodização Táctica

Ao passo que a abordagem tradicional da tomada de decisão defende, de uma forma redutora e linear, que esta é estática e se encontra sedeada no interior do indivíduo (cérebro ou SNC, mente, etc.), a abordagem ecológica, em conformidade com a teoria dos sistemas dinâmicos, considera fundamental o papel da situação na seleção dos comportamentos (Araújo, Passos, & Esteves, 2011). Inesitantemente, Araújo (2022) afirma que “a decisão está fora da cabeça“!

Professor Duarte Araújo introduzindo o conceito de abordagem ecológica da tomada de decisão, entrevistado por José Pedro Loureiro

Treino, o espelho do jogo

Se o exercício se olhar ao espelho e não vir o jogo nele próprio, provavelmente o treinador terá abusado da maquilhagem. Um dos exemplos mais recorrentes no futebol de hoje em dia é a posse de bola inconsequente: “muitas vezes, observa-se que a equipa (principalmente no início da fase ofensiva) fica empenhada em passar a bola, sem manifestar qualquer intenção de ataque à baliza adversária” (Araújo & Volossovitch, 2005). Ou seja, a ação de passar a bola enquanto meio, e não enquanto fim, viola o conceito de representatividade da tarefa. Fosse eu um apostador obsessivo e arriscaria todas as minhas fichas como o tiki-taka simplesmente aconteceu (emergiu), não se treinou (propriamente com esse intuito)!

Montem-se quadrados, retângulos e outras formas geométricas mais bizarras, mas garanta-se que os jogadores treinam o jogo e não o exercício. É fundamental manterem-se intactos todos os ingredientes do jogo, sem que se verifique o seu empobrecimento, como acontece, por exemplo, nas formas analíticas (ouvir áudio seguinte). Como agravante, o facto de sabermos que não foi um meínho, uma posse de bola ou passes em circuito, que apaixonaram os meninos e os levaram a experimentar o futebol pela primeira vez…

Pode produzir o som do bater das mãos. Mas qual é o som de uma mão?

Fritjof Capra, in O Tao da Física

No fundo, a informação que o jogador perceciona no exercício deve ser a mesma que terá de percecionar (“radiografar”) no jogo, caso contrário, estaremos a quebrar os acoplamentos entre percepção e ação (Araújo, 2006). Quando isso acontece, o cenário ecológico do exercício será diferente do do jogo.

Messi anda o jogo a passo, radiografando a situação a cada instante. É o jogador que menos corre na Liga Espanhola, mas quando a bola lhe chega, tem a radiografia completa do espaço-tempo. Sabe onde estão todos e pam!

Pep Guardiola, in “A Metamorfose”, de Martí Perarnau

Professor Duarte Araújo acerca da representatividade e exercícios analíticos, entrevistado por José Pedro Loureiro

O ABC da tomada de decisão

Imaginem que vos largaram num sítio escuro com uma infinidade de caminhos. E que, no meio dessa infinidade, apenas colocaram tochas ao longo de um deles. Provavelmente, escolherão aquele que se encontra iluminado, sendo que, por outro lado, também nada vos impede de optar por um dos caminhos escuros. As tochas são um atrator, que propensia a seleção de um determinado caminho. Mas deixemos as metáforas de lado e refletamos um pouco sobre a relva…

Quando as balizas estão próximas, os jogadores facilmente percebem que terão grandes probabilidades de marcar de qualquer ponto do terreno; mas se, no mesmo espaço, as trocarmos por balizas mais pequenas, então estaremos a dizer-lhes no silêncio do exercício que queremos que eles valorizem a posse de bola e a façam circular, até que chegue o momento certo para fazer golo. Já num 4 vs. 4 com apoios laterais, em que um golo vale por dois se a assistência for de um dos apoios, os “holofotes” estão claramente apontados para estes últimos. Aí, o constrangimento (presença dos apoios) vira um atrator. A baliza, por exemplo, é, por definição do jogo, um atrator (Araújo, 2022).

Em nenhum dos casos, os exercícios deixarão de representar o jogo. Em nenhum dos casos, o exercício é o 11 vs. 11 formal. Apenas se manipulam os diferentes constrangimentos, dando as pistas para determinadas decisões que desejámos que os jogadores tomem – mas sem nunca os obrigar a tal! Os autores (Araújo, 2005; Davids et al., 2007) concordam com esta perspetiva: a tomada de decisão deve ser treinada seguindo a abordagem baseada nos constrangimentos – “ABC”.

