O certo e o errado à luz duma ideia: o golo do Al-Nassr ao Benfica

SL Benfica vs. Al-Nassr - golo de Khalid

O bem e o mal. O bonito e o feio. O certo e o errado. Que legitimidade temos em julgar, se não analisámos o jogo à luz da ideia do treinador?

Já dizia a autora Barbara Kingsolver, na sua obra A Bíblia Envenenada, que “o que temos a certeza que está certo, pode estar errado noutro lugar”. Esta é uma premissa essencial quando se realiza uma análise: só a capacidade empática de nos colocarmos no lugar do outro (treinador) e ver o jogo através da sua lente, nos permite perceber o que está certo e o que está errado.

Nenhuma lei pode ser sagrada para mim, excepto a da minha natureza. Bom ou mau são apenas nomes, prontamente transferíveis disto para aquilo; a única coisa certa é aquela que está de acordo com a minha consciência; a única coisa errada, a que está contra ela.

Ralph Waldo Emerson, in Essays

Contudo, apesar de não sermos Roger Schmidt, conseguimos identificar decisões/execuções dos seus pupilos e julgá-las do ponto de vista tático-técnico. De grande complexidade de análise, é o golo apontado por Khalid, no Benfica vs. Al-Nassr.

Não estão em causa os clubes envolvidos ou o valor dos seus intervenientes, mas sim a diversidade de opiniões que tanto pode enriquecer a análise do jogo. Porque a realidade de Schmidt não é a minha. Nem a minha realidade é a tua. E por isso é que a consensualidade nas análises é tão necessária, quanto utópica. Um Santo Graal de certeza que todos procuram, mas que nunca parecem encontrar.

Ora, observando o lance acima, deixo a minha análise, dentro da minha verdade, para discussão:

  • Dado que os jogadores do Al-Nassr estão de costas, é ativada a pressão por parte do Benfica. Mesmo partindo duma defesa à zona pressionante, é cada vez mais comum vermos as equipas que pressionam – e não só o Benfica – a “descerem” até à última referência zonal: o adversário. É, portanto, uma marcação homem-a-homem (doravante designada de hh), mas filha duma lógica zonal, e não uma forma de defender adotada como macroprincípio.
  • Após o corte de Kökçü e a recolha da sobra por parte de Di María, suponho (isto porque a imagem televisiva não o capta) que Jurásek tenha iniciado a sua progressão no terreno, de maneira a ser opção para o argentino.
  • Quando se dá a perda por parte de Di María, é notório um buraco no corredor central. Isto porque a própria desorganização do Al-Nassr acabou por desorganizar… o Benfica. Por ter aplicado uma marcação hh, os dois médios do Benfica – João Neves e Kökçü – encontravam-se demasiado descaídos para o lado direito. Este parece-me um risco assumido de Schmidt, que resulta em ganhos altos na maioria das vezes mas que, como tudo no futebol, é também falível.
    PS: colocasse eu a lente de Schmidt de lado e diria que nunca, na minha ideia de jogo, conceberia que os dois médios dum duplo-pivô descaíssem tanto e ao mesmo tempo, para o mesmo lado!
  • No entanto, as brechas causadas por uma má interpretação posicional são, muitas vezes, colmatadas com a velocidade de deslocamento dos jogadores. Ora, enquanto o Benfica pressiona do lado direito, David Neres não está a participar no jogo. Dada a sua posição oposta à do lado da bola, um posicionamento mais baixo e mais dentro poderia minimizar o “dano” causado pelo facto de João Neves e Kökçü se encontrarem do mesmo lado. Não só isso não aconteceu como, quando a perda acontece, Neres não é rápido o suficiente a recuperar posição para disputar a bola com Talisca. Imagine-se o comportamento de Kanté num lance destes e compare-se. Ou, pegando em exemplos do próprio Benfica – e visíveis neste mesmo lance – tomem-se os raides impressionantes de Kökçü atrás de Talisca e de Jurásek atrás de Khalid, ainda que em vão, como exemplo.
  • Aquando do passe de Talisca, Jurásek, que havia subido para ser opção para Di María, deixa Morato numa situação de 1×1. Nesse momento, Morato pára e “oferece” o campo a Khalid. Tivesse o central brasileiro iniciado a corrida para trás, com os apoios corretamente colocados, e teria inibido o passe de Talisca. Khalid não seguiria isolado e talvez isso tivesse feito Talisca hesitar, demorar e ficar à mercê de Kökçü.
    Do outro lado, António Silva faz exatamente o que Morato deveria ter feito, controlando a profundidade e evitando o passe de Talisca. Ao ver o lance pela primeira vez, os mais desatentos poderão dizer que António Silva não formou linha de fora-de-jogo com o colega do lado, mas não só estamos perante uma bola descoberta – pelo facto de poder entrar nas costas, aconselha-se o controlo da profundidade -, como também Khalid está em linha com Morato no momento do passe de Talisca. Ou seja, estaria sempre em jogo, mesmo que António Silva tivesse alinhado com Morato.
    De resto, o brasileiro foi, a meu ver, o jogador que teve melhores condições para evitar este golo. Acabou, no entanto, por tomar uma decisão de pormenor… que se tornou um pormaior – nunca se deveria ter fixado e permitido a fuga de Khalid.
  • Podemos ainda discutir o posicionamento de Vlachodimos. Contudo, dada a recuperação extraordinária de Jurásek e a proximidade de António Silva, parece-me ter tomado a melhor decisão ao ter ficado na baliza e evitado um eventual chapéu de Khalid, pouco depois deste ter recebido a bola. Não lhe foi possível, contudo, defender o remate do jovem saudita.

Se esta é a análise perfeita? Diria que sim, dentro da minha perspetiva. Existirão sempre padrões, verificados nas equipas por esse mundo fora, que nos poderão dar indicadores de que há sempre uma decisão melhor que a outra, ou, como diria Frade (1990), “o jogo pré-existe à ideia que dele ou para ele se tem. O problema está em saber se as ideias que dele se tem, se lhe ajustam”. No entanto, serão os valores pessoais, sociais e culturais, a ética e a moral, a pautar a análise de cada um. E, sobretudo, a nossa própria ideia de jogo.

Tudo o que ouvimos é uma opinião, não um facto. Tudo o que vemos é uma perspetiva, não a verdade.

Marco Aurélio, imperador e filósofo romano

Bibliografia

  • Emerson, R. W. (1841). In Essays. Mengeš: PeBook.
  • Kingsolver, B. (1998). In The Poisonwood Bible. Harper Perennial Modern Classics.
  • Frade, V. (1990). In A interação, invariante estrutural da estrutura do rendimento do futebol, como objeto de conhecimento científico – uma proposta de explicitação de causalidade. Projeto para a prestação de provas de doutoramento não publicado, Faculdade de Ciências do Desporto e Educação física da Universidade do Porto, Porto.
Sobre Yaya Touré 36 artigos
Amante do treino. Pensador do jogo. 💡

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