“Jogar feio” é o novo bonito

Pep Guardiola e Jurgen Klopp

“Uns criam, outros copiam” – Jesus estava certo. Porque andamos todos a seduzir o futebol com tanta conversa, quando ele desespera por ação?

“Há seis, sete, oito ou nove treinadores que criam. Os outros copiam”, foram as palavras de Jesus no Global Football Management, de 2021. Conhecemos bem a sua casmurrice e altivez. Contudo, perdoem-me o atrevimento, mas discordo em parte com o consagrado treinador português: o número de “criadores” talvez seja ainda menor. Nesta era de novas tecnologias, em que as redes sociais pautam formas de ser e estar, sinto que a grande influência que paira sobre os relvados (ainda) é a de Pep Guardiola. Não o atual, nem tampouco a sua versão bávara, mas sim o Guardiola daquele Barcelona. Os pergaminhos do grande influencer ainda se fazem sentir nos dias de hoje, ainda que num críptex cujo código não está está acessível a todos.

O Guardiola fez muito mal ao futebol. Parecia tudo tão fácil e simples que todos os treinadores o queriam copiar. Vi muitos “Guardiolas” por aí e foi então que me apercebi do que construímos juntos.

Lionel Messi

Costa (2018) afirma que o futebol está cada vez mais igual, independentemente do escalão etário. Uma equipa de sub-10, que tenta “jogar à Barça”, acaba por se tornar numa verdadeira “aberração”, por não equacionar diversos fatores contextuais: as idades, os jogadores, o campeonato e o adversário não são os mesmo daquele Barça. A castração agrava-se quando uma criança com potencial para tirar dois e três da frente em velocidade, é obrigada a travar e a passar a bola para o lado. Razão: porque o Barça jogava assim.

Para complementar, Costa (2018) critica esta geração de treinadores, dizendo que estes “têm de mostrar à sociedade que estão atualizados”. De facto, nesta passerelle há modas para todos os gostos: saídas a três com o trinco a baixar (mas também se aceitam os laterais desde que Kyle Walker o fez no City); laterais por dentro, mesmo que o seu forte seja galgar verticalmente linha fora; jogo interior, não importa se o adversário fecha o corredor central; defesa única e exclusivamente zonal; pressão alta, independentemente do adversário jogar longo e ter jogadores agressivos no ataque às costas; já para não falar que cada jogador só tem direito a dar dois toques na bola. Todo e qualquer princípio fora desta esfera, pertence à classe dos “feios, porcos e maus”, fazendo jus ao clássico de 1976 de Ettore Scola. O autor (Costa, 2018) conclui a sua intervenção com uma hipérbole, que retrata na perfeição o futebol da última década: “chegamos a uma situação em que ver um jogo é, quase, ver todos os jogos“!

Em Espanha há sempre futuro. Penso que agora temos de ter calma e analisar. Esta seleção é muito jovem e teve uma mudança de geração pelo meio. Há muitos jogadores com muita qualidade que fizeram o seu primeiro Mundial e só estão na primeira divisão há uma ou duas temporadas. Gavi, Pedri ou Ansu Fati são jogadores bestiais. Penso que a primeira coisa a fazer é perceber onde estamos. A questão do tiki-taka está a fazer-nos muito mal, não porque seja bom ou mau, mas sim porque confundimos as coisas desde a formação dos jovens.

Míchel Salgado, em entrevista à Fox Sport

Da mesma forma que o futebol apoiado, com tabelas, dinâmicas de terceiro homem, saídas em passe curto desde trás e uma circulação paciente à largura se tornou moda, também os rondos (na minha terra, ainda lhes chamámos meínhos) passaram a ser a entrada de qualquer menu de treino. O autor (Costa, 2018) tem uma observação tão curiosa, quanto enigmática, ao dizer que a necessidade dos treinadores “mostrarem que as suas equipas que as suas equipas possuem os mesmos princípios dos grandes clubes – em vez de princípios é melhor ler fins – é, a seu ver, um dos grandes males do futebol atual”. De certa forma, corrobora com a aversão que Pep, precisamente o influencer da posse de bola – quem diria, hein?! – tinha perante um futebol ineficaz e que negligenciava o seu grande objetivo: o golo. Por isso, o princípio que Costa refere, que consistia na circulação da bola em segurança para chegar à baliza adversária, passou a ser o fim, isto é, a posse redundante, vã e inútil.

