Que Indivíduos/Jogadores estamos a formar? Que Vida/Jogo estamos a propensiar?

Em primeiro lugar, começo por expor algumas ideias retiradas do livro de Carlos Neto, Libertem as Crianças. Livro importante para quem quer perceber melhor o que é um Indivíduo e o fenómeno antropossocial (estando o FUTEBOL necessariamente implicado) em que crescemos e vivemos! No fundo, para quem quer ser melhor, enquanto pessoa e humano – pensar o passado, o PRESENTE e o FUTURO (codificação de uma temporalidade).

A evolução das espécies aconteceu por meio da seleção natural, bem como, pela empatia e pela cooperação intra e entre espécies, de uma forma cognitivamente e intuitivamente intrínseca a cada ser vivo! Foram criadas condições para que existisse vida na Terra até surgir o homem e a mulher como expoente máximo da expressão da vida. Contudo, ao longo dos anos fomos ignorando condições essenciais para o nosso crescimento e correto desenvolvimento (como um Todo!) enquanto indivíduos participativos no presente e futuro da humanidade e sustentabilidade do planeta. A massiva industrialização e “venda” (no sentido explícito, de troca monetária e no sentido implícito de colocarmos uma venda nos olhos, tornando-nos sonâmbulos) às necessidades mais supérfluas tiraram a vida às cidades e às pessoas. Com isso, roubámos a parte mais significativa e significante da nossa vida, a infância!!

(Entrevista Professor Vítor Frade, FADEUP)

Nós, homens e mulheres, somos o ser vivo que tem a infância mais prolongada e, está mais do que provado, que é durante este período de cerca de 20 anos (!!) que criamos o nosso EU, possuidor de um conjunto de valores e princípios, que serão o nosso suporte ou a nossa forma de atuar o resto da vida – processo de ACULTURAÇÃO (a própria expressão remete-nos para o que é fundamental para a aprendizagem; as (con)vivências de CORPO INTEIRO, numa CULTURA, na AÇÃO, dentro de um espaço e de um tempo). Se colocamos as crianças a viver dentro de uma bolha (julgando ser o mais benéfico para estas), onde não há autonomia para assumir riscos, para brincar livre e espontaneamente, para socializar, para criar amizades e inimizades, como estamos a preparar o seu futuro, numa vida que acontece sobretudo com caos, com inconstância e que cada vez mais exige que sejamos inovadores e criativos? “Criança saudável tem os joelhos esfolados”(!), afirma Carlos Neto. O Jogo e o Brincar são determinantes para as crianças crescerem de forma sustentada e coerente (todas as espécies no início da sua vida necessitam da fase da descoberta, do brincar). Por isso, é urgente voltar a democratizar as cidades e trazê-las de volta para as crianças, para que estas se sintam parte da sociedade, com autonomia e segurança, para se expressarem, para se moverem de forma livre (sem agir livremente) e se sentirem incluídas e parte integrante do futuro, não apenas parte do futuro porque o tempo assim o dita. A escola, espaço crucial, para além do familiar, para o desenvolvimento e APRENDIZAGEM AUTOECOHETERO das crianças, tem que passar a ser, verdadeiramente, um espaço de ensino/aprendizagem, onde se promova: a pertença, a autonomia, a partilha, o conflito, o contacto com a natureza, a reflexão, a crítica, o elogio, a troca de ideias, a imaginação, a criatividade…a escola atual está mais do que ultrapassada, já o sabemos, mas pouco ou nada fazemos para alterar esse paradigma – o modelo: alunos sentados e professor debita informação como, metaforicamente, esponjas absorvem água da torneira (esquecemo-nos que depois de as espremermos, as esponjas com pouco ou nada ficam), não tem qualquer sentido nem direção! A aprendizagem tem que envolver o Corpo todo! Qualquer pessoa se envolve e apreende mais em qualquer que seja a atividade se estiver de “corpo e alma”, sentindo-se parte interativa e participativa do projeto (binómio coletivo/individual) – a concentração não é a luta por estar concentrado, é sim, estar subconscientemente implicado, com prazer no que se faz. De facto, não somos todos iguais, as necessidades de um não são, de todo, as necessidades de outro; os estímulos que necessita o Joaquim não são, com certeza, os mesmos que precisa a Rita; o futuro do António não vai ser o mesmo relativamente ao da Joana. Atualmente, educamos e formamos para que sejam todos e todas iguais, independentemente dos seus interesses e motivações maiores (tens que ser bom a português, a matemática, físico-química, ciências, porque é isso o que a sociedade exige, pois essas áreas são o futuro, dizem os entendidos…ser médico ou engenheiro é o que todos têm que ser. Tiraste má nota ou não gostas de música ou de educação física? Não faz mal, o teu Corpo e a tua Expressividade não interessam para nada, porque são acessórios do essencial, dizem os entendidos. Aprender é com a cabeça, por isso, senta-te, cala-te, está quieto, ouve e tens (?) de estar concentrado, porque o adulto entendido vai começar a falar). Acrescento ainda mais uma nota: um estudo revela que os reclusos têm mais tempo livre e de recreação do que as crianças de hoje em dia…no mínimo, isto deveria ser perturbador para todos nós!

