Essencialidades na preparação específica do Guarda-Redes: O perigo da (des)informação

essencialidade

es.sen.ci.a.li.da.de

nome feminino

qualidade ou estado do que é essencial

 

Vivemos na “Era da Informação”, onde esta está ao alcance de todo e qualquer um que necessite de obter uma resposta imediata a um problema concreto. Podemos até dizer que neste nosso espaço contemporâneo, a nossa existência e sabedoria se resume a saber as melhores fontes de informação que pretendemos e kaput, a resposta à nossa dúvida está ali. Mourinho disse, em 2015 em entrevista ao canal FPF 360 acerca daquilo que apelidou como Perguiça Mental que: “(…)tu és jornalista, mas se amanhã te disserem: Tens de treinar uma equipa, preparar um treino para uma equipa, tu só não crias um bom treino ao nível estrutural e só não organizas se não quiseres. Podes treinar mal! Mas só não o estruturas se não quiseres! Clica aqui, clica ali, um milhão de exercícios e já está.”

Na realidade, havendo tanta “escolha” pré-feita, onde entra a Razão e a Sensibilidade Humana que nos caracteriza?! Se nos é tão fácil reproduzir “conhecimento” como adquirimos o verdadeiro conhecimento?! Através da ponderação e avaliação criteriosa e através da experimentação em ensaio e erro e através da Inteligência Emocional que advém dessas experimentações mas também através do uso da Filosofia (aquela disciplina que a maioria negligenciava na escola por nos obrigar a pensar “na razão da razão” e coisas assim). Assusta um pouco, ou se calhar até me faz cair no snobismo do querer parecer ser, mas a realidade nua e crua é que o meu percurso académico se reduz a um período de Agosto de 2009 a Abril de 2010 na Universidade, a um ensino secundário regular numa escola numa área dos subúrbios de Lisboa e logo aí, caí em desmistificação o mantra do conhecimento adquirido através das aulas e das boas notas e estudo. A filosofia “desdenha e define o porquê de todas as coisas, que são e não são” – Platão e, como diria Merleau-Ponty: “A Filosofia é um despertar, para ver mais e transformar para melhor o nosso mundo. Só transformando podemos ser plenamente conscientes de nós mesmos.” E porquê toda esta lengalenga sobre Filosofia?! Simples e eu passo a explicar: existe um acesso sem fim a programas de treino online, apoio logístico (tipos diferentes de bolas e de acessórios de treino), software de apoio à organização e planeamento de sessões, ciclos inteiros! Um sem fim de possibilidades. Eu, pessoalmente, não tenho nenhum vídeo online, partilho o meu conhecimento da forma que sei e posso, porque tenho 32 anos – sei tanto ou tão pouco e nunca o suficiente – e o pouco que tenho para dar depende de duas coisas essenciais: os meus Guarda-Redes e a minha sensibilidade.

Eles são o meu mundus officium, o mundo onde opero. É neles que eu vejo e analiso as suas necessidades, lacunas, pontos fortes e fracos (a necessidade aguça o engenho, já dizia o povo) e, face ás necessidades urgentes deles, eu utilizo a minha sensibilidade e capacidade operacional adequirida dia após dia, para polir e aperfeiçoar as necessidades técnicas, táticas, físicas e mentais dos meus atletas. Utilizo material de apoio?! Absolutamente. São, se não, ferramentas para o meu trabalho. Se, em altura em que quero promover alguma variabilidade no processo de treino recorro a ideias de fontes externas ao meu conhecimento, como fonte de inspiração? Sim, recorro. Se os uso como os vejo?! Não, nunca e o porquê é simples: não se trata uma Bronquite com Antigripine. Os sintomas são semelhantes no inicio, mas na realidade estamos a lidar com maleitas diferentes, dores que têm desenvolvimentos diferentes e que resultam em doenças distintas com desfechos distintos. A comparação pode soar idiótica, mas está muito cerca à realidade: estamos tão rodeados de informação que quando chega a altura de operacionalizar, trabalhamos como vimos na Internet ou em qualquer outra fonte sem atentar a que o Guarda-Redes do vídeo não é o vosso Guarda-Redes. Por vezes caímos na parábola de trabalhar o João com trabalho executado por Claudio Filippi a Gigi Buffon, sem atentar que o João e Gigi Buffon não são a mesma pessoa. São Humanos, partilham uma paixão, mas têm necessidades diferentes, a nível competitivo, físico, técnico, tático, mental, diferem culturalmente. São maleitas diferentes. 

