A (meia) Liga do Cavalheiro Extraordinário

O extraordinário, o fora-do-normal, a qualidade extra, são os factores que alguém que segue futebol, consciente ou inconscientemente, utiliza para avaliar e prever o sucesso das equipas. E esta meia Liga 23/24, por ter dois favoritos com demasiados factores abaixo do normal, começa a fazer pender as expectativas para o lado da equipa que tem, claramente, algo extraordinário. Algo que costuma (salvo raras excepções) fabricar campeões. Falamos obviamente do salto quântico que o Sporting deu ao potenciar as qualidades de Viktor Gyökeres, e falamos, também, obviamente de um Benfica e de um FC Porto aos quais não se lhes tem reconhecido esse factor extraordinário. Contudo, indo a Liga a meio não se poderão vender certezas. Sendo que a únicas que haverá serão as de que ou 1) o Sporting, e Gyökeres, baixam o nível ou 2) Benfica e FC Porto terão que o aumentar de sobremaneira.

Bem sei que a distância pontual que o Sporting conquistou, especialmente para o Benfica, não deixa antever facilidades, e que todas as equipas sofrem quebras de forma ao longo da época (daí não afastar a possibilidade do Sporting baixar de alguma maneira o nível), mas a solidez, soluções e eficácia que tem demonstrado estão claramente acima de um Benfica que tem concedido oportunidades e domínio aos adversários e acima também de um FC Porto com imensas dificuldades na criação e na finalização, e que vê as suas investidas no último terço tornarem-se em batalhas com organizações defensivas que causam falta de clarividência. Assim, será um exercício interessante olharmos para como os adversários dos três grandes (neste caso Estoril, Boavista e Arouca) actuaram, para descobrirmos valências (e falências), rotas e estratégias que poderão definir a 2.ª volta da Liga.

O positivo Estoril ao qual faltou condicionar e acabar jogadas

Todos estamos ao corrente das transformações que o Estoril Praia sofreu depois da entrada de Vasco Seabra. Melhores resultados, mas sobretudo melhor aproveitamento de um plantel extremamente talentoso e com muitos elementos que, num futuro próximo, poderão estar a lutar por objectivos mais valiosos. Na retina ficam os resultados com o FC Porto, conseguidos por vias diferentes na abordagem e naquilo que o adversário permitiu. No Dragão, com alguma felicidade mas, também, com muita organização e crença, no Coimbra da Mota – para a Taça da Liga, a dividir o jogo e a aproveitar bem o tempo com bola para criar e marcar. E foi, talvez, a pensar nessa prestação, no talento e na caminhada progressiva da equipa, que Vasco Seabra desenhou uma estratégia que contemplava a bola como ferramenta essencial para travar o Sporting. Nunca desdenhando as saídas curtas (difíceis de condicionar) e recusando ficar montado no último terço como solução, faltou ao Estoril, sobretudo, conseguir concluir os seus momentos de organização ofensiva ou, não os concluindo, fazer dessas perdas pontes. Isto é, utilizar as perdas que esses momentos com bola geraram para condicionar verdadeiramente o Sporting e tirar vantagem desses momentos para encontrar transições que lhes permitissem tirar vantagens de perdas no meio-campo ofensivo. Algo que, não acontecendo, permitiu ao Sporting encontrar os estorilistas num limbo que deixou espaço para explorar – sobretudo por alguém que do nada cria um golo ou uma jogada para golo. Subidos sem condicionar, libertaram então espaços que abriram caminhos mais amplos para um Sporting que, já se sabe, não dá contemplações.

Estoril com uma estratégia corajosa onde os momentos com bola (bastantes) serviram para atenuar algum fulgor ofensivo dos leões. Faltou a segunda parte do plano onde, no meio-campo ofensivo, as chegadas ao último terço não apareceram. Depois, o condicionamento na reação à perda foi tentado e existiu, mas não conseguiu ganhar bolas, acabar jogadas ou condicionar o suficiente para a bola não entrar depois em Gyökeres. Exemplo disso são o segundo e terceiro golos do Sporting onde a aproximação depois da perda é bem feita, mas onde faltou subir um ou dois degraus no condicionamento para impedir a saída. Mais fácil falar do que fazer, mas, ainda assim, algo imperativo para se conseguir um bom resultado na casa de um grande (apontamentos que ainda assim nada beliscam um trabalho estorilista que melhora a olhos vistos de jogo para jogo).

