
“Sendo necessário segundo muitos autores uma mudança de paradigma, pois nessa mudança “… reside a pedra angular [trave-mestra] de todo o sistema de pensamento, acabando por afectar, invariável e simultaneamente, a ontologia, a metodologia, a epistemologia, a lógica e por simpatia, a prática, a política a sociedade” (Lorenço e Ilharco, 2007, p.66).”
(Rodrigo Almeida, 2009)
Em primeiro lugar, não posso começar este texto sem congratular o percurso do Lateral Esquerdo, e fundamentalmente, todos aqueles que contribuíram para que este blog se tornasse no Futebol uma referência nacional e internacional. Desde a sua génese, fruto da paixão pelo jogo e treino dos seus fundadores, passando por todos os que, com ideias e saudável discussão, contribuíram para o seu enorme crescimento e impacto. Uma palavra também aos jogadores e treinadores, e à sua paixão e coragem por estarem no centro de um fenómeno com tão grande impacto, já que sem eles a reflexão e discussão simplesmente não existiriam. Mas um merecido especial agradecimento aos treinadores que deliberadamente partilharam o seu trabalho, sem receio da exposição e da crítica. E como não podia deixar de ser, aos seus imensos leitores. Do “Sr. Luís” que é comerciante e o consulta nas horas vagas pelo apetite de conhecimento que tem por um desporto que também o apaixona, ao treinador da Primeira Liga que para além de semelhante motivo, procura o detalhe extra que irá enriquecer a sua Ideia de Jogo, o seu treino ou a sua liderança.
E foi a estreita relação entre este todo que garantiu tamanho sucesso a este espaço. Não tenho por isso dúvidas que o Lateral Esquerdo, paralelamente a mais dois ou três projectos similares, foram garantido uma enorme contribuição para a evolução do treino e do jogo em Portugal e para a criação de uma fantástica “descendência” que hoje prolifera noutros espaços online, redes sociais, jornais e televisão. Naturalmente desejo que o blog dê continuidade a esta missão por muitos mais anos.
Nesse sentido, com a regularidade possível tendo em conta outros compromissos profissionais, procurarei dar também continuidade ao meu contributo. Paralelamente, sempre pertenci a essa enorme tribo de leitores do Lateral Esquerdo e sem qualquer pejo confesso que os conteúdos que por aqui fluíam, dos próprios artigos à discussão que geravam, em muito contribuíram para a minha evolução como treinador e para que o projecto Saber Sobre o Saber Treinar, na minha mente há muito tempo, a determinado momento ganhasse decididamente força. Todo este entorno contribuiu para a minha reflexão, mais investigação, experimentação realizada regularmente na minha intervenção como treinador, e finalmente nova… reflexão. Um ciclo que diria ser… uma espécie de “método científico” que cada treinador, consciente ou inconscientemente desenvolve. E é precisamente pelo binómio prática-teoria que sinto que devo re-começar. Portanto, com o novo subtítulo e ideia adoptada pelo Lateral Esquerdo do fantástico Professor Manuel Sérgio.
“Quem só teoriza, não sabe. Quem só pratica, repete. O saber nasce da conjugação da teoria e da prática.”
A ideia procura derrubar um dos mais tradicionais exemplos dualistas. A prática versus a teoria. Como Manuel Sérgio explica, um conceito não vive sem o outro porque não só é fundamental experimentar a teoria, como é igualmente decisivo teorizar a prática. Portanto… capitalizar ambas as experiências, e mais importante, perceber que nenhuma existe em separado. Num mero exemplo, em treino ou jogo, jogador e treinador racionalizam parte do processo, enquanto fora deles, imaginam, visualizam e antecipam cenários tendo em conta as suas experiências.
Deste exemplo surgiu outra derivação: o saber ou “experiência” do ex-jogador versus o saber do académico, não se compreendendo que não só tudo pode ser importante para desenvolver o conhecimento sobre o jogo, como uma vez mais, uma realidade não existe sem a outra. O académico é por norma alguém que jogou ou está ou esteve directamente ligado ao jogo e há cada vez mais ex-jogadores a obterem formação académica. O tema merece uma reflexão mais profunda no futuro.
