A variabilidade e o pormenor

A olhar o imperdível Manchester City surgiu-me a memória de uma antiga reflexão.

O City apareceu, nos últimos jogos, com posicionamentos diferentes. O uso dos laterais por dentro não é novidade, mesmo que a forma como se posicionaram pudesse dar essa ideia. Ainda recentemente, vimos De Zerbi a montar uma construção semelhante (2+3). Tuchel, entre outros, também adora mexer com a sua construção e, por isso, não é fácil atribuir autor às inovações. Todos sabemos que os melhores andam sempre à procura das boas ideias. 

A diferente disposição tática adotada por estes treinadores, na fase de construção, é um sinal claro da preocupação com o lado estratégico. Procurar dentro das regularidades da equipa, o melhor caminho é algo que me parece fazer todo o sentido. Diferentes disposições táticas trazem diferentes possibilidades para chegar ao golo. Escolher as melhores rotas, como diria o Abel, é o assumir da estratégia. 

Se os problemas que nos surgem não são sempre os mesmos, as respostas a dar não poderão ser sempre as mesmas. Então, existe a necessidade de ter um leque de respostas para os problemas que achamos que vamos encontrar ao longo da época! Se nos focarmos só no jogo seguinte e a nossa preparação se direcionar exclusivamente a ele, ao fim de algumas semanas, o nosso jogar terá sido altamente limitado pelo calendário competitivo.

Devemos, por isso, ter em atenção os perigos de treinar só a olhar para o próximo jogo. Recentemente, um treinador partilhava comigo a dificuldade dessa gestão. Imaginem que preparamos a semana toda para enfrentar uma linha de 5 e, durante 3 semanas seguidas, vamos enfrentrar linhas de 5. No final dessas 3 semanas, provavelmente, haverá coisas importantes que se podem perder. Coisas que se relacionam com outro tipo de problemas. Por isso, entendo que ao longo de todas as semanas é preciso ir cuidando do todo, para que não arrisquemos empobrecer partes importantes. 

Sobretudo na pré-competição, o estudo dos campeonatos que vamos disputar parece-me fundamental na idealização da proposta de jogo. Analisar equipas e treinadores envolvidos é determinante para antecipar, ainda que com margem de erro, as possíveis dificuldades que irão surgir. Sabemos que os adversários apresentam uma grande variedade de propostas mas também sabemos que há problemas que, sem serem iguais, assemelham-se. Pressão a 3, a 2, blocos baixos, intermédios, etc. Dentro de um campeonato com 20 equipas, há problemas variados mas que já sabemos que vamos enfrentar. Se estivermos conscientes disso, entenderemos a importância da variabilidade e perceberemos também que é importante cuidar dessa variabilidade, quase todas as semanas. Caso contrário, se direcionarmos em exclusivo a nossa atenção para determinado aspeto, poderemos acabar por perder a versatilidade dos nossos argumentos.

Este é um ponto importante no caminho para o sucesso, sermos capazes de ter e manter vários caminhos como possibilidade. Dotar a proposta de uma riqueza que permita encontrar, em função do adversário, as melhores probabilidades de vitória e mantê-la, à medida que o tempo avança.

Essa gestão não é fácil. Fazer muita coisa com qualidade é difícil. É difícil apresentar diversidade de comportamentos bem trabalhados. Mas não é impossível. É preciso tempo, qualidade de treino e qualidade nos intervenientes.

Mas teremos de estar sempre conscientes que não podemos treinar tudo. Não podemos ter tudo na nossa forma de jogar, pelo menos para quem acredita na força do pormenor. Para haver padrão tem de haver repetição e entendimento. Isso leva tempo. Temos então de escolher muito bem o que treinar e a quantidade de coisas em que queremos ser fortes. Podemos ter maior variabilidade mas menor pormenor ou ter mais pormenor e menor variabilidade. O que não podemos é ter tudo. 

Talvez seja por isso que quando existe uma única equipa que defende “H-H”, num campeonato de 20 equipas, os adversários não se mostrem tão capazes de responder com assertividade. O que treinam regularmente não engloba, de forma especifica, responder a esse tipo de adversidade. O mesmo acontece com os três grandes quando são altamente pressionados nas competições europeias, ou quando lhes roubam a bola e são obrigados a defender durante mais tempo. Não se pode pedir a mesma qualidade nos comportamentos que não estão tão bem oleados, por força das escolhas que se devem fazer internamente. É essa, uma das razões pelas quais, um campeonato equilibrado nos poderia trazer melhores resultados em termos internacionais. 

Já entendemos que a estratégia pode e deve, na maioria das vezes, ser referente à nossa proposta de jogo. Escolher os caminhos que vamos seguir em função do adversário não significa fugir do que se treina. A resposta pode e deve estar dentro daquilo que já treinamos com regularidade. E isso também é ser estratega.  

Há um conjunto grande de cenários que são possíveis de prever. E é esse trabalho que é fundamental na criação de comportamentos que incluam dinâmicas tão variáveis quanto pormenorizadas. Parece-me ser essa a luta dos dias de hoje. O equilíbrio entre a variabilidade e o pormenor. Ganhar de um lado sem perder do outro. Quanto mais equilibrada for esta balança, que se quer rica de conteúdo, menores serão os riscos de recorrer àquilo que não treinámos. 

Mas nós não podemos prever tudo. E por isso, existem, em momentos de exceção, problemas apresentados que se resolvem melhor com aquilo que não é tão frequentemente treinado. Porquê? Porque a nossa variabilidade pode não chegar a alguns lugares. Porque se queremos pormenor não podemos treinar tudo. Mas são esses momentos de exceção que queremos evitar. Não queremos escolher estratégias que fujam do que fazemos bem e regularmente. Não queremos que as soluções treinadas dois dias sejam melhores que as que treinamos ao longo do ano. Mas isso pode mesmo acontecer, porque do outro lado, há gente criativa e competente que faz com que os problemas nunca sejam finitos. 

Isto não é sobre sistemas e quantidade de sistemas. É sobre soluções. É sobre a importância de dar vida a um coletivo que dependerá sempre da qualidade das ideias formadas no seu treino. 

Ter variabilidade é uma prova de humildade e um enorme desafio. É perceber que do outro lado vão existir muitas formas de nos contrariar e precisamos de várias soluções. É perceber que do outro lado estão a treinar para nos contrariar mas que também não podem treinar tudo. E é isto que torna a variabilidade com pormenor tão importante.

Se quisermos ir sempre, e só, em frente, hoje em dia só estaremos a andar para trás. 

Sobre Bruno Fidalgo 83 artigos
Licenciado em Ciências do Desporto. Criador e autor do blog Código Futebolístico. À função de treinador tem aliado alguns trabalhos como observador.

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