Cancelo Culture

Uma exibição fenomenal de João Cancelo cancelou um FC Porto que se agigantou em boa parte do jogo, nunca deixando sossegar totalmente os catalães. E, de facto, uma boa fatia da 1.ª parte deste Barcelona-FC Porto foi a continuação do domínio exercido pelos azuis-e-brancos aquando da recepção aos catalães no Estádio do Dragão. Um domínio e controle que atestam os benefícios de ter uma equipa com propósito e organizada, intensa, ligada, aguerrida com bola e sem bola, mesmo contra uma equipa infinitamente mais talentosa, mas que demora a encontrar um propósito claro para as montanhas de criatividade que possui. Assim, com surpresa ou não, o FC Porto escondeu (até não poder mais) o talento dos blaugrana, ao mesmo tempo que, com simplicidade e objectividade, foi-se acercando da baliza de um Iñaki Peña que saiu melhor que as normais encomendas. Isto é, melhor do que a história de habituais guarda-redes suplentes do Barça – tradicionalmente muito inferiores em qualidade ao habitual titular. E depois de vários testes (sem sucesso) a Iñaki, o golo de Pepê, nascido na insistência, prova o porquê de Sérgio Conceição não poder abdicar da matriz mais conhecida do seu jogo. O FC Porto era então uma equipa muito mais ligada, muito mais fluída e, em suma, muito mais perigosa. Contudo, o golo dos dragões, deu novo propósito aos de Xavi que, reanimados por um fabuloso João Cancelo, cresceram imediatamente no jogo. Não ao ponto de amordaçar totalmente o Dragão, mas ao ponto de no fimpoderem reclamar para si uma vitória que já mostrou vários aspectos daquela que poderá ser a melhor versão – ao contrário, por exemplo, daquilo que tinha acontecido na 2.ª jornada quando visitaram a Invicta.

Sim, este é um Barcelona que deixa dúvidas. Mesmo quando as vitórias se acumulavam e se teciam loas a João Félix&cia, o que era mostrado parecia não ser suficiente. Isto porque falamos do FC Barcelona. Um clube que carrega o pesado histórico de ter tido, por várias vezes, uma equipa que revolucionou o futebol, ao mesmo tempo que enchia o olho a quem o seguia. Equipas sempre com líderes inquestionáveis e uma proposta que congelava totalmente as oposições. Pois bem, este Barça demora em apresentar as duas coisas. Não só não domina imperialmente (porque hoje todas as equipas são melhores com bola, ao mesmo tempo que bloqueiam os espaços interiores sem ela) como demora a encontrar star quality suficiente para se tornar inquestionável. E desta versão, ainda sem um propósito claro, a esse objectivo de ser Rei e Senhor da Europa, vai um buraco onde equipas com qualidade como o FC Porto se metem.


É nesse gap que Sérgio Conceição encontrou espaço para ver a sua equipa mandar, em vários períodos, no Olímpico LLuís Companys (como já havia feito no Dragão). Uma equipa prática que foi, por exemplo, tentando sair curto e apoiado, mas que encontrou soluções quando não o pôde fazer. Uma equipa que não tricotou demasiado, mas que temporizou somente o suficiente para encontrar as movimentações certas. Em suma, um conjunto inteligente que, mais uma vez, não deixou o Barça reavivar o Paradigma 74, aquele que controla e amordaça sem apelo nem agravo os oponentes. Contudo, a noite perfeita que Sérgio pediu era algo manifestamente difícil de ser obtido. Isto é, enquanto o Barça navegou naquele limbo sem chama e sem (mais uma vez) propósito, foi mais fácil encontrar espaços ao mesmo tempo que foi mais simples roubar a bola, e tempo de domínio aos catalães. O problema é que as estratégias assentam sempre numa relação manta/corpo. A tão falada analogia das mantas curtas cobre também na perfeição a explicação para o facto de, mesmo no melhor período dos dragões, a sua linha defensiva ter de estar permanentemente alerta.

FC Porto apostado em fechar zonas interiores não conseguiu trancar a parte de fora da organização ofensiva. Xavi deu ordens para que as zonas exteriores fossem encontradas de forma célere e simples. Aqui, Cancelo e Lewandowski por fora – no lance do primeiro golo dos catalães. Por essas zonas andaram também Raphinha, Pedri e João Félix.


Isto porque, o Barcelona, mesmo não encontrando caminhos interiores, usou e abusou de um jogo directo para os espaços exteriores. Ora, um FC Porto que se esticava no terreno para discutir o jogo não podia ter os seus alas (Pepê e Galeno) a proteger o lado de fora de João Mário e Zaidu, ao mesmo tempo que precisava deles para esticar o seu jogo. Algo que os blaugrana aproveitaram por via de jogo bastante directo, nunca dando tempo aos dragões de montarem uma organização defensiva que pudesse cobrir os espaços onde João Félix, Raphinha e até Pedri apareciam. A linha de quatro ficava assim curta e o jogo ia entretendo o espectador com situações frequentes perto das duas balizas. Sim, o FC Porto assumia esse risco (nunca baixando totalmente para controlar esse aspecto exterior, pois perderia poder de fogo na frente), mas o Barcelona assumia outros tantos [riscos]. Não só o aproveitamento dessas situações foi escasso, como a linha defensiva demasiado alta via-se enrascada para controlar as muitas situações de perda e as posteriores incursões dos dragões.

O lance prossegue com João Mário a fechar em Cancelo. Mas o génio do lateral português do Barcelona (e o espaço que encontrou) provaram-se demais para uma linha defensiva um tudo ou nada distante. A aposta de Sérgio Conceição em montar linha de cinco nestas circunstâncias poderia ter alargado Pepe para uma cobertura mais eficaz. Ainda assim, caso fosse Varela a saltar para a linha defensiva, Eustáquio teria de baixar também para cobrir João Félix (e já estava atrasado pois tinha ido disputar a bola com Pedri.. Este é um lance onde a rapidez de Pedri a encontrar Cancelo define depois o posicionamento da organização defensiva portista. Depois, com o espaço referido e sem a cobertura ideal, Cancelo fez o resto.



Algo que, sem o talento de classe mundial de João Cancelo, redundaria certamente num podia dar para os dois lados. Mas foi absolutamente fantástica (quase assombrosa) a forma como resgatou uma equipa apática e (pela última vez) sem propósito, fazendo das suas incursões o ponto alto e mais perigoso de uma organização ofensiva que tem ficado a léguas da expectativa. Contudo, a forma com que Cancelo fez parecer fácil ziguezaguear defesa portista adentro, acordou o orgulho da equipa – que, como já referido, subiu (por toda a 2ª parte) os níveis de atenção e intensidade para um nível muito mais aceitável de se ver na Cidade-Condal. E enquanto por Portugal estaremos certamente, a esta hora, a fazer disto (e do golo de João Félix, assistido por… João Cancelo) um desnecessário Benfica-Porto, talvez o foco da conversa devesse ser outro: a forma como a intensidade do FC Porto tornou os dois jogos para o Barça numa subida com um nível de inclinação que não se faz a passo. É que os catalães tiveram mesmo de encontrar o que Sérgio Conceição não abdica para equilibrarem o jogo (e talvez a época, veremos). E nem assim impediram o FC Porto de ter mais duas ou três incursões que poderiam ter rendido (pelo menos) um ponto, as quais ficaram presas na já habitual falta de definição dos portistas nesses momentos-chave.

Barcelona-Porto, 2-1 (João Cancelo 32′ e João Félix 57′; Pepê 30′)

Seja o primeiro a comentar

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.


*