Odeio o tiki-taka. Odeio! Isso é passar a bola por passar, sem qualquer propósito. E não serve pra nada. Não acreditem no que se diz por aí: o Barça não tinha nada de tiki-taka! Isso é invenção, não acreditem! Em todos os desportos coletivos, o segredo é atrair a um dos lados do campo para confundir o posicionamento do adversário. Concentrar o jogo de um lado para que o adversário deixe o outro livre. Por isso, precisamos de passar a bola, sim, mas com intenção, com propósito. Passá-la para sobrecarregar um dos lados, para atrair e desequilibrar no lado oposto. O nosso jogo é esse, não é o tiki-taka.

Pep Guardiola, in Guardiola – Confidencial

Para todo o vírus, há sempre um antídoto. Se o padrão daquele Barcelona foi dissecado ao pormenor durante mais de uma década, é natural que “muitos Guardiolas” tenham criado o “seu Barcelona”. Essas versões, ainda que algumas tenham saído autênticos Frankensteins, obrigaram a uma resposta defensiva, com o povoamento do corredor central à cabeça. Mas o dogma enraizado de que “jogar por dentro é que é” não só inibe a produção, desde os escalões de formação, dos extremos “à antiga” (posso chamar-lhes assim?), até porque “ir à linha e cruzar é feio” – como também “obriga” os treinadores a jogarem sempre com extremos de pé trocado, como se hoje em dia ainda houvesse condições muito favoráveis para se fazerem diagonais e rematar à baliza…

A ausência dos passes longos da lista do “futebol positivo” – confesso que ainda estou a tentar entender esse conceito – diminuiu bastante o número de movimentos de rutura e ataque aos espaços. Chegámos a ver equipas cujos possíveis recetores estão todos de costas para a baliza e à espera de jogar em apoio. A profundidade está em vias de extinção. Se sair um passe longo, é porque “o treinador gosta só de bater na frente”. O medo deste rótulo é tanto, que é preferível sair a jogar curto, mesmo quando o adversário tem quatro homens a pisar a linha da grande área, perder a bola em zona proibida e sofrer golo. Ao menos, seguiram-se as guidelines do… “futebol positivo”.

«A chegada de Tata, que vem de fora e partilha da mesma ideia de futebol, a de ter posse bola, mas que nos mostra opções diferentes», acrescentou o futebolista, explicando ser positivo, com novas variantes. O defesa justificou que perante a pressão não é negativo fazer passes longos e que isso serve para mudar o jogar, “oxigenar” e evitar que o adversário deixa a equipa sem soluções. «É normal tentar colocar ideias novas, variações, depois de tantos anos em que os adversários sabem, obviamente, como atacas e como te moves».

Gerard Piqué, em entrevista ao El País

Corria o longínquo dia de 3 de setembro de 1968, quando Elvis Presley inundou as rádios com o moto a little less conversation, a little more action please. Este ecoou em baixo volume, até que o Liverpool de Klopp decidiu tocá-lo em Anfield, depois da mítica You’ll Never Walk Alone, que arrepia qualquer um no início de todas as partidas. Quando começou a engrenar, o rock n’roll desse Liverpool abafou várias orquestras. A segurança e paciência com bola foi trocada pela velocidade e adrenalina de ataques rápidos e ferozes. O mundo levou uma enorme bofetada e reagiu como se nunca antes tivesse visto um fenómeno do género. Os resultados positivos apenas carimbaram a agressividade, objetividade e eficácia dos homens de Klopp. E o planeta dividiu-se entre a obsessão da posse de bola e a acutilância fatal que se pode ter com a mesma.

Então e o que dizer das equipas que têm muita posse? Não são modernas e eficazes? A posse, sem mudanças de ritmo e sem profundidade, é difícil. Se atrás da bola tens demasiados jogadores, é complicado. Mas se tens uma posse em que atrais bem para logo a seguir ferir o adversário […], isso nunca passará de moda. Quanto mais subidos conseguirmos controlar o jogo, mais satisfeito fico. Mas no Leverkusen também estou a aprender a dominar o espaço, não com a equipa tão subida no terreno.

