Amor(im) para apagar o medo

O golo é a única medida real do jogo. Tudo o resto, sem a validação do golo, é subjectivo. Sim, pode haver noção de superioridade e inferioridade, mas o golo (ou o resultado final) é a materialização da identidade, da mentalidade e da emoção da equipa. Ora, mesmo isto não sendo uma novidade, não deixam de surpreender as imensas vezes em que ainda caímos na dualidade justiça/injustiça em futebol. Ainda esta terça-feira nos contaram a enésima história de uma equipa que está sempre mais próxima do golo, que está mais sólida, que progride melhor ou circula melhor, que transita melhor e que explora espaços melhor. Não há como o negar, o Sporting foi, durante uma hora, uma equipa que esteve bastante perto de fechar o jogo, mas calha que em futebol vai uma imensidão de espaço entre o jogo perto de estar fechado e estar realmente fechado. Nesse vazio que se cria entre essas duas realidades há espaço para muitas coisas distintas. Ao revermos o jogo poderemos aperceber-nos de que o Sporting foi criando oportunidades em crescendo, sendo que as primeiras validavam a ideia de que a equipa de Rúben Amorim era de facto superior, algo que deu gasolina e nunca afectou a mentalidade leonina. Mas à medida que as oportunidades iam esbarrando nos ferros, esse espaço entre o jogo poder ficar fechado, e entre o realmente ficar fechado somente por superioridade, começou a conter várias emoções negativas.

Bem sei que este é um espaço onde se discute, maioritariamente, o lado táctico do jogo. E esse é um aspecto em que normalmente me tento focar sempre que uso esta bela oportunidade para expôr ideias. Contudo, não é, no meu entender, o plano táctico que decide jogos. É certamente algo a ter muito em conta, mas como dito acima, as identidades, ideias e emoções de uma equipa só se tornam reais quando são materializadas em golo. E, por isso, por melhor que uma equipa esteja tacticamente e, até, individualmente, não há análise táctica sem uma análise àquilo que condiciona as execuções dentro dessa mesma táctica: reações mentais e reações emocionais. Assim, claro está, à medida que uma superioridade táctica (que foi clara) não é materializada com um golo sequer, as reações podem passar rapidamente de positivas a negativas. E essa, esquecendo justiças e injustiças, é a maior lição que o Sporting pode tirar deste jogo. É que uma meia-final de Taça da Liga perdida, juntamente com a derrota no Estádio da Luz em modo dramático, podem fabricar um diagnóstico essencial para que estas oscilações emocionais não voltem a acontecer – especialmente no campeonato, que é o objectivo principal dos leões.

Como diz o ditado, só podes curar aquilo que podes ver. E o golo do SC Braga, totalmente contra a corrente do jogo, prova o que foi dito acima. É que um golo tanto muda o discurso dos comentadores, dos analistas, como muda, totalmente, a percepção dos jogadores sobre o jogo. É um momento de importância impar e é o momento que mais oscilações emocionais e mentais causa, sendo que o Sporting, à medida que ia falhando golos quase em catadupa, viu as reações dos seus jogadores passarem de um contínuo e positivo esforço, para frustrações evidentes que cresceram e se evidenciaram depois do golo dos bracarenses. E se recuarmos à época do título, veremos que o Sporting, mesmo em desvantagem e perto do final desses jogos, raramente cedia emocionalmente. Nesse espaço, entre o jogo não estar fechado e o apito final do árbitro, havia muita certeza – algo que não afecta negativamente as execuções. Porém, nesta terça-feira, esse espaço começou a encher-se de dúvidas e reações negativas, sendo que na mente dos jogadores pareceu instalar-se uma só certeza: o futebol estava contra eles nessa noite, e o golo do SC Braga confirmava essa ideia. Algo que fica patente nas expressões faciais e corporais, e na frustração e desalento que evidenciaram, cada vez mais, à medida que o apito final, e o maior medo (a eliminação) ia ficando mais próximo.

E isto não é uma crítica. É um constatar. Isto porque quando vamos ao médico e temos um diagnóstico claro da doença e do que a criou, não ficamos (acho) a pensar que o médico nos está a criticar. Como medida construtiva pegamos no diagnóstico, nos hábitos que criaram a maleita, e, construtivamente, tentamos alterá-los. E mesmo que seja cedo para dizer que há um padrão, só a simples possibilidade de isto poder acontecer mais vezes é, no meu entender, suficiente para que se reveja a abordagem aos jogos e o que a equipa pensa de si própria e do que a afecta. Isto porque na época do título, o Sporting era um outsider sem expectativas, e onde tudo o que se assemelhasse com a conquista do título era um esforço louvável. Não digo que não haveria desilusão e frustração se esse título fosse perdido, mas a caminhada pareceu dar imensas certezas e acalmar possíveis ruídos exteriores, e sobretudo conferir certezas aos jogadores de que, acontecesse o que acontecesse nos jogos, haveria sempre a possibilidade de os voltar a seu favor. Mas esta época, o Sporting, pelo fruto do seu trabalho, é o favorito à conquista da Liga. Não o era de início, mas as oscilações exibicionais de Benfica e FC Porto, quando comparadas com as do Sporting, conferem a sensação de que os leões são a melhor equipa da prova. Porém, o campeonato ainda não está fechado e se este jogo em Leiria pode dar uma lição, essa é de que nesse espaço entre algo estar fechado e não estar, a oscilação emocional pode afectar o Sporting na Liga, tal como afectou nesta meia-final.

