Oitos e Oitentas

O Campeonato do Mundo é uma competição implacável no que concerne ao rendimento imediato. E este Catar ’22, quase sem preparação prévia, exige rotinas que muitas equipas não estão preparadas para ter no imediato. E são vários os factores onde assistimos a um decréscimo de qualidade comparado com a elite do futebol de clubes, designadamente a Premier League e a Champions League. Outra coisa não seria de esperar, visto que as rotinas e a eficiência carecem de experiências e treinos aquisitivos e, assim sendo, são normais as muitas dificuldades por parte das equipas favoritas em se apresentarem ao nível que é delas esperado – o tal nível que poderá levá-las ao trono do futebol mundial.

Ora, uma das dificuldades (natural e já esperada) tem sido vista no momento de desorganizar defensivamente o adversário. É hoje rara a equipa que não se apresenta organizada e compacta no momento defensivo e, a somar a isso, a falta de tempo para rotinas obriga a risco mínimo. E uma das formas que pode ser nuclear neste torneio de duração curta é o libertar dos médios para aparecerem em frente à linha defensiva. E isso poderá aparecer em organização ou após o momento de recuperação da bola. Nesse campo, começou de forma brilhante a Inglaterra que, com Jude Bellingham a dominar tempos e espaços, se afastou do cinzentismo habitual do seu outrora estático duplo-pivot. Outra das formas (a chegada à área) foi vislumbrada no França-Austrália pelo rebelde Adrien Rabiot, importantíssimo no momento defensivo, na recuperação e na chegada à área. Nota também de (imenso) destaque para uma das surpresas da prova, os Estados Unidos, assente num miolo de nível altíssimo. Tyler Adams, Yunus Musah e Weston McKennie encheram o campo e secaram (quase) por completo a expetativa em relação ao que Declan Rice, Jude Bellingham e Mason Mount vinham fazendo.



E se são raros os momentos em que os médios conseguem aparecer de frente libertos pela organização ofensiva, o Portugal-Gana mostrou-nos a influência que a pressão pode ter para os soltar. Otávio primeiro e Bruno Fernandes, depois, deram mostras reais da importância desse momento. Se está difícil criar e desmontar em organização (e foram notórias as dificuldades lusas nesse aspecto) o momento da recuperação pode servir para aproveitar um aspecto que se revela cada vez mais nuclear neste Mundial 2022. E se estamos atentos à cobertura de estatísticas que nos vem sido oferecida pela organização, sabemos imediatamente que o número de bolas entrelinhas que tem sido (des)aproveitado pelos avançados das equipas (que aparecem naturalmente no topo desses rankings) não tem sido sinónimo de oportunidades a toda a hora. É o facto de estarem sempre (bem) marcados e de costas que faz com que esse aproveitamento não tenha percentagens elevadas. Já o aparecimento dos médios (porque é feito de frente, em velocidade e de frente para o jogo) tem-se revelado essencial.

(Lances descritos abaixo podem ser vistos na íntegra no vídeo acima)

Começou por ser pela chegada a área que Jude Bellingham iniciou o desequilíbrio da densa muralha defensiva do Irão. Centrais fixos e Jude a aproveitar para mostrar algumas das suas características: a procura do espaço livre, chegada e concretização. Foi assim, com um desequilíbrio de um médio que a Inglaterra começou a construir a vitória. E mais (desequilíbrios desses) haveriam de chegar – quase sempre pelo mesmo intérprete.
E quando não é a organização que solta Jude, é ele que se solta por si próprio. Poder físico e desequilíbrio no 1v1, mostram outras das facetas do médio de 19 anos para se colocar de frente para linha defensiva e poder servir os avançados. Incrementos incríveis ao colectivo por parte de um talento completo.
Capacidade e percepção incríveis para se posicionar nos espaços que o farão poder soltar e criar. Aqui, de novo envolvido num lance de golo onde a sua ação foi determinante.
Também a capacidade de Rabiot emergiu nesta primeira jornada. Depois de marcar de cabeça na área, foi a sua capacidade em condicionar, para depois se soltar, que criou outro golo francês. Adrien é o homem que pode soltar o miolo francês e é outro dos oitos a ter em conta neste Campeonato do Mundo.
Portugal tem o talento necessário para poder colocar os seus talentosos médios de frente, como tem a hipótese de eles se soltarem pela sua natureza e talento ou por recuperações forçadas e não forçadas. Contra o Gana foi a partir das duas últimas que nasceram alguns lances com mais destaque para a equipa das quinas. E o sucesso de Portugal estará dependente também do que conseguir criar e do que conseguir soltar Bruno, Bernardo, Otávio e Félix.
Recuperação de João Félix deixa Bruno com possibilidades de construir de frente, num lance do qual nasceu o terceiro golo de Portugal
Capacidade de trabalho monstruosa por parte do meio-campo dos EUA. Um miolo que engoliu durante grandes períodos Declan Rice, Bellingham e Mount e do qual emergiu a capacidade de Weston McKennie se soltar. Complementado por mais dois todo-o-terreno, a exibição dos três all-americans tornou-se em algo incrível de se ver.
Capacidade de explosão do médio da Juventus assumiu a abertura de possibilidades para ficar de frente para a linha defensiva inglesa, sempre complementada com o apoio de Musah e a capacidade incrível de posicionamento e recuperação de Tyler Adams. Em cima de tudo isto uma mentalidade temerária que nunca se deixou abater pelo poderio do adversário. Um verdadeiro must por parte dos americanos que, finalmente, se conseguem bater de forma competitiva contra uma das melhores seleções da Europa.
Os Estados Unidos conseguiram, durante a maior parte do tempo, controlar e até dominar a Inglaterra. A excepção que poderia desenhar um resultado diferente foi este lance. E com tudo o que já foi dito acima não sobram adjectivos para sublinhar a importância de Jude Bellingham e a capacidade das equipas encontrarem e soltarem os médios.

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