Xabi Alonso, em entrevista ao El País

O futebol é um jogo. Existe parada e resposta. Se a nossa resposta for sempre a mesma, estaremos a aumentar a eficácia da parada do adversário. Por esse motivo é que era tão desconfortável jogar contra… o Burnley. Imaginemos como se sente um atleta que treina 90% das vezes com a bola rente ao chão. E que apanha adversários cujo padrão seja relativamente idêntico. O grau de adaptabilidade físico, técnico, tático e psicológico é tão elevado, que tanto a defesa do adversário, como o ataque da sua equipa, terão tendência a baixar o grau de eficácia.

Já contra o Burnley, que tem um padrão de jogo totalmente oposto, esse mesmo jogador sentirá dificuldades para as quais não está preparado. Mesmo a nível fisiológico, os músculos acabam por ser solicitados em proporções diferentes, sendo este um aspeto que inclusivamente é contemplado no planeamento dos treinos de recuperação. Já para não falar da predisposição mental para atacar lances de cabeça, tão em voga no treino e jogo do Burnley, mas provavelmente esquecidos no fundo duma gaveta qualquer pela maioria dos seus adversários. Definitivamente, este Burnley “queimava”, e todos os treinadores adversários apontavam o mesmo fator: o de serem totalmente diferentes das outras equipas.

José Mourinho, em conferência de imprensa, 2021

O Burnley, pelo menos, oferecia variedade tática. Eles forçavam os adversários a sair da sua zona de conforto, obrigando-os a disputar o jogo de uma forma física, “fora de moda” […] Mas será que o Burnley foi mesmo a última equipa old school?

Michael Cox, in The Athletic

A “moda” está estreitamente relacionada com a estética. Olhando aos valores da sociedade de hoje em dia, à forma como esta se organiza e funciona longe do ruído e da entropia, parece “inaceitável” um jogo com tanto “barulho” como o do Burnley, cujos metros a que bola dista do chão equivale ao nível de aleatoriedade em relação à equipa que ficará com a bola assim que esta beijar a relva. Além disso, também a eficácia fica comprometida. Porventura, já terá sido confrontado com esta questão: para quê fazer um passe de 50 metros, quando é mais fácil acertar um a cinco? Pois bem, permita-me contrapor esta pergunta com outra questão: é mais fácil acertar um passe a 50 metros ou 50 passes de cinco? A estética, de facto, parece indissociável da eficácia e da eficiência.

Frade (2018) reflete sobre este complexo trinómio: “a eficiência é o estar a acontecer regularmente aquilo, em termos gerais, os padrões identitários, do que nós pretendemos: “criámos tantas oportunidades, mas não marcámos!” […] A organização funciona: é a eficiência! E a eficácia tem a ver com o resultado: “ganhou ou não ganhou?”. Mas a diversidade […] da eficiência tem a ver com o lado estético! […] Àqueles que põem a dominante na vertigem da eficácia, cortam-lhe a eficiência! São mais previsíveis e então o lado estético é mais definhado”!

Atentando nesta última frase, podemos perceber o que ela tacitamente encerra: o foco única e exclusivamente no resultado (eficácia) pode comprometer o grau de variabilidade da equipa (eficiência), sendo essa “pobreza” de soluções uma deficiência a nível de “beleza” (estética). Permita-me, então, fazer uma declaração de interesses, enquanto autor deste artigo: não sou a favor da posse de bola. Nem do jogo direto. Sou a favor dum jogo de vários jogos. É com esse que “quero fazer amor”… nem que seja numa casa-de-banho.

Jorge Simão, em conferência de imprensa, 2017

Com toque, toque e mais toque, não se ganha, nem sequer com 73% de posse de bola e sem um único remate à baliza. Isso de jogar do guarda-redes para o lateral, e outra vez para o guarda-redes, para depois chegar ao outro lateral… Acabou.

Fabio Capello

Para quê ter 70% de posse de bola se chutam duas vezes à baliza? Vou dizer ao Infantino para dar um ponto às equipas que excedam os 60%. Estamos aqui para ganhar, não para ter posse de bola. Fala-se do tiki-taka, quando se tem jogadores que o podem fazer.

Walid Regragui

Vimos Marrocos chegar à meia-final do Mundial do Catar, a defender em bloco baixo e a sair em contra-ataque. A França de Deschamps e o Brasil de Tite mantêm, desde há alguns anos, uma base defensiva sólida que depois lhes permite soltar os “cavalos” da frente. Até Portugal conquistou o Euro 2016 fazendo da organização defensiva o seu ponto forte. A bofetada de Klopp veio equilibrar as ideias mais extremistas, que tinham como objetivo a posse de bola e não o golo. Inclusive Sérgio Conceição, a nível nacional, nunca retirou a vertigem do ataque, mesmo quando, na sua primeira época, era constantemente confrontado com uma possível alteração do seu estilo de jogo, caso tivesse outro tipo de executantes para a frente, mais evoluídos do ponto de vista técnico. E, claro, a prova final: até o City de Guardiola já “carrega mais no acelerador” do que noutros tempos.