E isto não é um desejo, um mau-olhado, uma crítica. É a antecipação de um possível cenário e uma possibilidade a ter em conta para que se possa corrigir antes de afectar mais. Em primeiro lugar, porque a ideia de injustiça é a maior perda de tempo deste desporto. A ideia de que a bola, a relva e os postes pensam sequer já é parva, e depois que pensam em favorecer uns e em desfavorecer outros, é oferecer ao externo as nossas próprias possibilidades de afectar os desfechos. Chamam-lhe sorte, chamam-lhe acaso, mas achar que os átomos que formam uma bola andam a conjurar conspirações não é de todo construtivo. E, ao reagirem de forma frustrada, ao esbracejarem efusivamente, ao olharem de forma descrente, os jogadores do Sporting estão, de alguma forma, a confirmar essa ideia de injustiça. Não vêem estas manifestações como uma oportunidade para transcenderem o medo de perder um jogo, de perderem uma competição, de verem todo o seu (excelente) trabalho, ir por água abaixo. Só isso justifica a falta de reação positiva a um golo que aconteceu a meia-hora do final.

Se pudéssemos analisar o subconsciente de cada jogador, lá encontraríamos este medo. A ideia de que alguém, ou alguma equipa, com menos trabalho (aparentemente) pode criar essa fatalidade, dá azo a pensamentos de injustiças ou de promessas não cumpridas – visto que está instituída a ideia de que quem trabalha mais e melhor colherá os melhores frutos. Está essa ideia no subconsciente dos jogadores, como está no subconsciente dos adeptos. E estará no subconsciente desses jogadores, adeptos, treinadores e dirigentes, até algum evento no físico trazer esses pensamentos ao de cima. E foi essa, claramente, a manifestação que vimos durante a meia-hora final do Braga-Sporting. Um Sporting em modo injustiça e totalmente descrente, e um Braga que viu validada com certezas uma ideia que esteve a três bolas nos ferros de cair em chacota. Uma história repetida pela enésima vez em futebol e que surge, e surgirá, porque em futebol o medo é tabu. Lida-se em futebol com o medo como uma avestruz quando encontra um possível predador: ao invés de usar as gigantescas pernas, enterra a cabeça na areia. Não percebendo os sinais, não lidando com o medo como uma manifestação mental e emocional que afecta decisões e execuções, os clubes e equipas (que garantirão sempre não ter medo algum!) enfiam a cabeça na areia com wishful thinking, do género: a sorte virará a nosso favor num futuro próximo.

Contudo, dever-se-ia fazer a distinção entre a realidade dessas ideias e o que está, realmente, a acontecer no jogo. O Sporting esteve sempre a um pequeno passo de fechar o jogo. Mas como no paradigma de Zeno começou a dividir a distância entre onde estava e onde queria estar em metades. E tal como citado no paradigma, nunca chegas à distância final se dividires constantemente a distância, isto é se andares de metades em metades nunca chegarás à distância final. Ao Sporting faltou deixar a ideia de que há justiça e injustiça em futebol, de que, com 0-0 no marcador, há estratégias, modelos, tácticas e execuções melhores do que outras. Mas, sobretudo, teria de ter parado o crescimento da ideia de que há um juiz em futebol que pode tirar dos que trabalham mais e dar a outros que, supostamente, trabalham menos. A realidade é que, com 0-0, o jogo está sempre em aberto e só há uma coisa que vai validar estratégias e dar passos firmes que não são metades: o golo. E mesmo tendo esse golo surgido para a outra equipa, o jogo não estará fechado até ao apito final. Esse foi o mindset da época do título, um mindset onde se agia em relação a uma certeza e não se reagia em função de uma qualquer calamidade que possa acontecer. O Sporting é hoje a equipa com mais recursos, tem hoje o plano e modelo mais completos, e por isso é normal pensar que sendo a melhor equipa injustiças não acontecerão. Mas se tiverem o cuidado de ler pela segunda vez a frase anterior, em nenhum momento encontrarão que o Sporting é a melhor equipa e tem hoje o melhor plano e o melhor modelo. É que em futebol isso nunca está fechado até ao culminar da época. E é por isso que a equipa que tem demonstrado melhores performances tem de lidar com esse medo, com a injusta possibilidade de mesmo estando melhor poder perder. E este foi o mindset que bloqueou a equipa em Leiria. O de estar tranquila, o de ver a big picture e de saber que pode perder, que pode sofrer, que pode haver jogos em que não está a encontrar o golo, mas que isso não é um cenário épico que, do nada, mete tudo em causa. Ao Sporting faltou, antes do golo físico, o golo mental de ter a certeza e de ser inabalável – como o foi na época do título. Mas isso, só acontecerá quando olhar o maior medo nos olhos: o medo de perder este campeonato mesmo sendo a melhor equipa. Primeiro, sabendo que melhor e pior é subjectivo. Há campeões e vice-campeões, não melhores e piores. Mas, sobretudo, sabendo que outras equipas que passaram por esses desaires conseguiram o sucesso nas épocas imediatamente a seguir. Haverá vários exemplos mas lembro o Bayern de Munique, depois de perder nos minutos finais a Final da Champions em 99, ou o Benfica que depois do golo de Kelvin conquistou… quatro campeonatos nacionais. Há que, de certa forma, desmistificar o cenário e retirar o épico da equação. O que acontecerá transcendendo realmente esse medo (que todas as equipas têm) e não confiando em sortes ou em mudanças de marés. Mas para isso há que reconhecê-lo (coisa incrivelmente difícil em futebol) para acender a luz que permitirá ver que é… irreal.

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