Encontramos dualismos por todo o lado. Num âmbito mais geral como são exemplos o Céu / Inferno, o Bom / Mau, o Certo / Errado, o Justo / Injusto, a Esquerda / Direita, o Branco / Preto ou o Corpo / Mente. Já na especificidade do Futebol, o Ganhar / Perder, a Autocracia / Laissez-faire, o Treino sem bola / Treino com bola, o Ataque / Defesa, o Jogo directo / Posse de bola, a Marcação individual / “Marcação á zona”, os “altos” / “baixos”, etc., etc.. Alguns dualismos mais fundamentalistas, para não dizer estúpidos, outros mais interessantes para discussão. Porém, revela-se o traço comum que interpreta a realidade esfacelando-a em partes, através de uma visão simplista das coisas. Curiosamente ou não, um dualismo que até poderia ter mais força para subsistir: o da Verdade / Mentira, tem sido manipulado nos últimos anos ao sabor do populismo e imperialismo, criando-se realidades ficcionais denominadas como “verdades alternativas” ao sabor e interesse de determinados indivíduos, grupos ou países.
Mas… haverá na realidade algum fenómeno que não tenha interacção com outro, ainda que seja difícil ou impossível comprová-lo pela condição e perspectiva humana? O autor (Rodrigo Almeida, 2009) lembra um conceito do disruptivo Edgar Morin, denominado “patologia do saber”, o qual “salienta a inteligência cega e cada vez mais recorrente nos dias actuais do meio científico, sendo uma ponderação filosófica que reflecte influência cartesiana “cega”, que despedaça e fragmenta o tecido complexo das realidades”. O filósofo francês reforça, explicando que “efectivamente, a inteligência que só sabe separar fragmenta o complexo do mundo em pedaços separados, fracciona os problemas, unidimensionaliza o multidimensional. Atrofia as possibilidades de compreensão e de reflexão, eliminando assim as oportunidades de um julgamento correctivo ou de uma visão a longo prazo. A sua insuficiência para tratar os nossos problemas mais graves constitui um dos mais graves problemas que enfrentamos. De modo que, quanto mais os problemas se tornam multidimensionais, maior a incapacidade de pensar sua multidimensionalidade; quanto mais a crise progride, mais progride a incapacidade de pensar a crise; quanto mais planetários tornam-se os problemas, mais impensáveis, eles se tornam. Uma inteligência incapaz de perceber o contexto e o complexo planetário fica cega, inconsciente e irresponsável”.
Rodrigo Almeida descreve que Morin sugere então “que deve haver uma hipersensibilização para abordar este problema”.
“O grande paradoxo é que para mudar a mentalidade é necessário mudar as estruturas de educação, mas, para mudá-las, é necessário mudar a mentalidade.”
(Edgar Morin, 2001)
Regressando à realidade específica do Futebol, se numa fase em que o treino e o jogo eram claramente dominados pela exacerbação do pensamento sobre o físico (corpo), o Lateral Esquerdo sentiu a necessidade de propagar uma mensagem sobre a importância da inteligência (mente). Acompanhados por outros autores e treinadores, a mensagem teve tanto sucesso que entretanto sentimos que acabámos por cair no pólo oposto: a desvalorização do corpo relativamente à mente. O que hoje clarificamos, porque o experimentámos com a “conjugação da teoria com a prática”, é que não só são ambos fundamentais e dependentes um do outro, como ambos são… uno. A nossa mente… culturalmente… dualista, é que os separou para os “melhor” compreender.
Segundo (Oscar Moreno, 2009), “lamentavelmente, o nosso discurso, a nossa actividade, privilegia a desagregação daquilo que é indissociável”. O autor (António Oliveira, 2008) vai mais longe e descreve que “o que Damásio (1994) intitulou de “Erro de Descartes”, pois deixou de fazer sentido separar os processos cognitivos dos afectivos na medida em que não é possível dissociar o corpo e a mente (Tomaz e Giugliano, 1997). Assim, não é possível pensar numa racionalidade pura, pois esta não pode ser desarticulada ou desmantelada da emoção (Damásio, 1994)”.
“O triste não é mudar de ideias, o triste é não ter ideias para mudar.”
(Manuel Sérgio, 2019)
Importa então caminhar para uma perspectiva holística do rendimento, onde nem físico, nem mente se centralizam e se subjugam. Podemos teorizar duas dimensões humanas que influenciam o rendimento no Desporto, mente e corpo, porém não as podemos separar, medir, pesar, receitar. Podemos ter a noção de que, numa “ordem explícita” (David Bohm, em Cínthia Oliveira & Sofia Stein, 2016), o rendimento manifesta-se de forma mental e / ou física, mas que acima de tudo interagem e se influenciam mutuamente, expressando-se pelos comportamentos humanos num todo indivisível, que assume uma especificidade própria em cada actividade que o Homem actua. O Futebol é não é excepção.
