Amor(im) é a nova arrogância

Treinadores de sucesso fazem escola. Mas antes de falarmos do sistema táctico que hoje, muito por culpa de Rúben Amorim, vai da I Liga aos Distritais, recordamos que o mindset dos treinadores de sucesso também deixa legado. Por exemplo, corridos quase 20 anos da história de sucesso de José Mourinho ao comando do FC Porto ainda é comum encontrarmos aquele traço de arrogância no discurso dos treinadores. Afinal de contas, essa confiança desmesurada esteve intimamente ligada àquele sucesso estrondoso e avassalador do então jovem Mourinho. À procura daquele sucesso, ou algo semelhante que os validasse, vários seguidores de futebol passaram a sonhar ser treinadores. Mais do que isso, passaram a sonhar ser treinadores que limpassem tudo o que encontrassem pela frente. O mindset de vitória atrás de vitória preencheu-lhes a mente não deixando espaço para a evolução do seu jogo, do reconhecimento do erro, do amor pela dificuldade do jogo, dando até hipótese a que treinadores de escolas e infantis se começassem a portar como cretinos em jogos de miúdos. É o problema do copy-paste. Não é original e não funciona em contextos diferentes daqueles em que foi criado. Não é criativo e, repetimos, passa somente a ser uma tentativa de afirmação desvinculada da realidade.

Daí a história do treinador Rúben Amorim ser tão interessante. Num mundo tão competitivo como o futebol, onde a arrogância criou escola e está (pensa-se) intimamente ligada ao sucesso, a maneira como Amorim guia o seu fantástico Sporting é digna de case-study. Sem excessos, sem empolamentos, sem necessidade de reconhecimento, sem o foco total no resultado final mas no processo (ou seja sem olho no campeonato mas no jogo seguinte) é tão fora do normal que é impossível desligá-la do sucesso obtido. E tal como com José Mourinho, ou André Villas-Boas (cujo período de maior sucesso também esteve ligado a uma comunicação forte e áspera para os rivais), cada comunicação de Rúben se tornou imperdível. E vê-lo ali completamente descontraído a baralhar jornalistas e adeptos, desviando as atenções do acessório para o essencial é absolutamente brilhante. Tudo sem uma ponta de vaidade desmesurada e sem necessidade de validação constante, como também sem necessidade de menorizar rivais fintando os habituais mind-games que se julga enfraquecerem adversários. Tudo isto dá, não só, maior valor ao que o Sporting de Amorim tem feito como nos remete para o estudo de como essa mentalidade desapegada da futilidade normal no futebol – muito ligada à necessidade de validação dos egos de quem o pratica – tem efeito na eficácia da equipa.

E num período da história do futebol onde se fala (às vezes da boca para fora) de que todas as equipas têm que ser completas em todos os momentos do jogo, é impossível não ver uma eficácia brutal dos leões em todas as variantes que o jogo se desenrola. A comparação ideal surge até com um Benfica que joga no mesmo sistema e que, no papel, teria até jogadores superiores (mais caros pelo menos foram) para o executar. Mas olha-se para o jogo e fica impossível não ver uma maior eficácia do Sporting dentro de um 343 que é o começo de tudo… mas que não explica nem metade. Explicasse o sistema alguma coisa e nunca o campeão nacional sairia da Luz com um resultado algo esmagador. E mesmo as dinâmicas ficam curtas para explicar porque é que de um lado esteve uma equipa que forçou e aproveitou muito melhor os erros da outra, que até jogou no mesmo sistema mas que nunca conseguiu ter o jogo na mão – como aliás tem sido apanágio nesta 2.ª vinda de Jesus à Luz. Nunca o sistema explicará porque é que o Benfica errou tanto quando pressionado, ou porque é que o Sporting onde metia a pata ganhava a bola naqueles primeiros 20 minutos à campeão. Nunca copiar um sistema permitirá que o resultado seja aquele que se viu naquela combinação e maravilhosa execução entre Pote e Sarabia que deu origem ao primeiro golo da noite. Como nunca o sistema explicará que nesse período Grimaldo se viu e desejou para materializar as ideias que JJ tinha para a saída-de-bola. E que mesmo quando o fez e entregou no meio, a fisicalidade do Sporting conseguiu sempre tornar o Benfica numa equipa vulgar e com imensas dificuldades num momento que não é, nem nunca foi, o forte de Jorge Jesus (nem nas suas melhores equipas).