Assim, O JOGO e o BRINCAR têm que estar permanentemente na vida dos mais jovens, não sendo apenas parte do (pouco) tempo livre de que dispõem, mas sim, como o lado mais importante deste período da vida deles, funcionando como o alicerce para uma melhor e mais producente aprendizagem do português, da matemática, da física, etc.

Concomitantemente, discutimos inúmeras vezes sobre o que devemos ensinar e/ou fazer aprender na formação, nomeadamente no futebol e a grande dúvida é, invariavelmente, se devemos focar-nos na técnica (tornando o jogador o mais capaz possível no conforto com a bola) ou se devemos exacerbar a tática (tornando o jogador o mais capaz possível no conforto com o jogo). Antes demais, é importante relembrar que o Jogo começou sendo Jogo, tinha tudo…bola, balizas, colegas, oposição, limites do campo, regras e jogo. Se andávamos mais juntos, mais afastados, passávamos com a parte de dentro do pé ou usávamos o pé mais fraco, acima de tudo, era JOGO (e as circunstâncias “encarregavam-se” de nos aportar  diferentes recursos e um critério congruente com a nossa capacidade enquanto CORPO, como todo, AutoEcoHetero Engendração)!

(Entrevista Professor Vítor Frade, FADEUP)

Deste modo, dentro do Jogo há espaço para todas as “táticas”, “técnicas” e “físicos” que queiram, mas nenhuma atua sozinha ou é sub/sobrestimada.  O objetivo é ganhar, seja de que maneira for…é marcar o golo da vitória, é fazer o corte que vale a vitória, é ter o orgulho de ser o vencedor. No fundo, é um espaço que promove: a superação, a transcendência, a empatia, a socio afetividade, a democracia, o descobrir, o imaginar, o criar, o inovar, entre outras coisas, pois a subjetividade é inquantificável. Portanto, quando pensamos em formação temos, necessariamente, que pensar nos jogadores, no indivíduo! Enquanto treinadores temos a responsabilidade de olhar para o talento de cada um, identificá-lo, potenciá-lo e, se possível, maximizá-lo! Não temos o direito de condicionar o potencial de cada um. Como e de que forma podemos e devemos fazer isto? (temos dois médios que só jogam em passe, podem jogar juntos? Temos dois extremos que só vão por fora, podem jogar ao mesmo tempo?…). Primeiramente, temos, necessariamente, que tecer um juízo de valor sobre o jogo, ou seja, Jogo há só um, no conjunto de regras e limites estabelecidos para todos, mas a(s) Forma(s) como o jogamos são infinitas. As idiossincrasias de cada país, ou seja, de cada jogo influenciam a forma como o jogamos e moldam o jogador que o joga (em tudo o que constituí qualquer ser humano: fisiologicamente, biomecanicamente, neuralmente, ao nível muscular, celular, etc). Importante recordarmos que é com e no JOGO (TODO) que isto acontece e se desenvolve, seja um jogo de 5×5, 3×3 ou 11×11. O corpo aprende contextualmente, isto é, aprende com a emoção, com a recordação e com a imagética. O antecipar e pré ativar regiões somatossensoriais, recordando situações vividas semelhantes e relacionando-nas com a circunstância vivida no aqui e agora, torna-nos capazes de agir de forma mais harmoniosa, em menos tempo e, sobretudo, complexificando o gesto E FORMA como o fazemos (PLASTESPECIFICIDADE PRECOCE). Para tal acontecer, o Corpo precisa de apre(e)nder na vivência de algo idêntico ao que está a acontecer no aqui e agora, precisa de espaço e de tempo para se encontrar e se sintonizar com a exatidão e a precisão. Ou seja, nós, treinadores, temos que estabelecer Um critério para o Jogo, que pretendemos “passar” aos jogadores como uma intencionalidade/sentimentalidade COLETIVA e INDIVIDUAL.