Desmontar o pensamento dualista, cartesiano, linear, mecânico, etc., não se trata de uma mania ou moda. Trata-se fundamentalmente de procurar avançar na nossa evolução, pois tentar pensar de forma complexa é perceber que o tal todo é diferente da soma das partes. É portanto procurar entender as relações, as interacções e o detalhe (no derradeiro exemplo, compreender a própria matéria que constitui a realidade). Portanto, de acordo com (Edgar Morin, 2001), “o desafio da globalidade é também um desafio da complexidade. Existe complexidade, de facto, quando os componentes que constituem um todo (como o económico, o político, o sociológico, o psicológico, o afectivo, o mitológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interactivo e inter-retroactivo entre as partes e o todo, o todo e as partes”.
Entender então que se vivemos numa realidade em que todos os fenómenos são interdependentes, independentemente da intensidade com que sucedem, partir deste princípio é um dos primeiros passos para garantirmos uma intervenção de maior qualidade, no quer que seja. Sublinhamos… procurar pensar de forma complexa não se trata de uma opção. Trata-se de evolução.
“O futebol pré-existe á ideia que dele se tem. O problema está em saber, se as ideias que dele se tem, se lhe ajustam.”
(Vítor Frade, 1990)
Para finalizar, e não sendo o objectivo trazer uma discussão filosófica que eventualmente se afaste do principal interesse dos leitores do Lateral Esquerdo, portanto, da especificidade do jogo de Futebol, porém deixamos um desafio e eventualmente uma provocação para quem desejar ir mais longe neste tema. E lembramos… se não procurarmos compreender a floresta teremos uma incrível dificuldade em interpretar a árvore.
No fundo, talvez a principal prova que tudo está interligado e não existem “partes” em coisa nenhuma. Da “hipótese do átomo primordial”, portanto, que toda a substância deriva de uma singularidade, a recentes investigações como a de David Bohm no campo da física quântica e filosofia que o conduziram a uma visão holista da realidade e à sua “teoria da totalidade indivisa”, vão nos mostrando a invalidez do pensamento dualista, cartesiano e linear, que consequentemente também afecta negativamente o desenvolvimento do jogo de Futebol. Torna-se ainda extremamente interessante perceber que a evolução do pensamento de Bohm (físico de formação, garantindo também contributos importantes para a energia nuclear), reforçado pelo seu trabalho nos campos da teoria quântica, neuropsicologia e filosofia da mente, fez-lhe emergir como principais preocupações, “entender a natureza da realidade em geral e da consciência em particular como um todo coerente” e ajudar “a superar a fragmentação na sociedade” (Wikipédia, 2022).
“Bohm conclui, portanto, que “cada ‘coisa’ que existe na natureza tem alguma contribuição para o modo de ser do universo como um todo” (1957, p. 146, tradução nossa). Essa conclusão é especialmente relevante se considerarmos a teoria amplamente aceite do Big Bang (BOHM, 1980, p. 243-244). Se o universo é produto de uma grande explosão ocorrida num bloco de matéria extremamente denso e quente, então a matéria que compõe o universo, no início, formava um único sistema. Tomando esse forte acoplamento inicial com a ideia da causalidade não local, então é aceitável que cada partícula existente interfira em, e, portanto, contribua para o modo de ser de outras partículas em qualquer lugar do universo. (…) Como as informações dos campos quânticos das partículas que constituem o universo podem interagir a todo o momento, a realidade seria um “fluxo universal de eventos e processos” ou uma “Totalidade Indivisa em Movimento Fluente” (BOHM, 1980, p. 12; 14, grifo do autor). Assim, a premissa básica aqui é que “tudo está envolvido em tudo” constituindo uma totalidade indivisa (BOHM, 1990, p. 273, grifo do autor).”
(Cínthia Oliveira & Sofia Stein, 2016)
Finalmente!
O futebol é emoção.
Talvez daqui a uns anos estejam a escrever sobre isso.
Bom artigo!
Força aí!
Bom artigo não, grande artigo!
Não é qualquer um que chega a estas alturas do pensamento e da percepção.
é lindo que seja pelo futebol que o exponham.
Benfica!
O constructivismo foi um fiasco na educaçao escolar que quer matar as disciplinas e deixar o aluno aprender por si mesmo sem um mestre a mostrar o bom caminho. Nunca pegou no futebol porque antes de tudo é resultadista que se compôs mal com falsos idealismos.
A aprendizagem do futebol é desenvolvido de principio pela criança consoante os seus atributos e depois a escola do futebol ensina lhe a displina, a tactica individual e a estrategia coletiva; e nenhuma falsa revoluçao de pedagogia mudarà esse rumo.
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