Professor Duarte Araújo acerca da manipulação de constrangimentos, entrevistado por José Pedro Loureiro

De boas intenções está o jogo cheio

Nos contos infantis, o xis marca o sítio no mapa onde se esconde o tesouro. Mas, em nenhum desses contos, surge alguém a dizer exatamente qual o caminho a percorrer para o encontrar. Portanto, se a intenção – principal causa das ações desportivas (Reed, 1996) – passa por encontrar o tesouro, resta esperar que os jogadores o descubram. À sua maneira. E se, para tal, o avançado que queríamos que fosse referência tiver de baixar e o lateral, que pensamos previamente que seria o responsável por dar largura, aparecer dentro para rematar, só temos valorizar o facto do tesouro ter sido encontrado. De boas intenções, está o jogo cheio; já o Inferno, encontra-se apinhado de treinadores que tantas vezes castraram o poder criativo dos seus jogadores. Um bom exercício de treino dificilmente acarreta as palavras “proibido” e “obrigatório”.

Um sistema com a capacidade para ter intenções deve ter a capacidade de fazer escolhas e não apenas de percecionar e de mover. […] Com cada passo mais próximo do objetivo a informação deve tornar-se mais específica, estreitando as vias de ação possíveis, até que, em última instância, quando se está prestes a alcançar o objetivo, haja uma via única definida.

Duarte Araújo, in Tomada de Decisão no Desporto

Professor Duarte Araújo acerca do conceito de intenção e da origem das más decisões, entrevistado por José Pedro Loureiro

Uma decisão da cabeça aos pés

Os constrangimentos* do exercício levam os jogadores a pensar e a criar um determinado padrão de decisões. Essas decisões, levam os jogadores a atuar, criando um determinado padrão de tecnicidade. O que começa abstratamente no cérebro reflete-se concretamente nos pés. Não só a tomada de decisão mexe com o “xadrez” do jogo e a forma como as peças se movem, umas em função das outras, mas também com a individualidade de cada peça e a forma como estas executam o gesto técnico.

O autor (Bernstein, 1967) afirma que a coordenação de movimentos emerge sob constrangimentos que interagem, organizando os graus de liberdade do corpo humano durante a aprendizagem. Uma vez mais, o ambiente obriga a ajustes permanentes, que culminam numa tomada de decisão da cabeça aos pés. Os packs de coordenação e de gestos técnicos que se vendem hoje em dia, nada mais são que uma artificialização de algo que deveria ser puro, espontâneo e… emergente. A imensidão do futebol é demasiado grande para ser guardada em gavetas.

Segundo Araújo (2006), o termo “constrangimentos” advém da Física […] É importante clarificar que não são influências negativas no comportamento, tal como “opressores” ou “punidores”.

Futebol, um jogo que não se fala

Do subconsciente ao consciente, distam muitos quilómetros de prática. A velocidade a que o jogo de futebol se desenrola obriga o jogador a ir aos arquivos buscar as ações que lhes ficaram somatizadas no passado. Daí que muitas vezes questionámos “então se sabes que estiveste mal, porque é que voltaste a cometer o mesmo erro?”. Se me permitem o palpite: talvez porque há decisões que os jogadores têm no seu cadastro, que só conseguem limpar com muitas horas de treino e no treino. O jogo de futebol não traz manual de instruções: o jogador pode ter planos para a competição, mas o modo como resolve as situações é muito influenciado pelo que está a acontecer na própria situação (Araújo, 2006). Isto põe em causa a eficácia do feedback, pois verbalizar não é jogar. Se o futebol é um jogo, então não se falajoga-se!

A nível daquilo que é a tática individual – capacidade que o jogador tem para tomar decisões (Laguna, 2002) – a afinação percetiva é a essência da ação. Para percecionar de forma a agir, há que concretizar a tarefa na prática, explorando o ambiente. Por sua vez, a reflexão consciente (verbalizável), não passa dum suporte.

Apesar do saber não ser o mesmo que o saber fazer, o feedback, o vídeo e a exemplificação dum determinado gesto técnico, por exemplo, podem fazer soar as campaínhas de alarme no subconsciente. Por esse motivo, o recurso a estas ferramentas conscientes contribui para a afinação percetiva (i.e., sensibilização para a deteção de fontes de informação que permitam juízos perceptivos mais eficazes) em relação às fontes de informação relevantes do ambiente. O Professor Araújo (2006) remata com: “esta competência de se refletir sobre a tomada de decisão em competição ou em treino, designada por meta-decisão, não é o mesmo que decidir em competição ou em treino”.