Se um Guarda-Redes será para sempre um reflexo dos treinadores com quem já partilhou vivências, pois este é um Catalizador dessas mesmas Vivências, será que estaremos a desenvolver da forma correcta os nossos Guarda-Redes e com isso a desenvolvermo-nos da forma correcta como Treinadores de Guarda-Redes? Será a partilha isolada de experiências a única forma de desenvolvimento para um Guarda-Redes e para o seu Treinador Específico?! Conseguir, por exemplo, filmar as sessões de treino, sobretudo na fase em que esta decorre com o Guarda-Redes integrado em contexto colectivo, nas mais variadas formas jogadas e promover uma breve análise pós-treino com os Guarda-Redes cativa estes a desenvolver um Growing Mindset (uma teoria interessante de Carol Dweck que merece uma análise posterior). Estaremos nós a transformarmo-nos em Destreinadores, como descreveu Mourinho ao site MaisFutebol aquando do lançamento da sua primeira Pós-Graduação Treino em Futebol de Alto Rendimento, na FMH? É imperativo atentarmos a ser mais radicais, mais ousados na maneira como abordamos o nosso processo de operacionalização do treino de Guarda-Redes, ponderar e incluir a sessão no Guarda-Redes e não o oposto, nunca permitindo o surgimento de dogmas em relação ao treino. O treino acontece porque existe alguém que se quer desenvolver, esse alguém é presente e único, não é outro, é aquele. Erros, vicissitudes, experiências, serão para sempre únicas da Ego do Ser (Guarda-Redes) e depois canalizadas para o Ego Grupal (outros Guarda-Redes, Treinador) e aí, o tal Catalizador de Vivências (Treinador) tem a obrigação de potenciar a permuta de ideias e experiências, obtendo o momento da aquisição transcendental de conhecimento, tanto ao nível individual como ao nível colectivo.
Em jeito de conclusão, refiro que somos nós, os Treinadores Específicos de Guarda-Redes, que temos como principal função guiar e ajudar o Guarda-Redes a encontrar o caminho mas, se nós mesmos não nos atrevermos a pensar fora da caixa e ousar questionar, ninguém evolui, estagnamos e somos o mesmo que eramos quando começámos a ler este texto.

 

Sobre Pedro Espinha 5 artigos
Coordenador do Departamento de Treino de Guarda-Redes e Treinador de Guarda-Redes do Lyn Toppfotball, e da NFF (Federação Norueguesa) nos escalões de formação. Passagem pelo Stabæk Fotball (Treinador de Guarda-Redes e Treinador de Formação), Bergsøy IL (Treinador de Guarda-Redes, Analista, Treinador de Formação e Coordenador de Children Football) na Noruega, e pela formação do SL Benfica, onde foi treinador e exerceu funções de Técnico Auxiliar de Coordenação. Apaixonado pelo treino, desenvolvimento e pelo Jogo, e sobretudo pela posição específica do Guarda-Redes, possui o curso UEFA B e A de Treinador de Guarda Redes.

4 Comentários

  1. Pedro grande estreia sim senhor. Muito boa leitura. O melhor elogio que posso fazer é comparar o teu texto a uma daquelas defesas impossíveis do Buffon 🙂 até podes imaginar o bruah das bancadas.

  2. Gostei muito do que li porque também preconizo o mesmo pensamento em relação à ‘inclusão da sessão no Guarda-Redes e não o oposto’.

    Parabéns e votos de um bom trabalho por terras nórdicas.

  3. Mange takk Pedro. Por momentos pensei que fosses o teu homónimo mais veterano, uma lenda do Salgueiros e dos GRs que mais gostei de ver actuar em PT. Por motivos afectivos espero que o Lyn se “queime” em Bergen, mas de resto muito sucesso.

    Ler o teu artigo remeteu-me para Maquiavel. N’O Princípe diz ele que «acontece com isto o que os médicos dizem do tísico, que no princípio o seu mal é fácil de curar e difícil de reconhecer; com o andar do tempo, não o tendo a princípio reconhecido nem medicado, torna-se fácil de reconhecer e difícil de curar. O mesmo acontece nas coisas de estado: porque, reconhecendo-os à distância, o que não é dado senão a um prudente, os males que nele nascem depressa se curam; mas quando, por não os ter reconhecido, se deixam crescer de tal modo que todos os reconhecem, não há mais remédio»

    O «ponderar e incluir a sessão no Guarda-Redes e não o oposto» faz-me lembrar vezes e vezes em que olhas para um GR e a forma como a equipa parece desligada dele. Quer quando ataca quer, especialmente, quando defende, não se sente uma ligação, são dois mundos à parte. E depois acontecem tragédias por culpa do GR a quem a defesa não cobriu convenientemente, porque este ao contrário do antecessor tem o lado “esquerdo” mais fraco.

    Esperamos ouvir mais coisas de como é defender os redes num país que liga mais à Premiership do que ao (aborrecido) campeonato local. Outra vez os gajos de Trondheim né?

  4. E esqueci-me de mencionar as duas fotos de treinadores de GR que acho que são top. Em especial Silvino. Ainda no outro dia falava com os “companheiros de tasco” que tudo aquilo em que Silvino toca se torna ouro. Haverão qualidades intrínsecas, mas com ele os bons passam a muito bons.

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