Rui Faria – Periodização Táctica, Valores, Cristiano Ronaldo e a Gratidão Latente a José Mourinho

Há uns meses Rui Faria deu uma entrevista para o The Times (Henry Winter), entretanto já deu início à sua primeira experiência como treinador principal, no Al-Duhail S.C. (Qatar). Tendo assumido a equipa a meio da época, ficou em 2º lugar atrás do Al-Sadd de Jesualdo Ferreira. Nesta entrevista abordou alguns temas ao de leve e nós vamos tentar acrescentar um pouco daquilo que pensamos sobre eles.

1. Periodização táctica e a desconstrução de ideias estereotipadas. A aceitação duma outra forma de fazer e o entendimento do que se faz:

<<No Inter, eles diziam: “na última época víamos o preparador físico em cima da bicicleta e punha os jogadores a correr às voltas nesta pista, porque não fazes o mesmo?” e eu respondi: “pela mesma razão que os atletas não jogam futebol para melhorar a sua técnica de corrida”, eles começaram a rir-se. Nunca ninguém tinha parado para se questionar.>> Rui Faria

Tanto no jogo como no treino importa pensar no porquê de se fazer o que se faz. Questionarmos o porquê de se fazerem as coisas (questionar porque se quer entender e não questionar para condenar). Depois há a capacidade de convencermos as pessoas na estrutura e os jogadores, isso é outra questão e talvez seja o mais difícil, mas antes disso estará a importância de educar as pessoas para que percebam o porquê. Se é difícil mudar quando são adultos, então fará sentido que na formação se habituem as crianças a pensar no porquê de se fazerem as coisas. Para dar outro exemplo, o conceito de “Abrir o campo”, estará isto de tal forma enraizado que já se tornou numa obrigação ou é verdadeiramente entendido o porquê?

2. O respeito pelas crenças, mas sem deixar de fazer o jogador pensar e questionar aquilo que sempre fez.

<<Em Madrid a propósito do trabalho intensivo do C.Ronaldo no ginásio. “Eu disse-lhe ‘Com isto vais perder mobilidade e agilidade, e um rapaz como tu vive da velocidade com a bola, tu tens muita habilidade para o drible.’ Mas nunca lhe disse para parar, só lhes abria as mentes para uma abordagem diferente.”>> Rui Faria

Proibir de fazer quando alguém acredita tanto que o trabalho no ginásio foi o que o tornou no melhor jogador do Mundo, ou noutros casos, impedir alguém de fazer aquilo que durante toda a vida consideraram ser vital para o seu crescimento (como por exemplo rezar, ou um amuleto da sorte, ou umas corridas à volta do campo) seria mais nefasto do que benéfico. Mas ainda assim colocar a nossa semente e fazê-los pensar não custa nada e se do outro lado estiver alguém maduro irá perceber que com certeza os treinadores só querem ajudar.

3. A Mentalidade que faz dum “grande jogador” um “muito melhor jogador”.

<<Eu trabalhei com vários bons profissionais, mas o C.Ronaldo é talvez o melhor no seu desejo de ser melhor a cada dia. Podíamos chegar ao campo de treinos às 04:00 (madrugada) após um voo e ele queria água fria, água quente e pedia a alguém para lhe dar uma massagem. Podia acabar um treino ficar mais uma hora a marcar livres ou a fazer uma acção como vir para dentro e rematar. Enquanto miúdo, com 12 anos, deixar a Madeira para ir para o Sporting, porque tinha um sonho, uma paixão… e ele construiu a sua carreira baseada na paixão e no trabalho árduo. Respeito-o muito.>> Rui Faria

Independentemente de ser determinante a massagem, os livres extra ou não, o que importa perceber é a intenção por detrás disso. Que mentalidade tem alguém que prescinde de tempo com a sua família, que prescinde de tempo de diversão com os seus amigos, para ser melhor a cada dia? Não é falta de amor pela família com certeza, mas é necessário existir uma paixão muito grande e uma vontade enorme de ser melhor naquilo a que se entregou de alma e coração – ser jogador de Futebol.

4. Tudo começa com questões lógicas, que nos direccionam para a especificidade das coisas.

<<Eu joguei a um nível baixo, mas conseguia ver (soluções). “Treinámos 3 vezes por semana, então porque é que andamos a perder tanto tempo a correr à volta do campo? Devíamos estar a treinar especificamente para o jogo.’>> Rui Faria

<<Quando viemos do Porto para o Chelsea (2004), viemos com uma filosofia. José (Mourinho) era o novo homem no futebol que quebrou todas as regras, com épocas fantásticas no Porto, onde ganhou tudo (…)>> Rui Faria

Quando começas a pensar em Futebol e se não haverá uma forma de melhorar o jogo, o jogador e evitando lesões ao mesmo tempo… Sim isto são preocupações da Periodização Táctica. Esta metodologia entende que para que a “Táctica/Organização/Princípios de jogo” se manifeste no seu auge a cada Jornada é necessário que todas as dimensões do jogo surjam coordenadas (não se trata de me deslocar sem um sentido, desloco-me porque sinto, “entendo” e antecipo) e é esta coordenação que se treina. Porque decidir mal prejudica o jogo, decidir só em função do que eu tenho na cabeça, sem contemplar o resto (colegas/adversários/bola/espaço) prejudica o jogo da equipa, jogar com um corpo cansado, sem agilidade e sem fluidez para um jogo que se quer imprevisível (individual e colectivamente) também não serve, pois prejudica a equipa e o próprio jogador, jogar tendo conflitos com o treinador ou com companheiros prejudica o jogo, ter medo de ter a bola atrás por medo de errar também prejudica o jogo, falta de fineza na hora de tocar a bola, como é óbvio, também prejudica a forma de jogar. O que a Periodização Táctica contempla é tudo isto em simultâneo com a ideia como orientadora daquilo que se faz no treino (Recuperando/Adquirindo).