(Entrevista Professor Vítor Frade, FADEUP)

A partir deste momento, a nossa arte, o nosso saber sobre um saber fazer (a contrução da coisa…) será fundamental. Através da interação e sinergias que se estabelecem entre os jogadores é que vamos ser capazes de perceber quais os jogadores mais habilitados para jogar o nosso Jogar. Não nos adianta de nada ter um médio centro que joga muito bem em passe e outro que joga muito bem em condução, se eles não encontrarem um lugar onde o jogo de um e o do outro se encontrem e se potenciem (sempre com a nossa Intencção Prévia, Ideia como suporte!!).

Para que não haja confusão, o papel do treinador é fazer aprender, mas também, ensinar. Fazemos aprender pela propensão e configuração que damos aos nossos treinos, mas também, através da nossa intervenção, ensinamos. Isto é, quando nos apercebemos que algo está a impedir a manifestação do nosso jogar em jogo, seja o problema individual, setorial, intersetorial, etc, devemos intervir sobre isso! Havendo toda a legitimidade para intervir/treinar sobre a mais ínfima parte (que, na realidade, é um pormaior), como por exemplo, a orientação corporal ou sobre algo mais abrangente como a articulação e sintonização de um setor ou dupla.

Todos nós adoraríamos que existisse mais futebol de rua e queixamo-nos que a falta dele está a inibir a criatividade e engenho dos jogadores. Sendo assim, enquanto treinadores o que é que fazemos para que isto aconteça? O que é que defendemos e propensiamos em treino para que consigamos, de certa forma, fazer regressar o futebol de rua para estas gerações? É com treinos em que o jogo aparece durante 30 minutos, três vezes por semana, e o resto do tempo estamos a treinar conceitos “táticos” ou técnicos? Se apregoas o regresso do tão aclamado (e fundamental) futebol de rua, é lógico defenderes que o importante desde os 4, 5 ou 6 anos é que os jogadores saibam o que é um passe, uma receção, um remate ou uma finta? Por outro lado, se defendes a importância do futebol de rua, é pertinente andares a pedir a míudos de 7, 8 ou 9 anos que o passe tem que ser para o lateral, depois para o médio centro, depois para o avançado e depois um remate para a baliza? A “selvajaria” é uma parte crucial do jogo e do treino, pelo “desenrascar” e Inteligência que despoleta, que queremos que os jogadores tenham em si, para, no futuro, (re)conhecerem situações semelhantes e agirem, não só, reagindo a estas, mas antecipando (velocidade das velocidades) e prevendo o que vai acontecer para melhor fazerem.

O pensamento linear, quadrado e geométrico leva-nos ao controlo e à razão. Qual é afinal, o papel da ciência? É a procura de uma racionalidade e veracidade naquilo que estudamos? Ou o caminho será convergir com a Humanidade e ir de encontro à sua antropossocialidade (“mais que total”), onde o incerto, o fractal e o espaço imagético estão livres para serem descobertos?

“Porém, será que temos ideias claras quanto ao lugar da ciência na totalidade da vida humana – o que deverá exatamente fazer e por que fins se deve pautar? Este último aspeto é crucial, pois, a menos que a ciência seja orientada por uma motivação consciente ética, em especial pela compaixão, os seus efeitos podem não ser benéficos. Na realidade, podem provocar grandes danos.” (Dalai Lama, 2006).

Sobre RicardoCarvalho 5 artigos
Treinador de Futebol. Refletir sobre futebol...é modelador, é corpóreo. O Corpo que o joga e o Cérebro que o sente.

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