Marca portuguesa na Taça das Nações Africanas

A Guiné-Bissau viu terminada a sua participação na sua primeira Taça das Nações Africanas de sempre, mas deixou como testemunho uma surpresa que poucos analistas esperavam, sobretudo no empate com o país organizador, o Gabão, e na forma como disputaram o seu jogo frente aos Camarões. Estamos a falar de um país que participou em fases de qualificação, pela primeira vez, nos anos 90 do século passado, tendo, no que toca à maior prova do futebol africano, passado a ser um participante regular apenas a partir de 2010.

Desde esse ano que as equipas técnicas têm tido marca portuguesa. Luís Norton de Matos e Paulo Torres foram selecionadores da Guiné-Bissau, sendo que, nesta edição, a liderança técnica da equipa pertenceu a um veterano guineense, Baciro Candé, mas a equipa técnica estava composta por vários elementos de nacionalidade portuguesa, com João Gião a ser o responsável da metodologia de treino, Filipe Moreira como treinador de guarda-redes e Nélson Pires como fisioterapeuta.

Como sabemos, o fluxo de jovens guineenses para as equipas de formação portuguesas tem sido uma tendência da última década, acabando a atual seleção da Guiné-Bissau por ser um reflexo dessa conjugação do jogador africano com hábitos de treino e modelos de jogo implementados em Portugal. Dos vinte e três jogadores convocados, apenas três nunca jogaram em Portugal, sendo que nenhum deles foi utilizado nesta prova.

Três jogadores mereceram referências dos analistas presentes na competição, aproveitando a Taça das Nações Africanas para se apresentarem “ao mundo”. Zezinho, nascido em 1992, e que passou pela formação do Sporting, Francisco Júnior, também nascido em 1992, e com passagem pela formação do Benfica (e posteriormente pelo Everton), e Toni Silva, nascido em 1993, com passagem pela formação dos encarnados e com ida para Inglaterra representar o Liverpool. Zezinho e Toni Silva são companheiros de equipa no Levadiakos, Grécia, e Francisco está, atualmente, no Stromsgodset, de Noruega.

Dos jogadores que ainda se mantém em Portugal, o guarda-redes Jonas Mendes (Salgueiros), o defesa-central Juary Soares (Mafra), o médio Naníssio (Felgueiras) e o avançado Piqueti (Braga B), todos a atuar em divisões secundárias, também acabaram por merecer destaque. O jovem avançado bracarense foi mesmo o autor de um golo que pontua entre os melhores da competição até ao momento.

As seleções dos países de língua oficial portuguesa começam, desta forma, a confirmar uma tendência que vai fazendo escola em África. Aproveitar os valores que são desenvolvidos na Europa, beneficiando da exposição dos seus talentos a processos de formação que, por enquanto, não estão disponíveis no continente africano.

Não é por acaso que, analisados os jogadores africanos a atuar nos campeonatos profissionais portugueses, Cabo Verde (presente nas edições de 2013 e 2015, tendo atingido os quartos-de-final na primeira delas) e Guiné-Bissau sejam os países mais representados. Ou seja, num continente africano onde o foco vai, quase sempre, para países que têm relações privilegiadas com França ou Inglaterra, começou a chegar o momento de ter em Portugal o foco de atenção para quem procurar talentos africanos em desenvolvimento.

Sobre Luís Cristóvão 103 artigos
Analista de Futebol. Autor do Podcast Linha Lateral. Comentador no Eurosport Portugal.

7 Comentários

  1. Os Djurtus podiam chegar mais longe, têm talento para isso. Fez falta nesta CAN a seleção de Cabo Verde. Ambas são equipas que, com outra experiência, podem estar sempre nos quartos-de-final!

  2. O mister João Gião foi meu treinador na época passada/início desta aqui no Pinhalnovense e só tenho a dizer que a trabalhar linha defensiva foi o melhor que já apanhei!