Professor Duarte Araújo acerca da eficácia do feedback, vídeo e imagética, entrevistado por José Pedro Loureiro

[…] Coloca ideias diversas, para quê? Para que o saber fazer, se transforme concomitantemente num saber “sobre” um saber fazer. E esse saber “sobre” emana das ideias que a gente coloca, fazendo crescer o entendimento do jogo, mas sabendo que do consciente para o não consciente demora muito tempo.

Vítor Frade, entrevistado por Paulo Henrique Borges
Angel Gomes, entrevistado por Sofia Oliveira, in Futebol a sério

O segredo do treino não está no ensinar, mas sim no permitir aprender. Para decidir, há que escolher; para escolher, há que ter à disposição diferentes caminhos, de modo a que o jogador decida à sua maneira, com a intenção a servir de pano de fundo para as ações realizadas.

Se a maquete contiver os constrangimentos do jogo, vamos afinar a perceção do jogador, estimulando a sua sensibilidade relativamente às informações ocultas no cenário ecológico que o rodeia, aumentando assim a eficácia da sua tomada de decisão. Esta, é muito mais que simples neurónios a correr à volta do nosso cérebro. No casamento entre jogador e jogo, encontrámos a melhor decisão “fora da cabeça”.

Eu sou eu e a minha circunstância.

Ortega y Gasset, in Meditaciones del Quijote (1914)

Bibliografia

Araújo, D. (3 de Fevereiro de 2002). Duarte Araújo | Melhorar a tomada de decisão, ecological cognition e perigos no “temos que ganhar”. (V. Samouco, Produtor) Obtido de Efeito Borboletra: https://podcasts.apple.com/pt/podcast/duarte-ara%C3%BAjo-melhorar-a-tomada-de-decis%C3%A3o/id1526479360?i=1000549972327
Araújo, D. (2006). Tomada de Decisão no Desporto. Cruz Quebrada: FMH Edições.
Araújo, D. (3 de June de 2022). Entrevista ao Prof. Duarte Araújo sobre a Tomada de Decisão. (J. Loureiro, Entrevistador)
Araújo, D., Davids, K., & Passos, P. (2007). Ecological validity, representative design and correspondence between experimental task constraints and behavioral settings. Ecological Psychology, 19, 69–78.
Araújo, D., & Volossovitch, A. (2005). Fundamentos para o treino da tomada de decisão: uma aplicação no andebol. Em D. Araújo, O Contexto da Decisão (pp. 75-97). Lisboa: Visão e Contextos.
Araújo, D., Passos, P., & Esteves, P. (2011). Teoria do Treino da Tomada de Decisão no Desporto. Em J. Alves, & A. Paula-Brito, Psicologia do Desporto: Manual do Treinador”. Lisboa: Omniserviços.
Bernstein, N. (1967). The co-ordination and regulation of movements. Oxford: Pergamon Press. LAGUNA, M. (2002a). A melhoria da táctica individual. Andebol, 11, 3-11
Capra, F. (1983/1989). O Tao da Física: uma exploração dos paralelos entre a física moderna e o misticismo oriental (M. J. Dias, & J. C. Almeida, Trans.). Lisboa: Editorial Presença.
Frade, V. (2015). Periodização Tática: Fundamentos e Perspectivas. (P. H. Borges, Entrevistador) Campinas: Revista da Faculdade de Educação Física da UNICAMP.
Maciel, J. (Dezembro de 2012). A insustentabilidade do atrevimento e a Sustentabilidade Nob(r)el da Periodização Táctica.
Ortega y Gasset, J. (1914). Meditaciones del Quijote. Madrid: Alianza.
Perarnau, M. (2016). A Metamorfose. Corner.
Reed, E. (1996). Encountering the World: Toward an Ecological Psychology. Oxford: Oxford University Press.
Sérgio, M. (2015). O Futebol e Eu. Prime Books.


Agradecimento ao Professor Duarte Araújo

Este artigo foi baseado no livro Tomada de Decisão no Desporto, redigido pelo Professor Duarte Araújo, docente na Faculdade de Motricidade Humana. Agradeço também o facto de ter aceite o convite para uma entrevista por videochamada. Aos demais interessados no tema:

Sobre Yaya Touré 36 artigos
Amante do treino. Pensador do jogo. 💡

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