Bulo e Peste

O primeiro teste da Seleção na defesa ao título conquistado em 2016 trouxe-nos várias decisões que farão as delícias de quem, desde quase sempre, tem uma arma apontada aos selecionadores. E Fernando Santos, mesmo no alto do Europeu e da Liga das Nações conquistadas, não estará imune. O amigável contra a Espanha trouxe os primeiros alarmes, mas dos razoáveis pedidos para o aumento da intensidade competitiva (que esteve vários furos abaixo de nuestros hermanos), a enxurrada de críticas à opção pelo duplo-pivot neste jogo contra a Hungria e o pedido ad infinitum pelo assumir do jogo com imenso jogo interior, esses, roçam a utopia. Assim, por mais que chateie quem mede todas as equipas pela bítola que Pep Guardiola deixou em Barcelona (para não voltar ainda a encontrar), a Seleção de Fernando Santos preferiu não bater de frente com o muro que a Húngria ergueu para se defender. E para minimizar as chances das saídas dos da casa, o Engenheiro confiou que Danilo e William dariam conta do recado.

As dificuldades para se encontrar jogo interior são hoje bastantes e devem ser tidas em conta. O jogo de Portugal contra a Hungria não foi, obviamente, excepção e muitas das opções de Fernando Santos tiveram conta essas dificuldades que a maioria das ‘análises’ esquece



Assim, rejeitando as incursões interiores por dentro de uma organização defensiva bastante densa nesse espaço, William e Danilo não foram, em grande parte do jogo, problema mas sim solução para uma equipa que escolheu jogar com o espaço exterior que o adversário lhe deixava e que preferiu (durante toda a 1.ª parte) quebrar linhas com passes mais verticais. Tudo para evitar momentos como o que se viveu aos 80 minutos, num lance que poderia deixar em xeque a presença portuguesa neste Euro’ 2020. Não vamos assim fazer de conta que Fernando Santos não pensou minimamente nas escolhas, nem no risco que este jogo trazia. Não vamos também mascarar que as organizações defensivas estão hoje muito mais capazes em fechar os espaços interiores, e que essas incursões são de muito maior risco no presente do que o eram há (mais de) uma década. E talvez assim possamos ser razoáveis e não entrar na mesma cantilena de sempre – a mesma que se dita por uma ideologia cansada que não tem em conta adversários e que ganha jogos só por meter um determinado tipo de jogador e desenhar um determinado tipo de sistema.



E quem vir o jogo olhando para o que ele foi e não para o que o mesmo poderia ser numa realidade paralela (ou em 2008, se quisermos) conseguirá certamente aferir a real dificuldade para jogar entrelinhas. Um desafio que, compreensivelmente, Portugal rejeitou durante os primeiros 45 minutos e que foi tentando, timidamente, na etapa complementar – quase sempre com pouco sucesso e sem ser realmente a panaceia que se vai vendendo. Escolheram-se então outros caminhos para evitar transições. Transições que também foram acontecendo por perdas de bolas noutras zonas, claro, mas que foram superiormente controladas por uma reação à perda claramente melhorada em relação ao amigável do Wanda Metropolitano, com Danilo, William, Pepe e Nélson Semedo à cabeça, mas com Ronaldo, Silva, Jota e Bruno Fernandes a darem importante ajuda para essa clara melhoria. Melhoria essa que foi imensamente responsável pelo facto da Seleção ter dominado quase por inteiro a partida, num assumir de jogo que, ainda assim, não escondeu as dificuldades que o posicionamento húngaro lhe criou.



E se jogar por dentro se tornou quase impossível, ficou claro também que a equipa das quinas tem ainda bastante a melhorar na frente de ataque. É que se Ronaldo se afigura ausente, por razões óbvias, das zonas de criação, caberá a Diogo Jota e a Bernardo Silva dar algo mais daquilo que foi visto nesta terça-feira em Budapeste. E se Jota esteve particularmente desinspirado a finalizar e a criar (com duas boas chances na 1.ª parte onde podia ter feito melhor), é ao 10 da Seleção que se pede muito mais em jogos onde um autocarro de 3 andares se ergue à sua frente. Faz falta, claramente, aquele Bernardo que vai para cima e que do nada cria aqueles momentos que em 2018 fizeram furor no Etihad. Especialmente quando Bruno Fernandes é engolido entre as linhas defensivas e médias. E se Semedo foi gigante nos momentos de recuperação, ficou impossível não esquecer a versatilidade e a panóplia de opções que João Cancelo oferecia – ainda mais quando Bernardo parece em crise existencial e com medo excessivo de arriscar.



Há então (muito) espaço para melhorar, mas que ninguém veja nisto aquele género de crítica fácil que nada explica e que só idealiza. Isto porque o momento que se passou aos 80 – com o gigante Szalai a conseguir fugir pela primeira vez ao tão criticado duplo-pivot – esteve sempre na cabeça da Fernando Santos. E a única coisa que o poderia impedir seria certamente validar a sua opção com golos. E eles apareceram minutos depois, com Rafa a conseguir oferecer aquilo que o levou a substituir Bernardo, e com Sanches a oferecer mais naquela zona do que Portugal foi tendo até aos 84 minutos. O que nos leva claramente a pensar que o Bulo poderá ser uma peça importante, por ter aquela versatilidade que hoje se pede naquela zona. Conseguirá certamente mais envolvimentos do que Danilo ou William e, provavelmente, a equipa não perderá assim tanto nos momentos de recuperação. Isto para lembrar que as opções do selecionador não devem ser vistas como intocáveis ou protegidas de debate, mas servem também estas linhas para as tentar perceber e não se partir para uma idealização utópica que nos garantiria outro Euro por decreto. Há sem dúvida muito a melhorar (outra coisa não seria de esperar de uma Seleção na primeira jornada de um torneio de Verão) e muito do que se pede pode até ser utilizado a espaços. Mas não o ser sempre deve obrigar a um pensamento um pouco mais profundo do que bater em alguém com tantos anos ao mais alto nível e com bastantes provas dadas. Tentemos então compreender primeiro do que colar ideologias que nos venderam para validarmos o nosso ego carente, e abramos também a hipótese de que como se melhorou de Madrid para Budapeste, também se melhorará de Budapeste para Munique.

1 Comentário

  1. Li, no jornal O Jogo, que éramos todos uns parvos por não saber o quão bem Danilo e William taparam as transições da Hungria. Hungria, essa selecção perigosa que nos iria amassar com correrias estonteantes. Nós, adeptos, prezamos esse raciocínio, mas parece-nos óbvio que começa a ser tardio procurar como desatar jogos. Isto é, o que Danilo e William oferecem nesse ‘abafar’ (algo pretensioso), tiram em criatividade e rasgo. Nós só queremos ver mais oportunidades, mais chegadas com perigo, mais possibilidades de remates! O duplo-pivôt, ou este duplo pivôt, cansa um pouco a vista.

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