  3. Pode ser interessante essa ligação, sobretudo ao nível do treino e da identificação de bons jogadores na diáspora. Mas para mim isso só faz sentido se, AO MESMO TEMPO, se investir nos clubes africanos em geral e na juventude que todos os dias e em qualquer local passa horas e horas agarrada a uma bola de futebol. É imperativo que assim seja, por todas as razões e mais algumas mas, sobretudo, por uma questão de lógica de desenvolvimento e de pousar os olhos no futuro.

    Caso contrário, corres o risco de estar a reforçar ligações de poder de cariz colonial (a cabeça pensadora, o know how e a capacidade de decisão está nas “metrópoles” enquanto a realidade local é meramente para provimento de mão-de-obra) e puramente economicista, de negócio puro e duro. Os melhores acabam por servir as ex-potências coloniais, mesmo ao nível das selecções. Que é o que actualmente acontece com a maioria dos cabo-verdeanos e guineenses que vão muito jovens para Portugal. Os franceses são os mestres desta drenagem colonialista.

    • Plenamente de acordo na primeira parte. No entanto, é bom não esquecer o contexto dos países de que estamos a falar. E da mesma forma que, por exemplo, o Zimbabwe funda o seu crescimento na influência de proximidade da África do Sul, para países como Cabo Verde e a Guiné-Bissau, este primeiro passo é essencial para combater o segundo.

      Hoje em dia, vês cada vez mais casos de jogadores com ascendência de Marrocos, Argélia, Tunísia, Mali, Senegal, Costa do Marfim, a escolher representar os países africanos em detrimento dos países europeus aos quais têm ligação. E isso deve-se a consolidações na identidade nacional, conseguidas ao longo de décadas em cada um destes países, bem como a organização providenciada pelas respetivas federações.

      No caso da Guiné-Bissau estamos a falar de um dos países mais pobres do mundo e, por isso mesmo, esta recuperação dos seus talentos que passaram pelos escalões de formação em Portugal parece-me um enorme feito, pela forma como poderá vir a influenciar a escolha de outros atletas no futuro. Mas, como bem tem lembrado o Luís Norton de Matos, é preciso que em cada um destes países exista uma federação com pensamento e capacidade financeira para organizar seleções de formação e criar, desde cedo, esse hábito de jogar na seleção do país.

      Como exemplo de que, neste ponto, a Guiné-Bissau está, infelizmente, acompanhada por outras nações, na Fase de Qualificação para a Taça das Nações Africanas em Sub-20, entre não inscrições e desistências, foram 20 países que ficaram de fora. Está, portanto, quase tudo por fazer no continente, o futebol é apenas uma das áreas que sofre as consequências disso mesmo.

  4. Mas essa lógica do está quase tudo por fazer é indutora de uma percepção que acaba por redundar num erro crasso, que está alinhada neste texto. Não desvalorizes quem é invisível, ponto um. Ponto dois: não, não é a diáspora europeia, nem os europeus, que vai salvar o futebol africano. Exactamente porque estas pessoas conhecem mal o futebol africano e têm uma série de preconceitos em relação a África – muitas vezes acabam por perpetuar modelos claramente desenhados e pensados de fora para dentro, claramente colonialistas.

    Algumas pessoas ou perfis da diáspora podem ajudar bastante, certamente e estou completamente de acordo, mas volto a frisar que o potencial africano no futebol não está na diáspora.

    Quanto às escolhas dos jogadores, tu sabes bem que 90 por cento fazem-no, em primeiro lugar, por razões desportivas e de potencial económico. Só depois partem para outras opções. Bissau é um óptimo exemplo: a primeira convocatória para o CAN não tem nada a ver com os jogadores que marcaram presença na competição. Exactamente porque têm outras ambições lá onde estão radicados.

    Os problemas de organização são evidentes mas primeiro é preciso pensar como se vai desenvolver uma série de coisas em países com poucos recursos humanos, sobretudo, e poucas infra-estruturas em geral.