Confesso que nunca vi uma equipa a jogar tão bem quanto o Barça de Guardiola. E nunca vi uma ideia tão disseminada, mas tão mal interpretada por esse mundo fora. Da mesma forma que as ondas do mar deixaram que a posse de bola e o estilo pausado dessem à costa, pode ser que também tragam de volta o WM, os líberos e o kick and rush. Qual será a próxima tendência? Não sei. Mas sei que não serei carneiro.

Em terra de cego, quem tem olho é rei.

Herbert George Wells

Bibliografia

  • Autor desconhecido. Capello critica Espanha: “Com toque, toque e mais toque não se ganha”. (2022, December 16). Retrieved January 15, 2023, from https://www.noticiasaominuto.com/desporto/2134178/capello-critica-espanha-com-toque-toque-e-mais-toque-nao-se-ganha
  • Autor desconhecido. «Guardiola fez muito mal ao futebol». (2022, November 12). A Bola. Retrieved January 15, 2023, from https://www.abola.pt/nnh/2022-11-12/argentina-guardiola-fez-muito-mal-ao-futebol/964419
  • Autor desconhecido. Míchel Salgado: «O tiki-taka está a fazer muito mal ao futebol espanhol». (2022, December 8). Retrieved January 15, 2023, from https://www.record.pt/internacional/competicoes-de-selecoes/mundial/mundial-2022/espanha/detalhe/michel-salgado-o-tiki-taka-esta-a-fazer-muito-mal-ao-futebol-espanhol
  • Autor desconhecido. Regragui: «Tiki-taka? Não quero ter posse para rematar duas vezes à baliza». (2022, December 13). Retrieved January 15, 2023, from https://maisfutebol.iol.pt/mundial-2022/marrocos/regragui-tiki-taka-nao-quero-ter-posse-para-rematar-duas-vezes-a-baliza
  • Costa, H. (n.d.). É Futebol ou Maria Vai Com As Outras? Treino Científico, (2182-1593).
  • Cox, M. (2022, August 5). With Burnley gone, is long-ball football dead in the Premier League? Retrieved January 15, 2023, from https://theathletic.com/3475355/2022/08/05/burnley-long-ball-premier-league/
  • Frade, V. (18 de Janeiro de 2012). Entrevista a Vítor Frade. (J. B. Tobar, Entrevistador)
  • Tronchoni, N. Piqué: “Éramos muy previsibles, a veces el juego se convierte en un partido de balonmano”. (2013, September 17). Retrieved January 15, 2023, from https://elpais.com/deportes/2013/09/17/champions/1379417003_657902.html
  • Torres, D. (2023, January 14). El Mundial no mostró la evolución del fútbol. El País, pp. 32-33.
  • Travassos, N. (2021, October 12). Jesus: «Há oito ou nove treinadores que criam, os outros copiam». Retrieved January 16, 2023, from https://maisfutebol.iol.pt/benfica/jorge-jesus/jesus-ha-oito-ou-nove-treinadores-que-criam-os-outros-copiam
  • Wells, H. G. (1904). The Country of the Blind. The Strand Magazine.
Sobre Yaya Touré 36 artigos
Amante do treino. Pensador do jogo. 💡

3 Comentários

    • Obrigado pelo link.

      Continuando a entrevista, Juanma Lillo fala da liberdade do jogador e da minha visao da tactica do jogador quando ele evoca o jogador Maddison do Leicester City:
      ” Um treinador pode dizer a ele para fazer A, mas se ele acredita que B é a opção certa, ele fará B. Eu amo isto. Qualquer ideia que surge na cabeça de Maddison é 100 vezes melhor do que qualquer ideia que você encontrará em qualquer conferência de coaching. ”

      Desta vez, o processo coletivo do Guardiola ganhou à tactica/liberdade dos jogadores do Real Madrid. Grande Rodri, o chefe de orquestra daquela linda maquina. Desta vez, o Guardiola acrescentou mais liberdade criativa ao Gundogan para acrescentar a essa do De Bruyne.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.


*