Mas com o golo, o belo golo de Sarabia lembramos, a necessidade do Sporting estar sempre em cima do Benfica expirou. E como toda a pressão tem prazo de validade, a linha defensiva dos encarnados pôde respirar e subir para uma área onde é mais difícil se ver comprometida. E como muitas vezes acontece nos jogos do Sporting, a linha de 3 pisava a linha de meio-campo para activar a construção. Já o Sporting esperava agora num bloco médio que se tornou muitas vezes baixo, onde teve mais dificuldades para roubar bolas. Criando superioridade nos corredores, o Benfica iniciava agora aquilo que seria a maior parte do seu jogo. E estaria intimamente ligada à qualidade dos cruzamentos, e à resposta aos mesmos, o sucesso do Benfica nessa noite. Talvez o problema fossem os centros, talvez o problema fosse quem lhes respondeu, ou como foi feita essa resposta, mas a verdade é que o Benfica de Jorge Jesus pareceu totalmente incapaz de inventar algo mais do que o jogo-exterior. Não que não tenham existido oportunidades (sim, o jogo do Sporting não foi perfeito e o seu 541 andou várias vezes longe de ser aquela armada) mas olhando para como o Benfica as ia desperdiçando e vendo o poderio do Sporting nas saídas rápidas ficou sempre a ideia de que o campeão estava melhor no jogo. Mais ainda quando se viam defeitos das águias que se vêm arrastando no tempo, como a circulação previsível, a falta de rasgo individual (que está quase toda ligada a Rafa) e a falta de autoridade no duelo e no (real!) controle das partidas. E isso somado ao tal poderio leonino na transição só daria uma oportunidade ao Benfica para não sair do jogo. E essa era a de que o Sporting fosse tão ineficaz como o Benfica na definição das suas oportunidades. Mas como o campeão nacional já nos habituou, a eficácia faz parte da sua história. Não foi à toa que se sagrou justamente campeão nacional- um título tanta vez humilhado por quem não o ostenta. E a questão que fica para quem acha as injustiças nos campeões e para quem se acha o melhor do Mundo e arredores é: que espaço há para melhorar quando as mentes estão só preocupadas em validar a ideia de que se é o melhor do Mundo e arredores?Haverá espaço em quem quer ser o melhor em todos os momentos para a arrogância de se achar o melhor em todos os momentos? Olhe-se agora para o futebol actual e para os melhores treinadores da actualidade. Há algum que tenha essa arrogância desmesurada? Se calhar estão demasiado ocupados em tornar as suas equipas melhores, em mantê-las actuais, em inovarem, em criarem aquela nova ideia revolucionária – que muitas vezes nem está ligada a sistemas, nem a dinâmicas, nem a movimentações. Sejamos sinceros. Antes de o jogo estar decidido, se tivéssemos de apontar qual a equipa que estava mais receosa, menos confiante, com mais dúvidas, qual escolheríamos? O Sporting não seria de certeza. E quanto terá o método Amorim terá a ver com isso? Porque é que raramente o Sporting aparece com níveis anímicos baixos, mesmo em desvantagem, quando isto que aconteceu ao Benfica era o que antes (de Rúben) normalmente se associava aos leões? Rúben não inventou só uma táctica, criou um espírito. E parece mais apostado em mantê-lo do que em se defender de quem não o acha o melhor do Mundo e arredores. E a julgar pela frescura (não só física mas também mental) de um Sporting que pode ir ganhar à Luz sem dois dos seus mais influentes jogadores, os resultados têm lhe dado razão em trocar a arrogância e necessidade de validação pelo essencial.

E se continuarmos a ser totalmente sinceros, veremos que Jorge Jesus tem uma ideia de jogo na cabeça. Uma ideia que, tacticamente, até já foi forçado a alterar. Tem um padrão de sucesso na mente e não admite que os jogadores não estejam ao nível desse padrão que ele criou. Sob quanta tensão estão esses jogadores, já de si assolados pela normal pressão de representarem um clube que tem o historial de criar expectativas maiores do que as pode cumprir? Do outro lado temos um exemplo perfeito de como retirar essa pressão, de como libertar os jogadores de expectativas (muitas vezes irrealistas) e de os ajudar a focarem-se no essencial. Quanto disso se reflecte na bola que entra e na bola que sai? Quanta carga emocional levam as definições do Benfica e quanto desapego (quase calma olímpica) mostraram as do Sporting? Quanto disso tem a ver (também) com o estilo de liderança?

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