    Mesmo assim
    tens, forçosamente, de olhar para a história para perceber o que já foi feito. O futebol é claramente uma das coisas que mais atrai os africanos em geral, o que garante o ponto essencial disto tudo: a paixão pelo jogo. A vontade de jogar todos os dias. A cultura do futebol é magnânime. O futebol representa mais do que um desporto, tem ligações políticas e sociológicas importantes. Não estamos a falar dos EUA, onde não existia qualquer cultura social ligada ao futebol.

    Depois, não podemos desconsiderar o potencial genético de muitos africanos, em termos puramente físicos, assim como não podemos desbaratar a enorme quantidade de horas de contacto com a bola que a juventude africana apresenta. A prática é muito grande e ao longo de várias gerações.

    Como vês, não estará tudo por fazer. Pelo menos o básico – a paixão, o desejo e a prática – é bastante consolidado.

    Concordo que o papel das federações precisa de ser todo repensado, ou quase todo, mas não achas estranho que em todo o CAN só existam três treinadores locais?

    Essas federações, em muitos casos, têm sido palco de actuação de uma série de malta europeia que em nada tem contribuído para desenvolver o futebol africano. Pelo contrário, juntamente com uma série de empresários africanos e de outras origens, são responsáveis directos pela sangria constante dos mais talentosos em direcção a outras paragens. E muitas vezes sem qualquer ética.

    • Edson, quando disse que estava quase tudo por fazer referia-me exatamente às federações, que estão muito mais focadas em interesses políticos e económicos do que em aspetos desportivos. Não só não tenho a mínima dúvida de que o futebol é uma cultura consolidada no continente africano (porque conheço a história, acompanho a realidade há alguns anos, não só desportiva, como política), como tenho a certeza que para muitos africanos, exatamente aqueles que estão inseridos dentro dessa invisibilidade de que falas, o futebol é uma porta de reconhecimento social e cultural de valor incomensurável.

      Depois, tenho a perfeita consciência de que muitos do modelos europeus que são impostos em África não visam aumentar a qualidade da prática no local, mas sim a recolha de um talento natural (genético, coordenativo) para um aproveitamento comercial. Aliás, esse é um tema várias vezes focado em estudos e artigos. Um modelo que nasça de dentro para fora, no futebol africano, seria o ideal, mas como te disse, o futebol é consequência, porque o continente africano tem uma larga história de intervenções exteriores que têm exatamente o mesmo problema, daí os problemas das fronteiras e dos países criados artificialmente, daí muitos dos problemas de desenvolvimento do continente que nunca teve possibilidade de fazer esse crescimento a partir da sua própria cultura.

      Se eu acho que é a diáspora europeia ou os europeus quem vai salvar o futebol africano? Claro que não! Bem pelo contrário. Preferia ver uma realidade em que o treinador africano tem mais oportunidades. Por exemplo, nas últimas seis edições da CAN, quatro delas foram conquistadas por treinadores africanos. Isso deveria ser, à partida, uma boa razão para existir mais apostas nos treinadores locais. Veremos, se este ano, o Aliou Cissé ou o Florent Ibengé, conseguem lá chegar. Mas, mais uma vez, creio que aí estão instalados interesses que têm muito pouco que ver com o futebol africano.

      Finalmente, creio que muitas vezes, quando nos focamos em situações particulares, esquecemo-nos daquele que é o quadro geral do futebol a nível mundial. E aí, não podemos ignorar que muitos dos problemas que existem em África são problemas que existem ou têm ligação em todos os outros locais do planeta. Não podemos deixar de perceber que determinadas corridas ao poder no futebol acabam por influenciar todo o quadro. E, por isso mesmo, falo daquilo que é consequência do muito que está mal. Se, nesse quadro, um país como a Guiné-Bissau consegue ir a uma CAN e ter uma prestação que lhe permite reconhecimento exterior e possibilidade de esperança para quem está ligado ao futebol no país, apesar de tudo, eu acho que é um sinal positivo. Um sinal de que alguma coisa pode, efetivamente, começar a mudar.

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