5. Convencer os Jogadores.

<<O Lampard estava habituado a correr à volta do campo durante o treino, até que o Rui Faria o abordar: “O pianista que vai dar um concerto não corre à volta do piano nem faz flexões apoiado nos seus dedos de forma a se preparar.”>>

Com todos os preconceitos que levamos dentro esta é das tarefas mais difíceis, porque cada pessoa é um conjunto de hábitos e de ideias pré-concebidas seja com base em estudos, livros ou informações recolhidas com base nas suas experiências. Não raras vezes acreditamos que coisas acessórias foram as que nos catapultaram para o nível alto que alcançamos, e ninguém pode negar o poder da crença. “A fé move montanhas” e é verdade, seja ela religiosa ou filosófica. Por isso criar hábitos “de raiz” é mais fácil do que desconstruí-los para criar novos conceitos.

6. “Outros tempos” – outras posturas perante quem lidera.

<<Há uma grande mudança (no Futebol). As pessoas agora questionam quem lidera. Parece que toda a gente sabe tudo, então quando pedes para se fazer determinada coisa, algumas vezes duvidam do que dizes. Antes havia carácteres apaixonado por futebol, com uma enorme vontade de aprender e de fazer bem, jogadores como Drogba, John Terry, Frank Lampard, Ricardo Carvalho, que veio connosco do Porto (…)>> Rui Faria

Não é problema nenhum que as pessoas demonstrem interesse em saber mais sobre o jogo ou sobre a forma como se treina (bem pelo contrário), o problema hoje em dia é que as pessoas não querem saber do porquê querem é dizer que não é assim e é melhor de outra forma, cada pessoa quer interferir naquilo que se faz. “Questionar” hoje em dia é isto. Por isso o desafio não é explicar às pessoas… o Desafio é levar as pessoas a QUEREREM ENTENDER. Este é o grande repto que os treinadores têm hoje em dia.

7. As modas que se misturam com as crenças – da aparência ao (suposto) alto-rendimento

<<Hoje em dia há uma vontade muito grande em mostrar no Instagram ou no Twitter vídeos de jogadores a trabalhar em casa com um Personal Trainer. Isto é a pior coisa que pode acontecer em Alta Competição. Tu tens um programa no clube, gente que gere a tua saúde e de repente vais para casa e dizes a alguém que queres ficar mais forte. OK, ele deixa-te mais forte, mas não tem em consideração o que está a ser feito no clube ou a fadiga do jogador e isso é mau para ti. É uma doença moderna.>>

Quem mais perde é o jogador, os treinadores e o clube. O treinador tem todo o interesse em que o jogador melhore e mais ainda em que o jogador não se lesione, portanto parece-me óbvio que a opinião do Rui Faria deve ser levada muito a sério, não só por ter estado muitos anos a Top (com 50/60/70 jogos por época), mas essencialmente por serem treinadores e terem visto os malefícios que isso tem no corpo e no desempenho dos jogadores.

A prioridade terá sempre que ser o treino que tem em vista recuperar os jogadores para que possam estar no pico de forma a cada jogo (de semana a semana ou de 3 em 3 dias). Isto em simultâneo (limitados que estamos pela primeira prioridade) com um desenvolvimento/manutenção das dinâmicas e do crescimento do jogador dentro do jogar da equipa. Ora, se o treinador para além disto tiver que contemplar a fadiga do treino no ginásio, o tipo de contrações estimuladas no treino com o personal trainer e as repercussões que isso teve em termos fisiológicos e que, obviamente, condicionam o que se pode fazer, vamos facilmente perceber que mais limitada estará a disponibilidade dos jogadores para a aquisição das prioridades referidas anteriormente, limitando também a criação de uma forma de jogar que se pretende fluída.

O jogador em “modo máquina” é o paradigma em que vivemos hoje e infelizmente parece não haver grande alternativa em relação a esta visão. Muitas vezes, pelo pouco poder que o treinador tem no clube e também porque como referimos anteriormente existem crenças que dão bem estar ao jogador que não podem nem devem ser ignoradas, devemos interferir naquilo que realmente consideramos que irá ser determinante e por isso resta-nos, naquilo que poderá não ser essencial, perceber que esse treino “extra” é um dado adquirido e tentar dar alternativas dentro do clube ao jogador, ou então estar atento ao que é feito e procurar reduzir o eventual impacto negativo que isso possa ter no seu corpo e no jogo da equipa.

a) Entrevista de Rui Faria ao “The Times” – publicada a 29/Set/2018

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Sobre João Baptista 19 artigos
A paixão por Futebol conduziu-o até à FCDEF (Universidade do Porto), onde o Professor Vítor Frade viria a ser uma grande influência na busca constante da essência do jogo e do treino. Com passagens por FC Porto B, FC Porto (Dragon Force), Valadares Gaia FC (feminino), AD Sanjoanense e EF Hernâni Gonçalves, desde 2016 que se encontra na China, de momento num projecto de formação ao serviço do Zhichun FC. A página/o blog "Bola na Árvore" são reflexões de quem vai à procura da essência do jogo, da formação, do treino e da vida que se manifesta no futebol... na busca incessante vai-se aprendendo.

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