Os dois lados da intensidade

A conversa sobre intensidade (ou falta dela) já nos acompanha há imenso tempo. Contudo, com a chegada de Sérgio Conceição ao comando técnico do FC Porto, essa mesma conversa aumentou (e muito) de… intensidade. Não há antevisão ou rescaldo, não há opinião sobre o FC Porto ou seus adversários, onde o termo não se empregue. É de facto uma das marcas mais fortes (senão a mais forte) de todas as versões do FC Porto de Conceição, e será impossível uma avaliação aos portistas (para o bem e para o mal) esquecendo-nos dessa característica. Porém, aquilo que me parece ficar fora da equação das análises é o que isso provoca na abordagem dos adversários. E se andamos há 7 épocas a falar dessa [característica] como a principal valia e ponto de vantagem dos azuis-e-brancos, parece-me legítimo que a abordagem dos adversários seja a de criar uma contra-força a essa mais-valia. E se tivermos os últimos dois jogos em conta (Chaves em casa e Boavista fora) encontraremos um nível de intensidade também extremamente alto nos flavienses e nos boavisteiros – algo que tornou boa parte desses dois jogos num cenário a ferro e fogo, onde é extremamente complicado arranjar espaço e decidir com clarividência. A forma aguerrida como os blocos de Chaves (com linha de seis no último terço), e Boavista, cobriram a bola, e tentaram igualar (conseguindo-o várias vezes) a tal intensidade que é pedra basilar no FC Porto. Ora, se a mais-valia do adversário é essa tal intensidade, faz sentido que os adversários façam juras de a anular. E com um FC Porto com vários elementos fora da melhor forma desde o início da época, sem elementos a um nível extraordinário de momento, e com um colectivo onde a intensidade é agora muitas vezes igualada pelos adversários (que fazem bandeira disso mesmo) tem sobrado pouco para se criarem domínios absolutos, oportunidades como num passado recente e, claro está, golos (sendo por isso mesmo o ataque menos produtivo das quatro equipas do topo da Liga).

Notável o trabalho de pressing do Boavista, especialmente depois do golo do empate. Algo que se foi estendendo em crescendo até aos 70 minutos (altura em que foi notória a quebra física). Bola sempre coberta no meio-campo defensivo colocou em extremas dificuldades a construção e criação do FC Porto. É notório que para condicionar o FC Porto as equipas estão a apostar num bloco baixo de intensidade muito alta nessa zona, tal como aconteceu na partida anterior frente ao Chaves (vídeo abaixo).

Minutos do Porto-Chaves que mostram vários momentos do jogo. Organização defensiva do Chaves, só a permitir tempo e espaço aos centrais e trinco portistas. Linha defensiva de 4 com bloco médio, e linhas de cinco e seis conforme a zona da bola no último terço, retiraram largura e jogo-interior. Intensidade alta a cair na bola e ganhos para explorar transição. FC Porto com reais dificuldades em fazer fluir o seu jogo, teve de esperar por uma transição que apanhou a linha defensiva desprotegida (a quatro) para fazer o seu golo.

Tal como nos golos do Sporting em Portimão, o FC Porto teve de apanhar a linha defensiva com menos dois elementos para encontrar espaço para marcar. Recorde-se que na passada jornada, leões e dragões apanharam pela frente organizações defensivas que contemplavam linhas de seis elementos quando junto da sua grande-área.

Rafa: a instabilidade estável

Com o Benfica desta época a passar mais momentos em bloco médio ou baixo, a importância de Rafa como catalisador dos ataques encarnados ganhou novo ênfase. Mas não se enganem, Rafa já era, e desde há várias épocas, o ponto de vantagem no ataque do Benfica. Foi-o na época passada, quando o Benfica recuperava mais alto, e também quando criava mais por dentro em organização ofensiva, e continua a sê-lo nesta época de futebol mais cauteloso ofensivamente e defensivamente, graças às suas mudanças de velocidade, à condução vertiginosa e às possibilidades de profundidade que oferece. Rafa é, mesmo com o handicap na finalização, o mais parecido que o Benfica pode oferecer em relação a Viktor Gyökeres para decidir um jogo, e é muito por culpa do camisola 27, na incansável criação de oportunidades de golo, que o Benfica não deixa fugir os leões. E a visita a Arouca, como a maioria dos jogos do Benfica para a Liga, comprova-o, deixando para outra altura a conversa sobre o que poderia ou não o ex-internacional português melhorar no seu jogo. Isto porque este Benfica de nova roupagem, menos estilizada e mais comedida, vai ganhando (mesmo concedendo mais oportunidades do que deveria para um candidato) e, para isso, muito deve a Rafa que encontrou no Arouca um adversário demasiado apropriado para explorar. Muitas saídas curtas que chamavam o Benfica e que redundaram em perdas no meio-campo defensivo, no início da partida. Outras tantas que se transformaram em longas mas que não capitalizaram, num esforço que, ainda assim e a bem da verdade, foi melhorando com o decorrer do jogo. Contudo, mesmo que esses aspectos não tenham sido capitalizados de imediato pelo Benfica, o não controle da profundidade pela linha defensiva tornou-se outra via rápida para Rafa. Uma linha que foi demasiadas vezes ferida, mesmo resistindo in extremis várias (demasiadas!) vezes. Ainda assim, o Arouca podia ter visto o jogo tomar um rumo diferente visto que o seu desempenho no meio-campo ofensivo foi deveras aceitável, tal como a sua produção na fase de construção foi também aumentando progressivamente. Criou a partir de um lançamento-lateral(!) uma oportunidade de golo e desperdiçou dois erros não-forçados de Otamendi, primeiro, e Kökçü, depois, nunca conseguindo anular os prejuízos que Rafa aproveitou nas suas costas.

Minutos iniciais a mostrarem um Arouca a querer construir a partir do seu meio-campo defensivo. Um desiderato que, inicialmente, recorreu a bolas mais longas e que redundou em perdas que acabariam por demonstrar o plano encarnado. A cada ganho de bola (depois de saídas longas do Arouca) o Benfica activava o radar à linha defensiva do Arouca para avaliar possibilidades de profundidade. Algo que se transportou para outros momentos do jogo dado que a última linha dos visitados esteve sempre vulnerável à profundidade – como fica patente nos dois vídeos.

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